Álvaro Covões

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Um criador de valor

Aos 14 anos já era financeiramente independente com o dinheiro que ganhava a explorar o bar do Coliseu dos Recreios, propriedade da família. Quando chegou a altura de entrar na faculdade, optou por gestão, contrariando a vontade familiar duma opção por medicina. Talvez por isso só tenha comunicado que frequentava a Universidade no segundo ano do curso. Foi por essa altura, que organizou o primeiro espectáculo “à séria”, como gosta de dizer, no Coliseu, é claro, e logo com Amália. Catapultou-a para um reconhecimento nacional que faltava e envergonhava o país e de que ainda hoje fala com orgulho – “Ela merecia.” O bichinho da organização de espectáculos ao vivo ficou-lhe para sempre, mas ainda antes de fundar a Música no Coração com Luís Montez, aprendeu a gerir o dinheiro dos outros nas salas de mercados, numa época em que a Bolsa ainda era o El Dorado de uma minoria. Depois seguiu definitivamente a tradição familiar do mundo do espectáculo, para nunca mais a abandonar.

Álvaro Covões, fundador da Everything is New, que criou depois de abandonar a parceria com Luís Montez, é o rosto do mais internacional dos festivais portugueses, o Alive, que deve o nome à música homónima dos Pearl Jam, os cabeça de cartaz da edição deste ano. Recebe-nos no Restelo, na sede da empresa, numa sala decorada com fotografias dos concertos que tem organizado: de Leonard Cohen a

Metallica, de Ben Harper a Pearl Jam, de Beyoncé a Noel Gallagher. O mote da conversa é a 12ª edição do NOS Alive, esgotado há meses, à semelhança do que acontece desde 2016. Mas com Álvaro Covões o Alive é mesmo só o mote, porque a conversa estender-se-á pela ausência de política cultural de todos os governos desde o 25 de Abril, a má gestão dos equipamentos culturais do Estado e o orgulho de ser português.

Qual é o segredo que permitiu transformar o NOS Alive no mais icónicos dos festivais urbanos, que esgota mal os bilhetes são colocados à venda?

O segredo é sempre muito trabalho. Quando lançámos o projecto, em 2007, dissemos ao que vínhamos. Queríamos fazer um grande festival de referência internacional e pôr Portugal no mapa. Conseguimos. Mas não se pense que é carregar no botão e esperar que as coisas aconteçam. Tem de se trabalhar muito e, no fim da linha, ter aquela estrelinha, aquela pontinha de sorte para fazer a diferença. Se ouvires o que dissemos do festival quando o lançámos é exactamente o que está a acontecer.

E atingiram um sucesso internacional num espaço relativamente curto de tempo, em 12 anos.

Isso aconteceu, porque ao contrário dos grandes festivais do resto do mundo que sempre foram muito ligados ao turismo de natureza, como Glastenbury, por exemplo, o NOS Alive sempre se afirmou como um festival assumidamente urbano. Antecipámos um pouco o movimento turístico que hoje se verifica e em que o turismo em cidades passou a ser muito mais relevante do que era. Exceptuando as cidades tradicionais como Paris, Londres, Nova Iorque e Roma, não existia o hábito das pessoas viajarem para ir para Lisboa, para o Porto, para Madrid. Como nós nos antecipámos a essa transformação no perfil turístico, conseguimos criar um conteúdo relevante e passámos a vender o destino Lisboa como região de turismo. Por outro lado, ao contrário dos outros festivais, e volto ao exemplo de Glastenbury que é um festival que começa às 11h e acaba à meia noite e é só festival e mais nada, nós começámos a vender uma experiência. Nós somos mais do que um festival, somos um destino turístico, neste caso Lisboa, em que de manhã podes ir surfar ou ir à praia, à hora de almoço podes experimentar a nossa gastronomia e à tarde conhecer o nosso património, as nossas cidades: Sintra, Cascais, Lisboa, Oeiras. A música só é uma preocupação a partir das 17h e os mais afoitos ainda podem ir para a noite de Lisboa. Portanto, nós criámos um produto que era precisamente o contrário dos festivais que aconteciam no resto do mundo na época.

Essa antecipação do movimento turístico foi pensada no projecto inicial?

