Grande Entrevista – Paula Ribeiro

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Paula Ribeiro é brasileira, nascida em São Paulo, mas a alma é portuguesíssima. Chegou ao nosso país há 31 anos com o marido e dois filhos pequenos, mantendo o apartamento que deixara na capital paulista, não fosse a aventura não correr bem. Seis meses depois, as dúvidas transformaram-se em certezas e Lisboa numa cidade para a vida. Para trás deixou uma carreira ligada ao cinema para se dedicar à edição. Faz revistas há 28 anos, a mesma idade com que chegou ao nosso país. Exame, Activa, Cosmopolitan, Ícon, o jornal Correio do Brasil e UP, que dirige desde 2007 com o mesmo entusiasmo do primeiro dia.

Recebe-nos na sede da revista da TAP, em pleno Chiado, com ar atarefado e um sorriso no rosto. No seu gabinete, sobressaem, ocupando uma parede inteira, as capas da UP e duas frases, uma de Sophia de Mello Breyner e outra de Caetano Veloso, que dão o mote para uma entrevista que se prolongará por mais de duas horas. Porque com a Paula é assim, a conversa “rola solta” sem filtros, com uma sinceridade arrebatadora e muitas gargalhadas pelo meio.

 

Como é que a Paula olha para esta nova leva de emigração brasileira para o nosso país?

Estou em Portugal, vai fazer, daqui a dois meses, 31 anos. Então, já vi muitas levas de emigração. Eu própria sou de uma dessas levas, da leva dos publicitários. A primeira foi a dos dentistas, nos anos 80, e no final dos anos 80 foi a leva dos publicitários. O meu marido é publicitário e viemos em 1987. Na verdade, uns e outros abalaram um pouco o status quo na área deles. No caso dos dentistas provocaram até bastante polémica, porque Portugal não reconhecia a igualdade dos diplomas. Tem uma história bem curiosa e irónica em torno disso: Portugal não reconhecia a igualdade de diplomas, mas a dentista do João de Deus Pinheiro, que era o Ministro dos Negócios Estrangeiros, era brasileira (risos). Depois, os publicitários também abalaram muitas coisas. Já vi muitas levas e já vi a leva ao contrário, dos que foram daqui para lá, que agora não existe mais, porque a situação no Brasil está uma tragédia e ninguém quer ir para lá. Pelo contrário, todo mundo quer sair. Nesses anos eu já vi de tudo, e sempre fui muito crítica em relação à forma como o Brasil via Portugal, o que me provocou muitas irritações ao longo desses anos (risos). No ano 2000, comemoravam-se os 500 anos dos Descobrimentos, e eu dirigia uma revista que de certa maneira é a mãe da UP, a Ícon…

 

…que era distribuída com O Independente?

Essa mesmo.

 

Tenho todos os números.

A Ícon é mãe da UP e foi a única revista, das oito que eu fiz, que fiz para mim. O modelo de leitor era eu mesma, e era uma revista propositadamente contra a maré.

 

Acha que as revistas que fazemos para nós próprios são as que resultam melhor?

Não. Aliás, tem uma tese que diz que quando a gente quer fazer uma coisa para a gente, a gente deve escrever um diário, porque aí a gente guarda e põe na gaveta. Revista, a gente faz para o leitor.

 

A Ícon era a sua cara?

A Ícon não era só a minha cara, na verdade a Ícon era a cara de 3680 almas, o número de leitores que tivemos na última edição e a quem agradeci no meu último editorial. Eu vinha de revistas femininas, da Activa, da Cosmopolitan, e naquela época, em 99, eu queria fazer uma revista que falasse de coisas diferentes, daquilo de que ninguém estivesse falando. Dava até um exemplo bem concreto: tinha acabado de sair o filme Eyes Wide Shut do Kubrik, e o Tom Cruise e a Nicole Kidman apareciam em todas as revistas nacionais e internacionais, aí eu dizia que só iriam sair na Ícon quando ninguém mais estivesse falando deles (risos). Veio isto a propósito dos 500 anos do Descobrimento do Brasil que eu queria cobrir para a Ícon, mas fugindo ao que todo o mundo estava falando. Parei para pensar um pouco e decidi que tinha de ir para o Brasil falar com um monte de gente, arquitectos, fotógrafos, publicitários, jornalistas, com a certeza de que a imagem de Portugal, no ano de 2000, já teria mudado, porque os brasileiros já veriam Portugal com a cara que Portugal tinha no início do século XXI.

