Um sopro de saudosismo

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Final de tarde confusa, imersa entre uma primavera convicta e um inverno ganancioso, mergulhada em aroma de alfazema. O chilrear dos passarinhos faz cócegas à frescura narrativa do vento, relembram o pulso da terra. Brotar telúrico de vida.

Escorrego para as primeiras notas do piano da rotina. Mudaram-se os tempos, ajustam-se as vontades, as prioridades, os sentimentos. Percebi que algo invisível, que anda de baloiço de mão em mão, beijo em beijo, abraço em abraço se instaurou nas nossas vidas de forma majestosa, egoísta, distópica e ubiquista. Ando arreliada com isto.

Sinto que o mundo parou. O movimento de rotação permanece, mas em silêncio. Como uma marcha fúnebre, onde os pensamentos dolentes caminham vertiginosamente na galeria fria e lúgubre dos sentimentos.  O mundo mudou. As pessoas cumprimentam-se à distância nas ruas, é partilhada e sentida a nossa condição de vulnerabilidade.  As questões ontológicas assaltam-nos como macacos esfomeados, assumem o palco principal das nossas preocupações. Nestes interstícios, trocam-se olhares arqueados de complacência. Sussurram-se boas tardes, suspira-se por esperança, por força para continuar a acreditar.

A teimosia da primavera persiste. É um momento de contemplação. Estamos introspetivos, pensativos, as nossas preocupações mudaram, maturaram. Já não corro para apanhar o elétrico, já não me despacho para conseguir chegar a tempo ao ginásio, ou ao fecho do supermercado. Tudo ganhou uma nova forma, um novo tempo, aquele tempo que se tinha esfumado há uns tempos. São momentos em que conseguimos tatear as emoções, dar-lhes colo, atenção. Antes não existia tempo, agora o tempo veio alumiar as nossas verdadeiras necessidades. Descobrimos que apesar da incomensurável vastidão das tecnologias elas esgotam-se no final destes dias grávidos de tempo. Ansiamos sofregamente por um passeio num campo verdejante, numa praia, ir a um café, errar pelas ruas, qualquer sítio que nos afague a alma. Percebemos que precisamos de nos abraçar, de nos olhar, de estar. Quantas vezes tivemos estas oportunidades que nos foram açambarcadas pelo virtual? É o momento para nos reconectarmos com a nossa génese. É tempo de reflexão. Quando tudo passar, penso que ninguém irá correr atrás do iphone 12. Cogito esta visão com a serenidade de uma árvore. Estamos a ir às fundações do ser, estamos a beber das raízes, estamos a fazer marcha atrás para o antropocentrismo das relações e emoções.  Estamos todos os dias a perceber o que fizemos, o que somos, o que queremos, o que importa. Retrocesso ao ponto de partida, o nascimento da essência, essa essência que já estava coberta com uma sublime película de pó, que se foi depositando do entra e sai do superficial, da correria exigida, da distração.

Mesmo nestas horas mais opacas a primavera balbucia. Os nossos pensamentos ressoam até uma eternidade próxima que nos faça deleitar com uma Alegoria de Primavera de Botticelli. Esperamos que o amanhã seja diferente, que a curva esmoreça, que o invisível deixe de ser tão visível. A dúvida resiste. Estamos sob a égide baça de uma recruta exigente, não sabemos quando a intempérie irá acabar. É esse desconhecimento sáfaro, essa impossibilidade de gestão do sofrimento que nos leva à desistência. É sempre o psicológico quem manda, quem domina, o físico vem depois. É este desconhecimento que me desconcerta. Por quanto tempo vai caminhar a minha vida de fato de treino? Quando começará o corpo a utilizar as suas reservas de gordura, de paciência, de tolerância? O engano é mais tranquilizador que a dúvida. É a dúvida que leva à autofagia.

Vivemos numa época de solidão fecunda, concentrada e solidária. Um jejum reflexivo que nos leva ao íntimo redondo das inquietações, que não se vêm da forma como elas são, mas sim da forma como somos. Estamos mais conscientes de nós, não precisamos, tanto de espelhos para nos contemplar, para ver imperfeições. Começamos a sentir de forma palpável, no nosso interior, o que somos, não precisamos que nos digam. Este retiro forçado recentrou-nos com a nossa natureza, conhecemo-nos.

Os dias continuam a nascer no crepúsculo, a primavera bafeja, não está de quarentena, o sol aquece-nos a esperança, a primeira oração global do século XXI, diz-nos Tolentino Mendonça. Tenho esperança, muita. A esperança é o sonho do Homem acordado. Não estamos adormecidos. Vamos sair da mesma forma que entramos, juntos, mas mais fortes!

Por Regina de Azevedo Pinto

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