Foi. E foi algo que descobri por uma fatalidade. Há alguns anos houve um acidente num festival, não interessa qual, em que morreu um conjunto de pessoas e 50% dessas pessoas eram estrangeiras e isso chamou-me muito a atenção. Percebi que os festivais são um pólo catalisador, um conteúdo importante para chamar pessoas de outros países. Fruto da minha experiência, porque já organizo festivais desde 95, desde que se iniciou esta nova era dos festivais, sabia que por mais que nos esforçássemos nunca conseguiríamos vender os bilhetes todos. Esgotar um festival era algo impensável, até se comentava que num festival cabia sempre mais um, o que não é verdade, porque um festival, como uma sala de espectáculos, tem uma lotação. Percebemos que o que faltava para vender os bilhetes todos era chamar público de fora, e então investimos muito noutros mercados. E foi isso que nos fez começar a esgotar. Começámos a esgotar primeiro um dia com muita antecipação, o que não era costume, depois dois dias e nos últimos três anos, o festival todo. A 5 semanas do festival já não havia bilhetes para dia nenhum. Em três dias já tinhas um dia esgotado!

Essa incrível adesão do público devese ao cartaz?

Exactamente. Nós temos uma assinatura muito arrojada, que nos dá ânimo para trabalhar, que é “o melhor cartaz de sempre”. E, portanto, se dizemos isto, temos mesmo de nos esforçar para o conseguir. E não é fácil porque não depende só da vontade e do trabalho, também depende da logística dos próprios artistas. Por exemplo, os Pearl Jam trazem 13 camiões TIR que têm de cá chegar por estrada, por isso estamos sempre dependentes da logística, por isso ser tão importante marcar o festival dentro do roteiro dos grandes festivais da Europa.

Portugal passou a entrar no roteiro dos grandes artistas internacionais, o que até há bem pouco tempo não acontecia.

Isto é um país longínquo e todos os grandes espectáculos trazem equipamento por estrada. Uma pessoa que se dedique a olhar para a rede rodoviária da Europa vai perceber que a partir de Barcelona todas as cidades distam 100-150Km umas das outras e nós estamos a 600Km de Madrid e 1200Km de Barcelona. Portanto, não é a mesma coisa. E os artistas quando estão na estrada estão com 200-300 pessoas e 20-30 camiões.

Portanto, têm de rentabilizar.

Os Peral Jam regressam ao Nos Alive depois do sucesso do concerto de 2007, na primeira edição do festival, e isso tem sido recorrente com diversas bandas. Fica a ideia de que os artistas acabam por adorar vir a Portugal e que quando repetem, o fazem com certo gosto. Isto é verdade ou é mais uma espécie de orgulhosinho nacional?

Essa é uma pergunta muito pertinente que tem a ver com um sector muito importante que é o sector cultural. A nós, que trabalhamos nesta área dos concertos de música ao vivo em Portugal, foi-nos exigido um esforço gigante para conseguirmos entrar no mercado, porque no centro da Europa, em países como a Alemanha, França e Espanha, que são países ricos e com muita população, os artistas iam porque se vendiam discos, porque eram mercados importantes. Portugal é um país pequeno e não tinha relevância e, portanto, para conseguirmos que os artistas viessem, tínhamos de ser credíveis. Credíveis nos pagamentos, credíveis na garantia de que os espectáculos teriam público e de que os profissionais que neles trabalhariam seriam de 1ª linha, credíveis na organização da própria estada, garantindo que o tempo aqui passado seria óptimo. Nós tivemos de ser sempre melhores do que os outros, mas conseguimos, e temos uma indústria de primeira água. O conjunto de pessoas que trabalham nisto há muitos anos são profissionais reconhecidos internacionalmente. Tivemos a necessidade de ser melhores do que os outros porque senão não éramos levados a sério. Portanto, este trabalho que tem 20-30 anos, levado a cabo por todas as pessoas ligadas à área, fez com que atingíssemos um patamar de excelência, e hoje permite que os profissionais portugueses sejam muito requisitados e muito queridos lá fora. Por outro lado, é importante realçar o papel dos promotores e empresários que sempre acreditaram nisto…

Qual foi o 1º concerto que organizaste?

Já não me lembro. Se calhar quando andava no liceu, mas concerto à séria, já estava na faculdade, e foi quando levámos a Amália ao Coliseu em 85.

Concerto de que resultou um triplo álbum.