 

Não mais a do Joaquim e do Manuel, donos da padaria da esquina.

Exacto. Tinha a certeza que as pessoas já sabiam que isso tinha mudado, mas a verdade é que fiquei em estado de choque porque percebi que a imagem de Portugal continuava a mesma, mesmo entre as pessoas mais antenadas. Isso me deu uma irritação imensa, e eu comecei a perder um pouco a paciência e me afastei. Nos últimos 11 anos, o Brasil voltou à minha vida em grande estilo, e voltou porque o Brasil é um mercado muito importante para a TAP. Por isso, acompanho o que se passa do lado de lá, onde, graças a Deus, tenho muitos e bons amigos. Então, o que a gente está assistindo nesses últimos dois anos, do meu ponto de vista, é quase uma piada, porque, na verdade, os brasileiros descobriram Portugal no mesmo momento que todo o mundo descobriu. Nós estamos em pleno Chiado, e você sai da porta da revista e vai até à Brasileira e não ouve ninguém falando português, e quando ouve, é brasileiro. São franceses, italianos, americanos que estão comprando o Alentejo, holandeses que já compraram Vila Nova de Mil Fontes e agora brasileiros que invadem o país em busca da coisa mais preciosa que Portugal tem – segurança. É isso que as pessoas querem, segurança, e falo isso com a certeza da experiência que ganhei durante esses 11 anos que trabalho com Turismo, uma área que para mim nem existia, não estava na minha cabeça. Eu era uma jornalista normal.

 

E realizadora, actriz, produtora…

(Risos) Mas nunca tinha feito uma revista corporativa voltada para o Turismo. Eu não sabia nada de Turismo e tive de aprender depressa.  Deu-se a feliz coincidência de começar a trabalhar nessa área num momento em que tudo estava acontecendo. Ao longo desses 11 anos assisti a muita gente trabalhando muito e muito bem, como o Adolfo Mesquita Nunes, com quem costumo brincar dizendo que o adoro, apesar de ser do CDS, e que imprimiu uma virada muito importante na forma de divulgar Portugal. Em vez de gastar fortunas em publicidade, em anúncios de uma página nas revistas da especialidade, começou a trazer jornalistas a visitar o país. E essa é uma tese que a gente sabe que não tem erro, porque Portugal é aquele produto que basta experimentar! Se você der a experimentar, não precisa fazer mais nada para promover, porque vai adorar. Do vinho à comida, do sol às pessoas, à hospitalidade, Portugal é imbatível. Por isso, com o trabalho de muita gente, e muito da TAP também, esse país, hoje, está desse jeito, com todo mundo querendo comer um pedacinho dele (risos). Ontem mesmo, um produtor de coisa importante no Rio e consultor do CESC do Brasil inteiro, que nunca tinha vindo a Portugal, veio tomar um café comigo. Aí eu perguntei – Renato, você nunca tinha vindo a Portugal? – Não Paula, nunca. Mas agora vim e o que é que é isso? – Você não está pensando em vir morar para cá, né? Porque eu não aguento mais brasileiro que está pensando em vir morar em Portugal. Mas a verdade é que ele já está louco, querendo mudar. E isso acontece com quase todos os que visitam o país, e não é mais só em relação a Lisboa ou Porto, Guimarães está bombando. Hoje mesmo recebi um telefonema da Anna Hamilton, que é a mulher que acabou de fazer o Memorial do World Trade Center e está começando um projecto gigante em Guimarães. Évora, Coimbra, Aveiro, Viseu, o país inteiro está acontecendo.

