Ninguém gosta especialmente de ir ao dentista. Não há pessoa neste mundo que nutra um especial prazer por passar três quartos de hora de boca aberta, escancarada, a olhar diretamente para um foco de luz artificial enquanto um grupo de pessoas de touca verde, máscara e óculos sem graduação colocam objetos estranhos pela nossa cavidade bocal, comentando entre si ‘o sete é para revitalizar’ e ordenando-nos ‘bocheche, por favor’. Nós bochechamos, sim, mas não gostamos. Pelo menos eu não gosto, nem conheço ninguém que se entusiasme com a perspetiva de uma visita próxima ao dentista.
Pela minha experiência todas as idas ao dentista resultam numa situação constrangedora a que não podemos escapar. O dentista começa sempre por perguntar sobre os nossos hábitos de higiene oral, e qualquer resposta dada fica sempre aquém do desejável. ‘Lavo os dentes cinco vezes ao dia e passo fio dental a seguir a cada uma das refeições’ exclama o paciente de forma orgulhosa, como quem acaba de apresentar um trabalho na escola que sabe terá direito a nota máxima por parte da professora. ‘Cinco vezes não chega, devem ser sete e, para além de passar fio dental, deve ainda bochechar com o produto X, Y ou Z. Já agora, que pasta usa?’, devolve sempre o dentista com ar de pouca paciência.
Para além do desconforto proveniente de uma pouco disfarçada censura médica, parece sempre haver uma tentativa contínua de o dentista comunicar enquanto estamos deitados de boca aberta a bradar aos céus para que a consulta termine. Como está bom de ver, a resposta não passará nunca de um conjunto de grunhidos da parte do paciente. Grunhidos impercetíveis ao ouvido comum, é certo, mas que todos os que se encontram à volta da boca escancarada aparentam conseguir decifrar com extrema facilidade.
É por estas e por outras que não gosto de ir ao dentista. Não tenho nada contra dentistas. Só não gosto muito de ir às consultas. E a verdade é que se já não gosto muito de ir a consultas de dentista, imagine-se agora ser forçado a ir a consultas de dentista no centro do Laos, em Vang Vieng. Teriam que ser muitas e intensas as dores que me fizessem submeter a uma tão radical experiência. E na verdade foram-no.
Uma consulta de dentista numa pequena cidade do Laos foi uma experiência diferente. Não melhor, nem pior. Só diferente. Tal ficou a dever-se, pelo menos, a duas razões.
A primeira é que uma visita a um hospital público como o de Vang Vieng remete, de forma – assim não tão – estranha, para as antigas instalações do Hospital de São Marcos, em Braga. Poderia ser pior, não é? Admito que a probabilidade de apanhar uma qualquer infeção em pleno Sudeste Asiático seja maior que em Braga há uns quinze anos, mas a verdade é que sempre achei que ir ao dentista no Laos poderia ser bem pior que o que foi. Imaginava terrores e afinal vivi recordações. Quem diria?
Mas mais do que isso, ir a uma consulta de dentista em Vang Vieng é ainda diferente porque nenhum dos profissionais de saúde dentro da divisão sabe sequer dizer uma palavra em inglês, uma só que seja. Por seu turno, o paciente não consegue dizer mais do que duas ou três palavras na língua local. Quer isso dizer que não há tentativas de comunicação entre médicos e paciente, o que torna toda a experiência menos constrangedora. Como não conseguimos comunicar uns com os outros passa-se à frente o questionário sobre a higiene oral e vai-se direto à ação. Não há cá reprimendas nem julgamentos dissimulados, parte-se logo para o que interessa. Não é que afinal ir ao dentista no Laos não é assim tão aterrador?
Uma mão aponta para a cadeira onde é suposto o paciente se deitar e este não tem outra hipótese senão obedecer. Os seus olhos acompanham o dentista enquanto este se movimenta pelo consultório, tentando perceber se os instrumentos que vão ser utilizados estão a ser retirados de uma embalagem que garanta a sua esterilização. ‘Pelo menos está a usar luvas’, pensa-se. Abre-se a boca, aponta-se para o local onde se tem sentido o foco de dor, semicerra-se os olhos para evitar a cegueira provocada pela luz incandescente que se abate sobre os olhos desolados e preocupados de quem desejava não estar ali, e aguarda-se um comentário que, no íntimo de cada um, se sabe nunca vai chegar.
Durante todo o processo ouvem-se vozes que conversam numa língua impercetível. Detetam-se sorrisos no ar e conclui-se que a situação não deve ser tão grave assim. Depois de meia dúzia de toques no preciso lugar em que há umas horas habitava a expressão máxima do sofrimento, com um daqueles instrumentos de que ninguém sabe o nome técnico, sente-se um líquido a ser vertido. E não é que, miraculosamente, a dor passa de forma instantânea? Como se nunca tivesse existido.
Será que ficou tudo definitivamente resolvido? A resposta chega-nos aos ouvidos num inglês enferrujado proveniente do representante da seguradora que acompanhou toda a consulta e que, antes disso, conversou alegremente com o dentista. ‘Não está definitivamente resolvido, mas deve aguentar-se durante uns tempos’.
Saímos e respiramos o ar quente enquanto o sol nos banha a face. Quem diria ser possível sair de uma consulta de dentista no Laos com um sorriso no rosto?
Texto e Fotografia: João Barros