A sorte de poder cruzar uma estrada – Ho Chi Minh

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Primeiro olhar para a esquerda, depois para a direita. Nunca passar numa zona que não tenha passadeira. Se houver um semáforo, melhor ainda. Mesmo que não vejamos nenhum carro ou mota, olhar bem e fazer uma pausa de dois segundos antes de avançar. Pode haver uma bicicleta que sorrateiramente se aproxima. Calmamente inspirar, encher o peito de ar e atravessar a estrada. Com cuidado, para não termos uma chatice.

Dou por mim e tenho novamente oito anos. Estou sentado na mesa da cozinha da casa da minha infância. Os meus pais avisam-me que para o ano vou a pé sozinho para a escola e recordam-me dos mais elementares perigos com que vou ter de lidar. Um deles é atravessar a estrada. Mais precisamente, cruzar quatro estradas que se atravessam no caminho entre casa e escola. Aborrecido, qual dono de toda a verdade, olho para o lado e quase bocejo. Afinal de contas já sei tudo aquilo que estão para ali a dizer de cor.

Uma das minhas recordações mais antigas é ser pequeno, muito pequeno, e ir de braços levantados com os meus pais, um de cada lado, a segurarem-me pelas mãos. Avançamos pela rua, ao três eu corro e eles levantam-me. Por segundos sou como o Peter Pan e os meus pais como o pó mágico que, sem mais, me faz voar de forma destemida. Sempre que precisamos de atravessar uma estrada o movimento repete-se. Parar num sítio que tenha semáforo. Olhar para a esquerda, depois para a direita. Esperar dois segundos. Ainda de mãos dadas, com as axilas ao vento, atravessamos num passo não acelerado mas também não demasiado relaxado. Só podemos estar descansados quando pisamos o passeio do outro lado da estrada. Tantas vezes se repete o processo que está mecanizado dentro de mim.

Chegado o novo ano, eis que, pela primeira vez, vou sozinho atravessar uma estrada. Não uma estrada qualquer. Não. É aquela que está mesmo em frente à porta de nossa casa e que durante tanto tempo me impediu de ser livre e explorar o mundo para além dos confins do quarteirão em que vivemos. Pelo menos sozinho. Aí vamos nós, não sem antes recapitular mentalmente todos os passos. Paro em frente ao semáforo onde o sinal vermelho ordena que todos os carros se imobilizem para eu atravessar. Olho para a esquerda, depois para a direita, inspiro e lanço-me ao caminho. Do nada, num ápice, dou por mim do outro lado da rua. Consegui, atravessei a minha primeira estrada sozinho. Todos os anos de treino com os meus pais valeram a pena. A partir deste dia sou alguém que não precisa de uma mão dada para poder explorar o mundo, lembro-me de pensar. Posso atravessar fronteiras, subir montanhas, nadar em lagos perdidos, aventurar-me na floresta, sou livre. Quem atravessa uma estrada faz qualquer coisa!

E de estradas cruzadas se fará a nossa vida em diante. Dia após dia atravessamos ruas já sem perder sequer tempo a pensar naqueles passos que tão bem nos foram explicados na infância. Como se de algo trivial agora se tratasse passamos a ser despreocupados na forma como nos aventuramos para lá do asfalto. A páginas tantas já não atravessamos só nos semáforos nem nas passadeiras. Atravessamos onde queremos, quando queremos, da forma mais direta para chegar ao nosso objetivo. Já não se trata do percurso mas sim do destino final. Cruzamos sem pedir licença a ninguém, somos donos de cada metro de estrada que galgamos. Os carros e as motas adaptar-se-ão a nós e ao nosso movimento, como um rio se adapta aos seixos que no seu leito repousam para toda a eternidade. Somos um com a rua, nada nem ninguém colocará isso em causa.

É uma daquelas coisas acerca das quais nem pensamos, não é? Como muitos outros, o ato de atravessar uma estrada é hoje um dado adquirido. Nunca ninguém nos fará duvidar que se quisermos, onde quisermos, por onde quisermos, com quem quisermos, podemos cruzar a rua para alcançar aquilo que desejamos. Somos criaturas de hábitos, os nossos corpos agem de forma mecânica e automática. Sem que reparemos já estamos do outro lado. Como cheguei até aqui? Não interessa. O que interessa é que aqui estou. Caso queiramos passar a estrada nada mais há a fazer senão fazê-lo, passe a redundância. Ninguém nos obriga a ficar do lado de cá do passeio. Era o que mais faltava…

Mas em Ho Chi Minh não é bem assim. Aqui, nesta cidade que vive a mil à hora, uma manada em autêntico frenesim, como a que demasiado cedo tirou a vida ao primeiro dos reis leões que conhecemos, buzina descontroladamente. A cada segundo, centenas de carros e motas colocam-se entre nós e o outro lado do passeio que queremos alcançar. Em Ho Chi Minh nem sempre somos livres, nem sempre somos donos do nosso próprio destino. Do nada, sem que algo o faça prever, sinto-me como se tivesse outra vez três anos de idade. A diferença que é que os meus pais já cá não estão comigo, em conjunto, um de cada lado, a levantarem-me no ar ao três para depois me recordar como se deve atravessar a rua.

Texto e fotografia por João barros

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