Exactamente. Toda a gente dizia que a Amália estava acabada e de repente lembro-me que fizemos uma conferência de imprensa e os jornalistas descobriram que Amália era a nossa artista mais internacional. Ficou para a história, porque ninguém acreditava naquilo, mas nós acreditámos. Na altura tinha uma pequena empresa e acreditámos, fomos para a frente, e foi um sucesso incrível. Trabalharam pessoas bem interessantes connosco, o Armando Carvalheda, que está na Antena 1, e a Teresa Guilherme que nos fez a assessoria de comunicação. Lembro-me que ela teve a ideia brilhante de fazermos a conferência de imprensa em casa da Amália, e, de repente, todos escreviam que a Amália era a nossa grande artista internacional. Durante a conferência, as perguntas eram do tipo:

  • Amália, quando vai à Holanda, canta para os portugueses que lá vivem, não é? – Eu, quando vou à Holanda, canto para os Holandeses.
  • Estou a ver que a D. Amália foi quatro vezes à Holanda. Não há assim tantos emigrantes por lá.
  • Oh menino, já lhe disse que canto para Holandeses.
  • A D. Amália vai duas vezes por ano ao Japão, mas não há portugueses no Japão. – Oh menino, eu estou farta de lhe dizer que eu canto para os locais.

Foi nessa conferência de imprensa que se deu o click, e, de repente, a Amália voltou à ribalta. Hoje estou absolutamente convencido, porque fiz parte disso com outras pessoas, a Teresa Guilherme, o Armando Carvalheda e o meu pai, de que o fado hoje é o que é por causa daquele concerto.

Foi esse o momento de renascimento do fado?

Não tenho dúvida nenhuma. Agora, é evidente que a gente vive num país em que as políticas culturais falharam.

Eu penso que não existem sequer.

Existem (diz com um esgar de desagrado no rosto). As políticas existem, mas são erradas.

Nós temos teatros públicos, temos programadores, mas foram incapazes de criar públicos. Por isso, falharam completamente. As únicas áreas culturais que vingaram, e que hoje têm pessoas com reconhecimento internacional, foram as que não fizeram parte das políticas públicas: o fado e a arte urbana. São as únicas, não temos outras. Não temos um pianista de topo mundial, um violinista, um violoncelista, uma cantora lírica…

Temos a Maria João Pires e o Burmester.

Estou a falar das novas gerações. Hoje tens uma geração de pessoas jovens, a Marisa, a Carminho, a Ana Moura, a Raquel Tavares, o Zambujo, a Gisela João, tens o Bordalo, tens o Vhils, a Joana Vasconcelos. As áreas em que o Estado não interveio, são as que se afirmaram internacionalmente.

Achas que o cinema, o teatro, as artes performativas não têm público?

Não podemos ser injustos. Não digo que não tenham público, mas a verdade é que não há hábitos culturais, e a criação desses hábitos é um papel do Estado. Cabe ao Estado dar uma boa educação artística nas escolas, ponto. Os meus filhos nem a escala musical fixaram, e eu às vezes interrogo-me porque é que existem aulas de educação musical se as pessoas nem fixam a escala musical e o único instrumento com que se cruzam é a flauta de bisel.

E os ferrinhos…

Não faz sentido nenhum. Nas áreas mais livres da influência do Estado, por exemplo, nos festivais, conseguimos criar grandes festivais que competem com os grandes festivais internacionais.

Como é que isso foi conseguido? Como é que de 2 ou 3 festivais de pequena dimensão, passaste para uma proliferação de festivais, muitos deles reconhecidos internacionalmente e cheios de público?

Isso é a coisa mais fácil do mundo. Se vivesses num país em que não havia fastfood, nem pizza, e se decidisses investir numa rede de restaurantes deste tipo de comida, ficavas milionário, porque a fastfood é um fenómeno global. Quando estudei gestão de empresas, foi isso que aprendi, a necessidade de estudar os mercados e não apenas o nosso próprio mercado.

O mercado dos festivais existia, mas nós estávamos fora?

Sim. Quando olhava para o calendário cultural de Madrid, Barcelona, Amesterdão, Roterdão, Berlim, Londres, Paris, todos os dias havia concertos, e olhava para Portugal e havia um concerto internacional de dois em dois meses, e depois chegávamos ao verão e era tudo.

