The show must go on – O início do fim do Sabotage?

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As luzes começam a acender-se. Hugo e António, os técnicos de som, correm freneticamente de um lado para o outro, enquanto os Thee Eviltones se preparam para fazer o soundcheck. Tiago, o único português desta banda de Nottingham, faz soar o seu baixo, sob o olhar atento de Carlos, um dos proprietários do Sabotage. Como é habitual, nada pode falhar nesta casa do rock de Lisboa, que aguarda pela ordem de despejo. Carlos não esconde a sua tristeza: “Se fechar, este espaço vai fazer falta à capital. É possível que já não estejamos aqui quando esta reportagem sair”.

O histórico clube de rock’n’roll da Rua de São Paulo, no Cais do Sodré, teve a sua génese em 1999, a partir da mente de três pessoas: Carlos, Zé Maria e Paula, de seus sobrenomes Costa, Sousa e Flores. Nesse ano nasceu a Sabotage Records, que distribuía os álbuns e vinis editados pela Zounds, dos mesmos três proprietários. Carlos vendia os discos, Zé Maria produzia e organizava os concertos e Paula tratava da contabilidade, já que essa era a sua profissão e “apenas estava no mundo da música por paixão”, como a própria afirma.

As dificuldades surgiram dez anos depois. O advento do streaming e do Youtube tornou o negócio da produção discográfica inviável. Zé Maria relembra quando o público começou a chamar quem comprava os discos de “otários”, contentando-se com os downloads dos álbuns. Nas palavras de Paula, “havia músicos para promover, mas os discos não vendiam”. Muitos desconhecem onde muitas das bandas que hoje enchem o Primavera Sound e o Paredes de Coura começaram a sua presença em terras lusas. “Toda a gente adora Black Angels, Devendra Banhart e LCD Soundsystem, mas não sabem que fomos nós quem começou a distribuí-los em Portugal”, afirma a contabilista.

Fast Eddie Nelson e muita cerveja

As dificuldades nunca os detiveram. O Lisboa Bar, na Rua do Carmo, do qual Carlos fora proprietário em 2004, inspirou Zé Maria a abrir um espaço de concertos, com “música ao vivo e onde houvesse contacto com as pessoas”. Imaginando um Studio 54 à lisboeta, após ver o filme de Mark Christopher sobre a histórica discoteca norte-americana, Zé Maria iniciou a procura de um espaço. Os percalços surgiram logo no início, a começar pelos “balúrdios que os proprietários pediam pela renda”, relembra Paula. Após três longos anos, o número 16 da Rua de São Paulo surgiu como uma luz no fundo do túnel. Carlos relembra o espaço “abandonado há 19 anos”, onde Zé Maria encontrara as paredes “cheias de teias de aranha e as mesas ainda com o menu do dia”. As más condições não os fizeram desistir. Carlos olhava à sua volta e sentia “o poder do rock’n’roll naquelas paredes negras”, o mesmo poder que causara “o friozinho na barriga” de Zé Maria e o fizera constatar: “este é o espaço”. “Quando entramos pensamos: não é perfeito, mas dá para ter um palco, para ter um bar, para ter um backstage”, relembra a contabilista.

O nome que Zé Maria escolhera para a distribuidora por eles detida no passado serviu como uma luva na sua nova casa. Inspirado pelos sabots, os sapatos usados pelas operárias francesas do século XIX para impedir a produção industrial, o título representava um ato de transgressão. “Queríamos romper com o convencional, surpreender as pessoas, daí o nome Sabotage”, afirma Paula.

Após o licenciamento para local de concertos e o investimento de mais de 50 mil euros feito na renovação do espaço, a inauguração aconteceu a 30 de abril de 2013. Carlos e Paula não escondem o riso ao relembrar “a correria para comprar as bebidas” para a abertura e os avisos a todos os amigos. Como nenhuma inauguração pode abdicar de animação e álcool, o público teve direito a imperiais gratuitas, enquanto apreciava as guitarradas do barreirense Fast Eddie Nelson. A casa estava cheia, não surpreendendo a contabilista. “Havia cerveja à pala! Claro que veio toda a gente!” relembra entre risos. Depois de uma perda sucessiva de locais de espetáculos, a cena rock lisboeta renascia através deste bar.

