Em Março de 2008, a Fundação EDP lançou Electra, uma revista de crítica e reflexão cultural, social e política, dirigida por José Manuel dos Santos, administrador e director cultural da Fundação, e editada pelo jornalista e ensaísta António Guerreiro. No seu evento de apresentação contou com a presença de Boris Groys, um dos mais relevantes pensadores do nosso tempo, como que antecipando a aposta num projecto “que interroga o espírito do tempo, as tendências, as ideias, as imagens, as mitologias que configuram e fazem mover a nossa época.”
Sete edições passadas, numa fase de afirmação fora das fronteiras do país, nomeadamente no Brasil, conversámos sobre as grandes questões do nosso tempo, com José Manuel dos Santos, o escritor, curador e programador cultural, membro da Academia Nacional de Belas Artes e do PEN Clube de escritores, que dirige a Electra desde a sua fundação.
Como surgiu a ideia de editar a Electra?
Criámos a Electra, porque achámos que esta revista não existia em Portugal e fazia falta. E fazia falta porquê? Porque é uma revista que tenta pensar o que vai acontecendo. Pensar o presente, ainda que o perspectivando naquilo que ele é, um ponto entre o passado e o futuro. Portanto, a partir do presente, olhamos o passado e também tentamos adivinhar, sempre com o sentido de risco que isso implica, porque sabemos que o futuro está sempre em aberto, algumas linhas, algumas tendências do que se está a desenvolver, bem como alguns riscos, algumas ameaças e as coisas positivas que se nos deparam. No fundo, olhar para tudo que acontece à nossa volta. Costumamos citar uma passagem do Agam Bam que diz que “aqueles que estão muito imersos no presente, não conseguem ver, porque estão demasiado colados a ele”. Portanto, precisamos, para ver o presente, de ter alguma distância. Essa distância obtém-se de várias maneiras. Desde logo, através de uma distância crítica, que nos permite olhar, tendo em conta as lições da história e tendo, também em conta, o pensamento sobre essas lições. Ao mesmo tempo, percebermos que há muitas coisas que hoje nos parecem muito importantes e que são pouco importantes e outras, que pelo contrário, nos parecem pouco importantes e são talvez as mais importantes. Nós vivemos num tempo dito de opinião, fala-se até das democracias de opinião, mas nós, de uma maneira perentória e declarativa dissemos que a opinião não nos interessa para nada. A opinião é boa entre amigos, nas mesas de café, e achamos aliás, vemos aliás com maus olhos que tudo se tenha enchido, as televisões, os órgãos da comunicação social, de opinião ligeira, mal fundamentada e sensacionalista, em que todos falam de tudo e de nada e, no fundo, a única coisa que se pretende com isso, e que também é um dos traços do nosso tempo que já tinha sido profetizado pelo Guy Debord e pelos situacionistas, é, fazer parte da sociedade do espectáculo. A opinião simula conflitos que não existem verdadeiramente e, mesmo quando existem, são normalmente maus conflitos, conflitos primários, conflitos superficiais. A opinião tornou-se um exercício do narcisismo, pornográfico às vezes, em que a pessoa apenas escorada naquilo que considera ser o seu nome, porque não tem obra e tudo que disse não interessa nada, tudo o que previu não se realizou, continua a opinar, sobre tudo e sobre o seu contrário e as pessoas a ouvi-lo. Isso é o mais extraordinário, é as pessoas a ouvi-lo, a ouvi-los. Por- tanto, a nós não nos interessa a opinião, não temos colunas de opinião. Quer o António, quer eu, já escrevemos crónicas de opinião, mas não viemos para aqui fazer opinião.
O que procuramos quando queremos tratar de um assunto, de um tema, quando queremos escrever sobre qualquer coisa, ou que alguém escreva sobre qualquer coisa, vamos investigar as pessoas que disseram coisas interessante sobre esse tema e que têm obra fundamentada e pública sobre o assunto. A nossa preocupação é sempre a de convidar as pessoas que têm autoridade de terem pensado determinado tema e que melhor escreveram sobre ele, mais fundamentadamente e muitas vezes, até, de maneira mais extensa, porque significa que têm uma convivência com esse tema e com as próprias metamorfoses que esse tema foi tendo à medida que foi sendo analisado, que a valorizamos. Portanto, a Electra é uma revista de pensamento, uma revista de crítica cultural que fazia falta em Portugal e que considerámos integrar-se de forma perfeita nas actividades culturais que Fundação EDP tem vindo a desenvolver. A Fundação EDP é uma fundação de cultura contemporânea, que tem um Museu de Arte, Arquitectura e Tecnologia, que, além disso desenvolve uma intensa actividade de inovação social, tem um arquivo de todo o património documental ligado à energia e à electricidade, que actua como mecenas cultural nas mais diversas áreas, portanto, apresentava um cenário bom para uma revista de pensamento sobre o tempo.