Não teremos passado do oito para o oitenta? De todo. Hoje estamos numa situação normal, mas acho que ainda temos uma capacidade de crescimento brutal. Desde logo, porque os portugueses ainda têm um baixo poder de compra que esperamos todos que possa aumentar; depois, porque acredito que os políticos na sua totalidade vão ser honestos consigo próprios e vão disponibilizar os acessos aos espectáculos culturais com IVA reduzido. A média de IVA cobrado na Europa nos espectáculos ao vivo é 5-6% e nós estamos a 13%. As pessoas têm de ter a noção de que por cada euro que pagam por bilhete estão a dar 15 cêntimos ao Estado. É uma portagem! Os portugueses para irem ver um espectáculo têm de pagar portagens, e não faz sentido, principalmente num país com baixo poder de compra e com os hábitos culturais mais baixos da Europa. A Comissão Europeia fez um estudo em 2013 sobre os hábitos culturais nos 27 países, e o resultado é uma vergonha nacional!!! Somos o último dos 27 na leitura, somos o último dos 27 na assistência a concertos, somos o último dos 27 na assistência a espectáculos de teatro, somos o último dos 27 na assistência a espectáculos de ópera e bailado. Segundo o estudo, nos últimos 12 meses só 19% de portugueses assistiram a um espectáculo, 13% foram ao teatro, 8% assistiram a um espectáculo de ópera ou ballet e só 40% leu pelo menos um livro. Conclusão, não havendo hábitos culturais não se lêem revistas, nem se lêem jornais nem livros, mas infelizmente a nossa comunicação social ainda não percebeu isso. Neste momento, tenho por hábito ver os telejornais mais tarde, porque assim vou ver o que quero, e começo sempre pelo fim para ver as poucas notícias de cultura que passam, e ultimamente com o Mundial e a crise no Sporting, não passam nada. Volto a insistir: não há hábitos culturais.

Mas, no caso dos festivais e dos grandes concertos ao vivo, nota-se um crescimento. Conseguiram ultrapassar essa questão endémica.

Estás enganado. Alguns de nós conseguimos ter dimensão, mas quando olhamos para o mercado percebemos que estamos a léguas de ser um país normal. Para exemplificar: dados do Instituto Nacional de Estatística de 2016 – venderam-se quatro milhões e novecentos mil bilhetes para espectáculos ao vivo, o que inclui tauromaquia, circo, bailado, ópera, teatro, concertos, festivais. Quatro milhões e novecentos bilhetes, o que significa que cada habitante compra 0,48 bilhete por ano de um espectáculo ao vivo, o que quer dizer que cada português gasta oito euros e meio por ano num espectáculo ao vivo. Oito euros e meio! Nem para dois maços de tabaco dá.  Ou, se quiseres, é uma semana de cafés para quem beba dois, três cafés por dia. Reduzindo ao absurdo, os portugueses gastam 52 vezes mais em cafés do que em espectáculos ao vivo. Claro que podemos ver isto pelo lado negativo e pensar que é (e é efectivamente) absolutamente inenarrável, mas também podemos ver pelo lado positivo e antecipar a oportunidade de crescimento de mercado. Eu, desde o início, sempre vi pelo prisma da oportunidade de negócio, mas consciente de que é preciso investir, acreditar, não desistir e ter alguma sorte. Foi o que aconteceu quando decidimos levar a Amália ao Coliseu. Depois, lá veio o Estado apoderar-se, passados dois anos, quando ela comemorou os 50 anos de carreira e foram para o Coliseu bater palmas. Mas foi muito bom para ela, porque ela merecia esse reconhecimento. Em Portugal, nem o reconhecimento dos nossos artistas acontece. O Cristiano Ronaldo é o melhor jogador do mundo e nós estamos sempre a duvidar, a dizer que o Messi é melhor. Isso na Argentina é impensável. Aliás, o futebol é um case study daquilo que se deve fazer na vida, que é apostar na formação. Nós temos os melhores jogadores do mundo porque, mais uma vez, a sociedade civil se organizou há uns 20-25 anos e começaram a nascer escolas e academias de futebol pelo país inteiro. A partir daí, cada escola foi definindo os incentivos que considerava justos: os melhores jogavam na equipa da escola e não pagavam; os clubes menores começaram a ir buscar esses jogadores e a colocá-los nas suas academias; os clubes grandes, da mesma forma, começaram a contratar os melhores desses clubes intermédios. E, com isso, conseguimos ter os melhores jogadores do mundo. Hoje temos jogadores e treinadores nos campeonatos mais competitivos.

