Já não se usa cruzar fronteiras – 4.000 Ilhas (Don Det)

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Uma mariscada em La Guardia no próximo sábado ou um café depois de um almoço regado a Alvarinho em Tui. Afinal de contas é tudo já ali ao virar da esquina. Um fim-de-semana em Paris ou Madrid? Porque não? Os voos estão baratíssimos. Este ano trocamos a Costa Vicentina por Menorca, pode ser? Ou em vez de fazermos a N2 de Norte a Sul vamos até ao Sul de França na caravana que há demasiado tempo está parada na garagem a ganhar ferrugem.

Já ninguém pensa duas vezes antes de ir ao estrangeiro. Pelo menos assim o é quando viajamos para terras de nuestros hermanos, para algum país próximo ou até para um dos antes quase gratuitos destinos oferecidos pelas companhias aéreas low cost que por aí vemos a operar. Quando assim é não perdemos um segundo a pensar nisso, que vamos para o estrangeiro.

Não nos apercebemos que vamos atravessar uma fronteira, que estamos num país diferente. Que língua, tradição, valores e cultura já não são aqueles que conhecemos de ginja. Já não nos lembramos se temos passaporte ou sequer onde ele está. E se o temos, será que está válido? Não sei. Já não se usa nada disso, não é? Quando vamos ali ao lado para uma escapadela rápida de fim-de-semana, ou visitar um amigo que vive em Budapeste há dois anos, só temos uma preocupação. Que tudo o que levamos caiba numa mochila que nos acompanhe na cabine. Se aparentar não caber, não há preocupações. Trataremos de fazer com que caiba. É só nisso que temos que pensar.

Ao fim e ao cabo já não se usa cruzar fronteiras. De forma pouco complicada apenas há que seguir sempre em frente na estrada, ou simplesmente entrar no avião sem pensar duas vezes no que estamos a fazer. De repente, sem que dêmos por isso, tcharan, estamos lá fora (como os meus pais gostam de dizer).

Mas esta ideia só é válida se viajarmos para um dos mil e um destinos que a mal amada União Europeia tem para oferecer. Caso contrário, fronteiras terão mesmo que ser cruzadas. Passaportes serão mesmo analisados e posteriormente carimbados. A todo o processo será atribuída uma veste de seriedade condizente com os anos 80, em que cruzar uma ponte sob o Rio Minho de Portugal para Espanha era ocasião para vestir o melhor fato e suar só de pensar na tensão que se avizinhava. Nestes casos já não nos preocupamos só com a mochila, já que muitas outras coisas se atravessam na nossa mente.

Quando se viaja na Ásia, vindo de Portugal, não é assim tão fácil cruzar uma fronteira. Por exemplo, se quisermos passar do Sul do Laos para o Norte do Camboja é necessário saber de antemão que precisamos de três ou quatro dias de intensa preparação.

Há o visto que terá de ser pedido online e que não sabemos quando será aprovado, como há também que perceber qual o website em que temos que o fazer, isto porque há mais de dez que nos dizem, em letras maiúsculas, serem o sítio oficial do governo Khmer. Vão por mim, só há mesmo um. Preocupamo-nos com as muitas histórias ouvidas acerca daquela fronteira em específico. Que aí vão fazer depender o carimbo de saída do Laos de um pagamento em dinheiro, só porque sim – é isso mesmo, um suborno. Que seremos ameaçados com idas para a prisão se não quisermos alinhar na corrupção. Sim, com as algemas para amedrontar e tudo.

Teremos ainda de nos preocupar com o meio de transporte a utilizar para passar a fronteira. Sim, até com isso temos que nos preocupar. Porque do lado de lá, no Camboja, se demorarmos mais que uns meros minutos que o habitual a atravessar a maldita fronteira, pura e simplesmente vão-se embora sem nós. Porque demoraríamos mais que o normal? Porque não querermos pagar o que não é devido e de repente podemos dar por nós em pleno interrogatório numa sala em que o passaporte nos é arrancado das mãos e apenas devolvido quando uma embaixada é metida ao barulho. Sim, se tivermos a sorte de passar a fronteira podemos ficar no meio do nada, sem transporte, sem rede no telemóvel, à mercê da nossa própria sorte.

De facto, passar uma fronteira pode ser um evento conotado com uma dose de solenidade há muito esquecida mas que aqui, por este lado do mundo, não está de modo algum adormecida. Está sempre presente, e bem presente.

Caso no trajeto que delinearmos tenhamos que entrar no Camboja através do Laos, vão por mim, há que reservar uns dias para nos podermos preocupar à vontade. Para que o suor ganhe forma dentro de nós e nos recorde, a cada pinga que vagarosamente corre pela testa, que a ocasião é mais séria que aquilo que pensávamos.

Um bom sítio para poder lidar com a tensão dos dias que se avizinham antes de atravessar essa mesma fronteira é DonDet, no Sul do Laos. Aí, num paraíso escondido e pouco conhecido, estamos numa pequena ilha rodeada pelo Mekong. Há bungalows com redes viradas para a água em todos os cantos, as bicicletas são o único meio de transporte em terra e há animais à solta por todo o lado. Cada pôr-do-sol em tons alaranjados lembra-nos que tudo valerá a pena.

Sim, é isso mesmo. Tal e qual assim. Definitivamente, DonDet seria o sítio que eu escolheria, outra vez, para lidar com a esquecida ansiedade que é atravessar uma fronteira.

 

 

Texto e Fotografia: João Barros

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