Quando eu era velho ainda estava só. Era cedo e toda a gente não tinha ainda aparecido. Havia uma natureza morta de romãs vermelhas em casa, que se limpava de aranhas com flanelas puídas. Ainda as calças roçagavam, ainda o passo não estugava, ainda era velho com óculos de ver ao perto no fundo do nariz-escorrega e o resto do mundo era uma janela, uma janela sem olhos de ver ao longe. E eu, ainda velho, ainda sozinho, ainda com a cova prós pés, desfocava o olhar para ver filmes da frente para trás, eu não procurava o fim, eu era velho e sabia como tudo acaba, eu procurava o princípio, o princípio de tudo, o princípio de qualquer coisa, o bang original, cada primeira vez de maravilhamento que só o coração virgem acolheria. Quão verde seria o meu vale?
“Eu quase podia desejar estar aí deitado no teu lugar”, diz Gruffydd a Huw, miúdo inválido preso à cama, “eu quase podia desejar estar aí deitado no teu lugar se isso significasse ler este livro outra vez pela primeira vez”. Na sua mão, “A Ilha do Tesouro”, que John Ford faz folhear brevemente nas mãos. E eu perguntaria de novo: quão verde será o meu vale, e o vale daqueles que virão?
No Vale Abraão há um laranjal que eu queria ver pela primeira vez, um plano contra-picado de Manoel de Oliveira que acompanha a bovarinha de fita azul no chapéu, afastando com as mãos as laranjas muito laranja na viagem para o seu sacrifício final, iria ainda vê-lo pela primeira vez para, como Agustina, nascer velho e morrer criança, desenvelhecer sem os relógios do absurdo de Benjamin Button, relógios que andam para trás no livro de Fitzgerald de que se faria filme pior mas ainda assim eu veria só por causa dela, a atriz mais bonita do mundo, Cate Blanchett, que nasceria do outro lado do planeta curvo que se não via daquela janela curta.
Não tinha retratos de Dorian Gray sempre velho, aquelas naturezas mortas seriam ainda sumo de romãs vermelhas escorrendo pelo canto da boca. Pensava: haverá uma vela que tremula até que o pau de cera por completo evanesça, haverá fração e refração, haverá um primeiro cheiro a sopa que se alojará mansamente, uma primeira queima de gelo das mãos na escola primária, um trenó de liberdade chamado Rosebud. Pensava: haverá a primeira morte e um estrondo lancinante de metais em torção num acidente de brutal autocarro, haverá um primeiro beijo, um primeiro amor, a descoberta, a viagem, a inocência, haverá ilhas de tesouros dos teus olhos nos meus, mulher, haverá uma mulher. Pensava: nos filmes há sempre uma mulher, as mulheres pérfidas de Buñuel, as mulheres de desejo de Ang Lee, as mulheres apaixonadas de Ophüls que dançam na pista, Danielle Darrieux rodopiando com Vittorio De Sica até lhe entre-fechar a porta amando-o sem princípio nem fim, “je ne vous aime pas” e sussurra, “je ne vous aime pas” e estremece, “je ne vous aime pas” e agora que faço?, as mulheres de Ophüls que se ajoelham ao piano e andam de baloiço, Joan Fontaine que escreve a carta de amor mais triste de sempre “para ti, que nunca me conheceste”, Louis Jourdan baralhando caras na memória à procura mas nada, perdeu-a, “se ao menos pudesses ter reconhecido o que foi sempre teu, pudesses ter encontrado o que nunca perdeste, se ao menos…”, mas nada, nada, o pianista procura debaixo dos lábios e nada, “o curso das nossas vidas pode ser mudado por coisas tão pequenas”, eu saberia, como ele, que “nada acontece por acaso, cada momento é medido, cada passo conta”, como Gatsby aprende que o tempo não dobra, que não se retoma um amor suspenso durante cinco anos de vida, que Daisy foi tudo o que quis antes e depois de conquistar tudo o resto e tudo o resto é nada, “eu amava-a, e este é o princípio e o fim de tudo”, ele falha sempre a luz verde no cais, “e assim prosseguimos, barcos contra a corrente, arrastados incessantemente para o passado”, para o futuro?, futuros de sem sabermos ainda quão verdes serão os nossos vales, imaginando se “a felicidade é apenas uma essência, que tu terás apenas uma ou duas vezes na vida e depois continuarás a viver com esse sabor na boca, desejando teres tido a sua completude sólida entre os dentes”.
Buñuel não filmou apenas Susanas traidoras e Tristanas inválidas depois da explosão do desejo, filmou por fim “Este obscuro objecto do desejo” sobre um homem que não consuma o fogo que o consome por uma mulher, a partir do mesmo livro de Pierre Louÿs de que partiu Sternberg para esse filme que eu quero ver pela primeira vez, “The Devil is a Woman”, o diabo é uma mulher, não haverá sado-masoquismo mais triste e mais brilhante do que a obcecação de Sternberg por Marlene Dietrich, atriz-mulher, mulher-diabo, diabo de que Benárd da Costa escreveu como ninguém, manipuladora do corpo e do desejo e da fogueira dos homens, falsamente segura como todas as mulheres que afastam quem amam porque se afastam do amor final, Marlene que deixa o resto da vida com o homem já embarcado no cais do comboio para afinal ficar no pequeno lugar onde é rainha acendendo cigarros. Há sempre comboios nestes filmes, comboios de chegada, quase sempre comboios de partida, com gente que parte, gente que fica e gente que afinal não vai, gente que se ilumina, gente que se elimina, gente que ainda não sabe que a indecisão de ir é a decisão de perder o que seria, que o que não é tomado pelos dedos não poderá ser retomado no anel da vida.
Agora eu já não sou velho e do vale vejo o desenho da janela ao longe. Eis-me na primeira vez, sem guarda-vírus na boca nem máscara-cachecol, não tenho medo de ter ganho a velhice e depois dela a inocência, dispondo-me na ingenuidade do pasmo original, de fazer de cada filme um plano realizado para mim. Não tenho futuro, só passado. Não tenho passado, só futuro. Quando eu era velho eu ainda sabia: a esperança é a primeira a viver.
Por Pedro Santos Guerreiro
Referências:
How Green Was My Valley/O Vale Era Verde, filme de John Ford (1941); A Ilha do Tesouro, livro de Robert Louis Stevenson (1883); Vale Abraão, filme de Manoel de Oliveira (1993) a partir do romance de Agustina Bessa Luís (1991); O Estranho Caso de Benjamin Button, livro de F. Scott Fitzgerald (1922); O Retrato de Dorian Gray, livro de Oscar Wilde (1890); Citizen Kane/O Mundo a Seus Pés, filme de Orson Welles (1941); Susana, Demonio y Carne/Susana, filme de Luis Buñuel (1951); Tristana/Tristana, Amor Perverso, filme de Luis Buñuel (1970); Se, Jie/Lust, Caution/Sedução, Conspiração, filme de Ang Lee (2007); Madame de…, filme de Max Ophüls (1953); Letter from un Unknown Woman/Carta de uma Desconhecida, filme de Max Ophüls (1948); O Grande Gatsby, livro de F. Scott Fitzgerald (1925); Cet Obscur Objet du Désir/Este Obscuro Objecto do Desejo, filme de Luis Buñuel (1977); La Femme et le Pantin, livro de Pierre Louÿs (1892); The Devil is a Woman/O Diabo é Uma Mulher, filme de Josef von Sternberg (1935).