Quando se trata de lidar com pão, no geral, e com pastelaria, em particular, não há quem bata os franceses. Não é que os franceses sejam melhores que todos os outros só por causa disso. Não, não é disso que se trata. Cada povo tem algo que o distingue dos demais. Os italianos são conhecidos pelas suas pizzas, os noruegueses pela cultura viking, os ingleses pelo chá das cinco e os espanhóis por falarem demasiado alto. Já os portugueses são conhecidos por gostarem de beber vinho fora da hora da refeição. Eu, pelo menos, gosto. Ora, no caso dos franceses o que os distingue é que sabem fazer pão e doçaria.
Para além de saberem fazer pão e doçaria, os franceses sabem também o que fazer com o pão e com os bolos que produzem. Como é óbvio não me refiro ao ato de comer propriamente dito, já que isso todos o sabemos fazer (será que somos mesmo todos?). Não. O que os franceses sabem fazer é garantir que, quando se trata de comer pão ou um doce, o vão fazer da maneira correta.
Quando preparam uma sande para o almoço de sábado, aquele almoço que ficou combinado com toda a família no campo e em que cada um ficou de levar o seu farnel para não onerar ninguém em demasia, os franceses acompanham a baguete, estaladiça por fora e arejada por dentro, com um malcheiroso, mas delicioso, queijo comte. Um daqueles queijos maturados durante doze excessivamente longos – porém necessários – meses. Quando durante o intervalo da manhã no trabalho se pretendem congratular com uma pequena recompensa por terem aguentado a primeira parte do dia, os franceses não estragam o croissant com uma compota de amora no meio. Não, comem o croissant sem recheio, simples, como deve ser comido. Aliás, como foi feito para ser comido. Quando, depois de comprarem uma baguete fresca e de a transportarem debaixo do braço até casa, os franceses se preparam para tomar o pequeno-almoço, não usam uma manteiga qualquer, muito menos uma daquelas com reduzidos níveis do que quer que seja para não atacar o colesterol. Não, os franceses usam uma manteiga como deve ser, cremosa e com doses elevadas de sal. E por aí fora.
É por estas e por outras que os franceses sabem do que falam quando se trata de pão e doces.
Não é então de admirar que, quando se aviste uma padaria francesa em qualquer parte do mundo, os olhos do comum dos mortais comecem logo a brilhar. Pode ser uma padaria de qualquer tipo. Tanto pode ser daquelas que fazem esquina e que não têm mais que duas mesas no interior, como uma em que os confortáveis cadeirões e mesas rebaixadas nos sussurram ao ouvido, mal entramos, que é ali que devemos passar os próximos vinte a trinta minutos a lambuzar-nos. De certeza que não nos arrependeremos. Não interessa. Pode ser qualquer uma delas e em qualquer lugar. Até pode ser em Paksé, no centro do Laos, como aconteceu sem que sequer o antecipasse ou imaginasse. O que importa é que seja uma padaria francesa.
Mas como saber que aquela padaria em concreto é francesa?
É o nariz que primeiro nos faz chegar a essa conclusão. O primeiro truque é sempre seguirmos o nariz. Quando uma padaria é francesa o cheiro que da sua porta aberta se propaga pelo ar transporta-nos de imediato para uma manhã fria de sábado nas ruas de Paris, em que o calor da baguete nas mãos tornou desnecessárias as luvas que nos esquecemos de trazer quando saímos pela fresca à pressa para ir ao pão. O cheiro não engana, de repente damos por nós em Montmartre e vemos o Sacré Coeur erguer-se atrás de nós, cruzamo-nos com caricaturistas sentados em bancos de madeira na Place du Tertre, estamos perdidos nas ruas do Quartier Latin ou então sentados num banco num pequeno jardim do Marais. Pelo menos comigo é isso que acontece.
Já convencidos que é por aquela porta precisamente que vamos entrar sem mais delongas, olhamos para o interior. E aí percebemos temos novas pistas para perceber se a padaria é francesa ou não. Olhando para as vitrinas repletas de coloridas tartelettes, de apetecíveis pains au chocolat, e croissants e de inúmeros cremosos millefeuilles, não há como enganar. Olhando para os diversos cestos em vime repletos de baguetes de tamanhos irregulares que nos garantem não serem produto da industrialização, não há como duvidar. Dando de caras com o padeiro que ocasionalmente espreita a zona do balcão para ver se o dia está a correr bem, com o seu avental ainda branco da farinha utilizada por volta das cinco da manhã, não há como aldravar. Muito menos quando o ouvimos esboçar um comentário alegre num francês tão carregado que não deixa qualquer margem para dúvidas. É francês, sim, não há como dar a volta. Está completo o teste da visão.
A tudo isto segue-se o teste do tato. Todos sabemos que o pão e os doces franceses têm um toque especial. Ao apertar levemente uma baguete francesa, eis que o ouvimos. O maravilhoso som do pão a esmigalhar-se lentamente, anunciando ao mundo que chegou a sua hora, que vai servir o propósito para o qual foi criado. Sujamo-nos de migalhas e, cuidadosamente, apanhamos cada uma delas da nossa camisola. Não há cá lugar para desperdícios. Quando, ao de leve, tocamos num pain au chocolat ou num croissant francês, haverá sempre uma primeira camada de massa que se desligará das demais, como quem delicadamente tira o casaco à chegada a um restaurante pois finalmente chegou ao seu destino. Desta forma, também o tato nos pode ajudar a chegar a alguma conclusão.
Estar-se-ão vocês a perguntar ‘porque é que este tipo fala disto tudo e ainda não chegou ao que interessa, que é o sabor?’. Deliberadamente não o farei. Não posso, recuso-me veementemente. O sabor guardarei para mim mesmo, numa caixa bem escondida no interior do meu cérebro, esse prazer que é comer uma baguete francesa com manteiga ou dar uma primeira dentada num croissant sem qualquer recheio.
Porque o faço? Porque desejo profundamente que cada pessoa que leia estas linhas, neste preciso momento, esteja a recordar, à sua própria maneira, o prazer que retira de saborear qualquer uma das delícias que a padaria francesa tem para oferecer. Façam-no onde quiserem. Mesmo em Paksé, onde uma maravilhosa padaria proporciona viagens gustativas até França. Vão ver que fiz bem em não o dizer. Não têm nada que agradecer, era o que faltava.
Agora há que despachar. São quase 9h da manhã e as baguetes e croissants não estão eternamente lá à espera para serem devidamente apreciadas.
Texto e Fotografia: João Barros