Se no ensino artístico fizéssemos isso, ia acontecer exactamente o mesmo, mas, infelizmente, não fazemos. Os Conservatórios clássicos são os mesmos desde o 25 de abril. Está tudo dito. A verdade é que, além das políticas culturais falhadas, o Estado apoderou-se dos equipamentos e, sem querer, grande parte deles estão muito vedados à livre iniciativa. Olhando para o país, vemos que quase todos os equipamentos do Estado têm programação própria, logo com muito pouco espaço para a livre iniciativa e para a criação de públicos. Eu tenho uma discussão muito antiga acerca da Casa da Música, e sei que eles ficam muito zangados comigo, mas a verdade é que a Casa da Música é a sala de ensaios mais cara do mundo! Somos um país muito rico! Apesar da Casa da Música ter uma sala de ensaios para orquestra, a orquestra ensaia na sala principal, na Sala Suggia. Quer isto dizer que a Sala Suggia só está disponível para espectáculos, se o espectáculo puder ser montado a partir das três e meia da tarde, o que na maioria dos casos é impossível. Portanto, nós, um país com défice de espectadores, com défice de espectáculos ao vivo, ainda se dá ao luxo, em equipamentos que foram construídos com dinheiros públicos e que são sustentados com dinheiros públicos, de fechar a sala para ensaios ao invés de a abrir para espectáculos para fruição dos portugueses. Coisa estranhíssima! São estas as políticas culturais públicas. E repara que eu gosto da Casa da Música, de lá trabalhar, e acho que eles têm feito um trabalho fantástico, mas depois têm isto que não se percebe. Uma vez explicaram-me que é por causa do som, da acústica. O que é que isso interessa? Eu nasci num teatro e sempre ouvi a minha família dizer que os teatros são para trabalhar todos os dias, são para ter público todos os dias, seja dia de Natal, seja dia de Páscoa, seja dia de Ano Novo.

Noto no teu discurso um total desencanto com as políticas públicas contrabalançado com um enorme optimismo em relação ao futuro do sector cultural do nosso país.

Porque acredito que se podem criar hábitos culturais. Quando me dei ao trabalho de olhar um bocadinho melhor para os números da cultura em Portugal, cheguei à conclusão que cada português vai ao museu de dois em dois anos. Portanto, nós temos aqui um problema muito sério, temos hábitos culturais muito pobres e isso vai ter reflexos no futuro, vai implicar sermos um país menos competitivo. Ora os nossos políticos têm em mãos uma grande responsabilidade, por isso é que acredito piamente que as políticas culturais nos próximos dois anos vão ter de mudar.

Em que sentido?

Do ponto de vista da gestão cultural. Acho que o Estado não tem vocação comercial, e o modelo que me parece mais adequado é o das chamadas parcerias públicoprivadas, mas não como aquelas das autoestradas que só prejudicaram o país, falo das parcerias em que o privado é que corre o risco. Parcerias em que o Estado tem de tratar da parte científica, da curadoria e da preservação, e deixar o marketing e a parte comercial com os privados. E temos bons exemplos disso. Quando fizemos a exposição da Joana Vasconcelos no Palácio Nacional da Ajuda, ao contrário do que toda a gente vaticinava, “só” tivemos 235 000 visitantes num Palácio que tem habitualmente 40 000 por ano! Em cinco meses e meio, levámos 232 mil pessoas à Ajuda. Isso significa que com uma boa ligação entre o privado e o público as coisas podem funcionar. Se estivermos atentos, vemos que o Estado não sabe promover, não há marketing, até porque no que toca à Cultura nunca há dinheiro para nada. Aliás, a questão do dinheiro é toda uma outra discussão, porque quem paga a DGPC é a Cultura e quem usufrui é o Turismo, porque 70% de quem usufrui dos nossos museus e do nosso património são turistas e, como as vendas estão a aumentar, quem encaixa as receitas são as Finanças para pagar as PPP´S. Quando voltamos ao princípio da linha, percebemos que a cultura gera dinheiro, mas isso não resulta em mais cultura. Logo, política cultural errada. O dinheiro gerado pela cultura tem de ser aplicado na cultura. Por isso é que eu sou um grande defensor da criação de um Ministério da Cultura e Turismo, obviamente com duas secretarias de estado, porque não se pode separar uma coisa da outra. Para que não aconteçam perversões como as que se passam no CCB, que é financiado pelo Ministério da Cultura, e a maior ocupação do grande auditório, ao invés de ser com eventos culturais, é com eventos corporativos! Não pode ser a Cultura a pagar o Turismo de Negócios, por mais importante que seja para o nosso país. É melhor pegar nesse dinheiro e investir em formação artística e na criação de hábitos culturais, e pôr o Turismo a pagar o funcionamento do CCB, porque é importante para o Turismo de Negócios. Não faz qualquer sentido ler o Relatório do CCB e ver que se realizaram 67 espectáculos em 2017 no grande auditório, quando um ano tem 365 dias. Não está errado, só não pode ser a Cultura a pagar. Por isso, pedir 1 % do OE para a Cultura é uma falácia, porque depende da forma como esse 1% é gasto. Com o dinheiro gerado pelas actividades culturais, pode-se fazer muito mais. A começar pela formação e pelo apoio à criação, sendo que, e continuo a insistir nisto, no fim da linha, para assistires à obra criada, pagas 13 % de IVA. Portanto, devolves o dinheiro. De que é que adianta apoiar a criação, se penalizas a fruição. Não faz sentido nenhum.

