O ciclo da nicotina -Takhek

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‘Um dia destes deixo de fumar’.

Há muito que é desejado mas a verdade é que nunca foi devidamente planeado. De cada vez que o filtro encontra os lábios humedecidos, e logo após o primeiro bafo do dia, recordamo-nos desse desejo antigo. Mas o relaxamento proveniente do fumo que expelimos a cada suspiro faz com que rapidamente o voltemos a esquecer. Temos tanto que fazer no dia-a-dia que não podemos perder tempo a pensar sobre isto outra vez. Dessa forma o desejo de deixar de fumar cai, mais uma vez, no vazio do esquecimento.

Mas mesmo quando nos recordamos desse desejo, mesmo quando ele está presente em nós a cada cigarro fumado, não é fácil desfazermo-nos do vício. Sim, porque para além do esquecimento – mais ou menos forçado – há ainda as desculpas. E que variadas podem ser essas justificações que nos impedem de deixar de fumar quando queremos. ‘Quando o maço chegar ao fim, aí sim, chega, páro de fumar’. Chega o maço ao fim e acabamos de comprar um novo isqueiro. Que desperdício desfazermo-nos de tão valiosa fortuna em gás. Quando finalmente o isqueiro perde a sua chama temos um novo maço a meio. E por aí adiante. ‘Depois deste fim-de-semana, então, que não posso parar de fumar à quarta-feira’. ‘Deixar de fumar vai ser a minha resolução de ano novo!’. ‘Se deixar de fumar agora vou engordar e lá se vai a Operação Verão 2024’. Alguém me corrija se estou enganado, mas já todos ouvimos alguma destas frases da boca de um fumador. Eu, pelo menos, já as utilizei vezes sem conta.

Por entre todo este chorrilho de desculpas continuamos a permitir injustificadamente um ataque cerrado e autoinfligido à nossa saúde e carteira, que de forma leviana optamos por – não tão – sabiamente ignorar. É este o ciclo da vida do fumador, um ciclo do qual parece sempre ser mais difícil sair do que aquilo que realmente é.

Até que um dia, depois do primeiro café da manhã em pleno centro do Laos, já o sol faz sentir a sua presença, damos por nós a dizer ‘chega’! Sem que nada o fizesse prever, sem qualquer tipo de antevisão, decidimo-nos mudar e levar avante um plano há muito traçado mas nunca concretizado. É agora. De repente, sem que nada nem ninguém o esperasse, o maço ainda com treze cigarros e o isqueiro acabado de comprar jazem lado a lado num caixote do lixo perdido por aí. Estamos a meio da semana, longe do réveillon e a Operação Verão 2024 não podia estar mais perdida. Mas conseguimos. Afinal não foi preciso tanto esforço assim, pois não?

Com o peito inchado de orgulho, queixo levantado e um sorriso rasgado plantado no rosto, retomamos a nossa caminhada. Somos imparáveis e ninguém nos pode derrubar. Se fizemos isto somos capazes de qualquer coisa. Somos, desde há uns segundos atrás, não fumadores. Estamos livres de todas as amarras tabagistas, nada nem ninguém nos demoverá desta iniciativa que está cá para durar. Já respiramos melhor e se o quiséssemos – só não o queremos – poderíamos quase correr uma maratona. O nariz volta a funcionar no máximo potencial das suas capacidades e a comida do almoço que se aproxima vai ser uma explosão de sabores há muito esquecidos. Nada poderia correr melhor, nada.

Mas eis que, tão rapidamente quanto nos livramos de todo o mal, nos invade um sentimento estranho. Começa a assaltar-nos a dúvida e a hesitação. ‘Será que esta é a altura certa para deixar de fumar’? O preço dos cigarros aqui em Takhek não podia ser mais apetecível, um maço nem cinquenta cêntimos custa… A sombra que nos vai refugiar do calor ao fim da tarde incentivar-nos-á a pedir uma cerveja e intercalar cada gole com um profundo e merecido trago do cigarro. Para além disso avizinham-se tempos de ansiedade, irritação e injustificada impaciência. E ninguém quer estar ansioso, irritado e injustificadamente impaciente no meio do Laos. Era lá o que mais faltava, não foi para isso que cá viemos.

Olhamos à nossa volta. Toda a gente parece estar a fumar. Se eles fumam porque não o podemos nós fazer? Com que é suposto entretermo-nos depois de tomar o café de amanhã de manhã? E enquanto esperamos pelo autocarro, ficamos só ali, parados? As esperas vão certamente tornar-se mais longas… As refeições vão tornar-se incompletas, os copos vão passar a existir desacompanhados. A nossa decisão, de repente, começa a parecer esdrúxula e sem sentido algum.

Respiramos fundo e pomos os pensamentos em ordem. Damos por nós a tentar fazer uma tabela mental de prós e contras que nos acabe por levar à conclusão de que, afinal, não há problema algum em continuar a fumar. Tudo visto e ponderado, se ignorarmos pequenos pormaiores, não faz assim tão mal. E sabe bem, muito bem.

Não, chega disto. A decisão está tomada e não há volta a dar. Agora já não faz sentido voltar atrás. Recordamo-nos que somos não fumadores, e sê-lo só por duas ou três horas acabaria por nos levar para o campo do ridículo. Está decidido. Preferimos estar ansiosos, irritados e injustificadamente impacientes durante uns tempos. Certamente valerá a pena. Ou assim esperamos.

Suspiro e dou por mim feliz. Estou livre. Já não me lembrava da sensação de logo à noite poder ir dormir sem a preocupação de ter, ou não, cigarros para o dia seguinte.

 

 

Texto e Fotografia: João Barros

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