Em que tempo é que vivemos?
Nós vivemos um tempo que tem, pelo menos duas coisas que saltam à vista: é um tempo perigoso, imprevisível, mas é também um tempo de exaltação. Todos os tempos são isto, mas eu acho que o nosso é claramente ainda mais do que muitos outros foram. Não direi que é o mais de todos, mas é claramente isto, que acaba por ser complexo e contraditório. É, também, um tempo de surpresas e de imprevistos. E se a incerteza, por vezes, provoca angústia, por outro lado estimula o desejo de procurar, de pensar, de investigar. No fundo, o que nós procuramos é ir desenhando o rosto do tempo.
Que se reflecte na escolha dos temas da Electra.
Exactamente. Desde o primeiro número é isso que estamos a fazer no dossier, mas também noutras secções. O primeiro número, a pergunta era: “Que tempo é este que estamos a viver? Que época é esta? Usamos até uma expressão irónica sobre a sua própria época, que tempo é este que estamos a viver. No número seguinte, a partir de uma frase do Flaubert que diz que “a estupidez é de todos os tempos, mas cada tempo tem a sua estupidez”, interrogámo-nos sobre a estupidez mais própria e característica do nosso tempo. No terceiro número falámos de viagens e do turismo, este fenómeno universal que denuncia muitas outras coisas, o frenesim com que se viaja, mas ao mesmo tempo, muitas vezes, a superficialidade, os efeitos que isso tem, bons e maus. Nós não temos uma visão catastrofista do que está a acontecer, nem uma visão exageradamente optimista, limitamo-nos a olhar para as coisas e procurar enfrentar a sua complexidade, o contraditório delas, as contradições, para tentar ir desenhando o rosto do tempo. No quarto número, falámos da comunicação, dos meios de comunicação, das redes sociais. Hoje, a comunicação configura o nosso tempo que é, por seu lado, configurado por ela. Sabemos que é um sector em profunda mudança, até por razão dos avanços tecnológicos e das mutações tecnológicas, mas também em profunda crise, está mergulhado numa profunda incerteza, numa profunda precariedade. Tudo o que é hoje, amanhã já não é, tudo o que parece que vai ser, quando acontece, já não é o que parecia ser e, portanto, esse também é um tema fundamental do nosso tempo. No quinto número abordámos a questão da juventude. Chamámos a esse dossier, Jovens para Sempre, porque todos queremos ser jovens toda a vida e ao mesmo tempo estamos a fazer coisas que colocam as gerações mais jovens nas maiores dificuldade, na maior incerteza e, muitas vezes, com o futuro tapado.
No sexto número falámos do dinheiro. Obviamente que o dinheiro é um tópico fundamental do nosso tempo. Na fase actual do capitalismo, tudo se tornou dinheiro, tudo é medido pelo dinheiro, desde a cultura e da arte, à comunicação, à política. Dá ideia de que o dinheiro é o único símbolo universal e o único meio verdadeiramente universal de troca de tudo, e tudo se reduz ao dinheiro e tudo parte do dinheiro e tudo chega ao dinheiro. O último número é sobre os animais. Porque é que, de repente, os animais se transformaram numa das preocupações prioritárias? Quisemos perceber as implicações políticas que isso tem, e interrogámo-nos sobre os direitos essenciais dos animais e os limites a esta espécie de culto e de idolatria e o que é que isto tudo significa em relação aos grandes problemas filosóficos. Porque é que a filosofia sempre lidou sempre mal com o tema dos animais? O que é que o humanismo fez e representou em relação aos animais? O humanismo parecia ter em si todas as virtudes e ser uma espécie do grande ideal universal ao tornar o Homem o centro de tudo, por isso olhou para os animais de uma maneira que teve consequências gravíssimas para eles.
Já tem uma ideia dos próximos temas?
Sim e já poderei anunciar. O próximo número é sobre a memória e esquecimento. Nós vivemos um tempo em que se passa a vida a falar da memória, em que se fazem actos de memória, em que se exige o respeito pela memória. Houve uma altura em que isso se traduziu em pedidos permanentes de perdão e desculpa por parte do Papa, de Chefes de Estado, de toda a gente, sobretudo, com o fim dos totalitarismos e da necessidade de não esquecer. Mas, ao mesmo tempo, dá ideia que esse culto da memória, e essa também é uma das contradições do nosso tempo, é o melhor aviário de esquecimento. Dá ideia que queremos ter a memória para nos libertamos dela sempre e para a limpar através de actos, normalmente, fáceis e gratuitos.