Regressemos ao NOS Alive. Quais são as tuas expectativas para esta edição?

Acho o cartaz deste ano fantástico. Vou percorrendo os nomes e gostaria de ver tudo. Não falo só de Arctic Monkeys ou Pearl Jam, ou Queens of the Stone Age, ou The National, falo de Rag’n’Bone Man, Khalid, Future

Islands, e por aí fora. Mas essa foi a estratégia que nos tornou diferentes dos outros festivais. Assumimos, desde o início, que não teríamos palcos secundários. Para nós todos os palcos são palcos principais. Quando olhas para o cartaz do Palco Sagres, nunca mais acaba de bons artistas: At The Drive-In, Yo La Tengo, Future Islands, e tantos outros. A expressão palco secundário é uma coisa que nos irrita, porque um palco secundário sugere um espaço de actuação para artistas menores. Não temos artistas menores. Quando muito, temos artistas que ainda não são conhecidos. Lembro o tempo em que tínhamos o Palco Blitz nos festivais, que era onde os artistas emergentes portugueses tinham uma oportunidade de tocar para um grande público. No NOS Alive também trabalhamos com artistas emergentes, o Coreto que tem uma programação de artistas da nova cena musical. Mas, para nós, são todos importantes.

Uma das críticas comuns aos festivais é a de apostarem pouco nos artistas nacionais.

Fui bombardeado muitas vezes com essa crítica e respondo sempre da mesma forma: a programação de um evento é feita com artistas que vêm fazer uma apresentação mais exclusiva. Os Pearl Jam não tocam em Portugal desde 2010 nem vão voltar nos próximos tempos. Portanto, é um concerto exclusivo. Com os artistas portugueses não consegues fazer apresentações exclusivas, porque eles têm de tocar em diversos lados. Conseguimos isso com os Humanos. As pessoas têm de perceber que ninguém vai dar 65 euros por um bilhete para ver uma banda que pode ver de borla no dia seguinte ou por 15 euros, daqui a um mês, noutro local qualquer, com uma estrutura de custos diferente. Mesmo assim, a nossa programação é 50 % portuguesa e as pessoas nem dão por isso.

E a ideia de levar comédia e fado para um festival?

Surgiu da necessidade de termos de ser arrojados e diferentes dos outros festivais. Se percorreres os festivais internacionais, todos têm Arctic Monkeys ou The National ou qualquer dos outros grandes artistas. Então, era importante inovar, e lembrámo-nos de trazer a comédia, o humor para o Alive. No início ninguém acreditou que funcionasse, nem os próprios artistas. E, afinal, os espectáculos estão sempre cheios. O que é que conseguimos com isso? Conseguimos criar um movimento que hoje influencia o que se faz no resto do país. Vais aos grandes eventos nacionais e internacionais e reparas que já misturam música com humor no mesmo palco.

Com o fado, decidimos trazer a nossa música mais emblemática para um festival, e aproveitámos o facto da Rua EDP replicar edifícios que existem em Lisboa para instalar nela uma réplica do Clube do Fado, como costumo dizer na brincadeira, a primeira casa de fados itinerante do país, e por onde já passaram artistas como os Dead Combo, Tiago Bettencourt, Raquel Tavares, António Zambujo, Jorge Palma, muitos com carreiras fora do mundo do fado, embora conectados com o fado de alguma forma.

Além do cartaz, quais são as grandes novidades deste ano?