Amor ao rock’n’roll

O trabalho continuou nos seis anos após a abertura. Carlos sempre se preocupou “em alimentar o clube com programação semanal”. Após os concertos, o Sabotage está aberto como discoteca, mas a prioridade continua a ser “dar aos músicos novos um local onde possam emergir”, avisa Paula. Carlos olha para os cartazes que preenchem as paredes do seu escritório, nostálgico com as “1001 bandas” que já atuaram naquele espaço. Desde Pop Dell’Arte a The Parkin- sons, desde Sinistro a Bizzarra Locomotiva, desde Bed Legs a Besta ou a 10000 Russos.

São estes os nomes que o público vê, ignorando os funcionários deste espaço. “Toda a gente envolvida com isto trabalha bastante! Todos dão o litro, desde a equipa técnica à malta do bar ou ao porteiro”, aponta Carlos. O ainda distribuidor de discos da Clean Feed Records recorda “os ordenados modestos” recebidos pela equipa. “Toda a gente aqui trabalha por amor à música, por amor ao rock’n’roll”, afirma.

Grupo francês compra o edifício do Sabotage – A ganância do Engenheiro Queirós

As más notícias chegaram no início de 2019. A Mainside, empresa proprietária do imóvel onde o Sabotage se encontra, resolveu vendê-lo ao grupo francês Keys Asset Management. Os investidores gauleses pretendem transformar o edifício num hotel, que ficaria incompleto sem um restaurante. 25 anos depois, o número 16 da Rua de São Paulo vai voltar à sua utilização original. Zé Maria usa a ironia para disfarçar a sua indignação. “Mais um restaurante no Cais! Realmente há poucos, não é?”

A onda gentrificadora que atingiu a capital nos últimos anos está a engolir os espaços noturnos do Cais do Sodré. As rendas sobem para preços impossíveis de comportar. “Meio milhão de euros por um armazenzito! Achas que alguém consegue pagar isso?” vocifera Carlos.

A procura de um espaço tem ocupado o tempo do trio nos últimos meses. Mas um espaço com rendas comportáveis e as condições necessárias tem sido difícil de encontrar. A Câmara Municipal surgiu como uma possível benemérita, mas o pedido de ajuda não deu resultado. Paula lembra-se de ouvir um dos assessores do vereador da Cultura afirmar “o quanto este espaço é importante para a cidade” e “quão mau será perdê-lo”. “Nós somos agentes privados, mas prestamos um serviço público”, relembra Zé Maria. Mas no final, ninguém ajuda a arranjar um espaço.

As suspeitas de o arrendamento em 2013 ter tido como único objetivo a renovação do espaço sem encargos para a Mainside não desaparece. O espaço estava “completamente podre”. Os proprietários do Sabotage devolvem-no após a renovação e a Mainside não gastou um cêntimo. Terá sido este o seu plano desde o início? Talvez nunca se venha a saber a resposta.

A Mainside é detida pela família Queirós de Carvalho, encabeçada pelo engenheiro José Queirós Carvalho. Trata-se do mesmo proprietário da Pensão Amor e do LX Factory. Este dono do Cais adquiriu os imóveis de- gradados nos anos 90, enquanto ainda trabalhava na autarquia alfacinha. Agora que o vendeu ao grupo francês, os seus inquilinos enfrentam uma ordem de despejo.

Carlos tenta manter-se otimista, mas o fim anunciado do seu espaço continua a preocupá-lo. Subitamente, o som dos Asimov faz-se ouvir, como se alguma divindade do rock’n’roll lhe dissesse para não desistir. A banda de rock psicadélico prepara-se para começar o seu concerto. Fábio, José e Daniel, mais conhecidos como Freezer, Zé e Dilúvio colocam-se na primeira fila, prontos a assistir à atuação deste Sábado. Carlos observa o espetáculo enquanto brinda com um rapaz à sua direita e o rock’n’roll soa durante a madrugada.

 

Por Pedro Martins*

*Estudante de Jornalismo e Comunicação na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra.

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