Uma espécie de alívio colectivo da consciência, que na maioria das vezes é feita de forma superficial.
Muito superficial e que, no fundo, é apenas o salvo conduto para desobrigar a consciência de qualquer culpa. É um tema, esse sim, da filosofia. Nós, muitas vezes idolatramos a memória apenas, mas como Nietzsche já tinha dito, também precisamos do esquecimento para viver. Portanto, vai ser uma edição muito interessante, em que falaremos desde a memória política, à memória e redes digitais. Depois, a seguir, o tema será a velocidade, que é outro dos temas fundamentais do nosso tempo. Tudo acelerou e, portanto, é importante perceber os efeitos que a velocidade teve sobre tudo e sobre todos. Se repararem, estamos fazendo um retrato inacabado do mundo em que vivemos, não só no tema de cada edição, mas em todas as outras secções, que não perdem de vista aquilo que vai acontecendo. Temos temas urbanos que são fundamentais; temos interpretações a partir de citações que consideramos inteligentes e adequadas para alguns dos problemas que estamos a viver; temos diários; temos memórias; temos sempre um portfólio de um artista. Nós dizemos duas coisas da Electra, que é uma revista que se lê e que se vê e que consideramos, poderia ser um livro, ou um livro que parece uma revista, no sentido em que é uma revista que não desactualiza facilmente. É, portanto, uma revista para coleccionar, porque alguns dos temas tratados, podem ser revisitados e acrescentados mais tarde.
É uma aposta curiosa, num momento em que o mercado editorial atravessa uma crise tremenda.
Esse é um caminho que está a ser, de alguma forma desenhado no mercado editorial em Portugal, que é o que nos interessa, mas eu diria no mercado europeu. Cada vez mais aparecerem algumas revistas que representam um nicho, uma preocupação de nicho, mas muito direccionadas, em particular, para as questões culturais. Durante décadas existia uma lógica ou existiu uma lógica de tomada dessas áreas pelos jornais, pelas revistas generalistas, que, de repente, se esqueceram essas áreas, cortaram. Hoje, os jornais praticamente não têm cultura, praticamente não têm crítica cultural, não têm noticiário cultural e o que têm, a gente percebe que, muitas vezes, é induzido apenas por interesses comerciais.
Nós precisamos de alternativas, de vida, de pensamento, de olhar sobre o que está a acontecer. É óbvio que todas as coisas que aparecem e que merecem ser vistas, ser lidas, ser ouvidas, são sempre para uma minoria. Podemos chamar-lhe nicho, mas é uma minoria. Até houve um escritor que falava da imensa minoria. Essa minoria pode ser mais imensa ou menos imensa, mas é uma minoria. A verdade é que há uma ou duas páginas da obra Em busca do tempo perdido de Marcel Proust, creio que é no segundo volume, em que ele escreve de forma maravilhosa sobre os últimos quartetos de Beethoven. São quartetos que soavam estranhos para os ouvidos da época, havia uma maledicência sobre eles, porque pareciam dissonantes, no entanto, estavam a anunciar a música do futuro e o Proust diz que esses quartetos tinham eles próprios de criar o seu público. Eram eles que tinham de criar o seu público, porque esse público não lhes era dado, não existia. Tinham de o ir conquistando pouco a pouco. A gente pode imaginar que se eles fossem conhecidos vinte anos ou cinquenta anos depois que aí já seriam apreciados. Não seriam, porque não tinham criado o público que lhes permitia serem apreciados, e, portanto, eles tinham de ser publicados naquela altura, conhecidos e tocados naquela altura, para, ano a ano, cativarem algum público que depois aumentava porque passava o testemunho. Hoje, são unanimemente considerados obras primas. Portanto, era naquele momento que eles tinham de ser conhecidos, dos poucos, que funcionaram como uma espécie de agentes desses quartetos que depois os levariam a outros apóstolos. Todas as obras de arte, todas as obras de pensamento que valham a pena têm, de alguma maneira, essa lógica.
Há essa perspectiva evangelizadora na Electra?
Não. Há consciência de que, há coisas que são aqui escritas que não têm outro lugar e que mesmo assim é preciso dizê-las e escrevê-las neste momento, sabendo que a repercussão vai aumentando, o público vai-se sedimentando, e que, pelo menos há um grupo de pessoas, que é maior até do que inicialmente poderíamos pensar, porque a revista, apesar de tudo, tem merecido o interesse de bastante gente e de muita gente nova, mas há esse interesse em procurá-la. Vamos percorrendo o caminho e sedimentando e aumentando o nosso público.
Por João Moreira
Fotografia: Bruno Esteves