Nós habituámo-nos a surpreender o público. Por isso, todos os anos temos pequenos apontamentos. Quando fizemos 10 anos, decidimos acabar com o pouco pó que existia no recinto e colocámos uma relva artificial no terreno. As pessoas chegaram e ficaram espantadas. Eu até passei a dizer que somos o único festival da Europa onde se pode andar de pé descalço (risos). Temos fotos de crianças a andar descalças no recinto. Estamos sempre a tentar surpreender, e este ano, com o apoio de um patrocinador, vamos surpreender de novo. Mas prefiro não adiantar por agora.

Tem sido importante a estabilidade que existe na relação com os principais patrocinadores?

Muito, porque eles são fundamentais para nós conseguirmos praticar os preços baixos que praticamos em relação aos restantes festivais europeus. Os patrocinadores é que nos ajudam, não só a praticar os preços que praticamos como a investir cada vez mais no festival. Um festival que vende os bilhetes todos, para investir mais, sem reflectir esse investimento no preço dos bilhetes, tem de arranjar patrocínios. De 2017 para 2018 aumentámos muito ligeiramente os bilhetes, porque sentimos necessidade de investir mais no cartaz e em infraestruturas. Como, por limitações de espaço, não podemos vender mais bilhetes, só temos uma forma de realizar estes investimentos, ir buscar mais receita. Este ano temos um patrocinador novo que, além de nos ajudar a investir mais dinheiro, também nos ajudou a ter maior visibilidade internacional: a Tezenis. Somos o primeiro festival em Portugal a ter uma colecção de roupas produzida por uma marca global. É a colecção Tezenis Nos Alive que está à venda no mundo inteiro. Temos corners nas lojas de todo o mundo, além de montras em todo o país e nas principais lojas de Madrid, Barcelona e Londres. Com esta parceria, estamos a promover não só o nosso festival como o nosso país. Como, nos últimos dois anos, somos a única marca portuguesa a fazer publicidade no metro de Londres. Queremos ir sempre mais longe, e, de facto, são mais os pedidos para comprar bilhetes de fora do país do que de cá. Cada vez temos mais gente a vir de propósito a Portugal para ver o festival. Este ano, por exemplo, vamos ter como convidado o diretor da Rolling Stone, portanto, estamos a vender o país. Acima de tudo, estamos a promover Portugal.

Achas que essa percepção existe?

Não. Acho que temos mais reconhecimento lá fora do que cá dentro, apesar de termos muita notoriedade cá dentro. É a história do Ronaldo e do Messi (risos).

Santos da casa não fazem milagres.

É um problema cultural. De uma forma generalizada, o que é português e tem sucesso trata-se com desdém. A não ser que venha de fora. É mais importante uma Web Summit, do que um Nos Alive. Muitas vezes, desafio as pessoas que pensam desta maneira a tentarem comprar uma viagem de avião na Internet no fim de semana do Nos Alive e a tentarem comprar a mesma viagem no fim de semana de outros grandes eventos, ou a tentarem perceber o que se passa no alojamento em Lisboa durante o nosso fim de semana. É o que é. O que é que interessa? Mas há reconhecimento. Também não quero parecer injusto. Há um grande reconhecimento, desde logo, das pessoas que vão ao Nos Alive, mas a verdade é que lá fora esse reconhecimento é muito maior. Isso para mim é fantástico, porque promove o país, e isso é o mais importante. Nós vivemos num país fantástico. As pessoas não têm noção da capacidade dos portugueses. Por exemplo, já reparaste nos microfones das televisões que têm aquela esponja? Um corta-vento? As pessoas não sabem, mas aquilo é uma invenção portuguesa. Foi um engenheiro de som da RTP, que era um engenhocas (criou muita coisa, principalmente na área da mobilidade condicionada – cadeiras de rodas e aqueles elevadores para subir escadas) e que, no início dos anos 70, inventou os corta-vento para os microfones, porque lhe fez confusão alguém estar a fazer uma entrevista ou reportagem na rua ou num jogo de futebol e o vento entrar para ali dentro. Claro que não registou a patente e, hoje, toda a gente usa no mundo inteiro. Uma coisa tão simples que é global.

Os portugueses são um povo genial que, infelizmente, nunca foi bem governado. Nós podíamos estar a viver muito melhor, se não estivéssemos a pagar juros, e estamos a pagar juros porque alguém gastou o que não devia, e não foi para investimento, foi um “fartar, vilanagem”. É uma pena.

 

Por: João Moreira

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