 

Não acha que essa vinda de brasileiros, sobretudo da área da cultura, é positiva para Portugal? Equilibra um pouco uma balança que pendia sempre para o lado brasileiro?

Acho que em algumas áreas culturais, Portugal e Brasil sempre se deram bem, na mão dupla. Em outras, por exemplo, como a música, sempre foi mais de lá para cá.

 

Agora tem a Carminho e o Zambujo que fazem um enorme sucesso no Brasil.

Antes teve os Madredeus…

 

… e Amália.

Amália, claro. Mas, comparando com o que vem de lá, há uma grande diferença, embora a produção musical também não seja comparável. Outra área que sempre funcionou bem foi a das artes plásticas. Os artistas plásticos de cá e de lá sempre se deram bem.

 

O design.

O design agora está arrebentando, porque é uma coisa mais recente, e é algo em que o Brasil é muito bom.

 

A arquitectura.

A arquitectura tem uma mão dupla, porque tem Siza lá, tem Paulo Mendes da Rocha cá. Outra coisa que funciona é o mundo académico, tanto em Letras como em Direito. O Direito Constitucional do Brasil é muito influenciado pelo português. Eu me lembro de há uns 10 anos chegar ao Brasil, e dois sobrinhos meus, que estudavam Direito, virem contar muito excitados: “Tia, ontem eu assisti a uma palestra do Canotilho”, e eu fiquei admirada: “Vocês sabem quem é o Canotilho?”, e eles: “Tia, o Canotilho é o Deus do Direito Constitucional!” (risos). Então, nesse universo do Direito e das Letras, sem dúvida que a coisa vai bem. No capítulo da Engenharia, o Brasil precisa muito de engenheiros, e Portugal tem bons engenheiros. Então, dá para exportar.

 

E na literatura?

Você nem imagina o sucesso que o Valter Hugo Mãe faz no Brasil, vende mais do que o Chico Buarque de Hollanda. Aliás, toda essa nova geração, o Peixoto, o Gonçalo arrebentam no Brasil, que é um país iletrado. Na Literatura, acho que está acontecendo, sim.

 

Em Portugal, os novos escritores brasileiros também se estão a afirmar, muito pelo trabalho da Tinta da China e da Quetzal, que editaram autores como a Tatiana Salem Levy, que está a viver em Lisboa, o Luiz Ruffato, o Arthur Dapieve, o Michel Laub…

No ano em que eu estava fazendo a UP, em 2007, trabalhei seis meses com o Gonçalo Bulhosa, que tinha a editora Palavra, com um selo chamado Letras Tropicais, que editava Zuenir Ventura, Luis Fernando Verissimo, Arnaldo Jabor. O Gonçalo me convidou para ajudar ele com esse selo, e nós trouxemos esses escritores para Portugal. Aliás, eu comecei a fazer a revista da TAP porque fui à TAP propor uma parceria para esse projecto. Por isso, sempre houve essa vontade de publicar autores brasileiros. Na Literatura, as coisas estão mexendo. Nesses encontros literários, em Paraty e em Óbidos, tem sempre autores portugueses indo ao Brasil e autores brasileiros vindo a Portugal. A Bárbara Bulhosa faz muito esse interface. Hoje em dia, ela é a rainha disso tudo (risos). Por outro lado, cada vez mais você vê autores brasileiros escrevendo na imprensa portuguesa e autores portugueses escrevendo na imprensa brasileira. A Revista Piauí, que é a melhor coisa que tem no Brasil, dá muito espaço para autores portugueses e, algo que seria impensável há pouco tempo atrás, o Ricardo Araújo Pereira tem uma coluna na Folha de São Paulo.

 

O João Pereira Coutinho já tem uma crónica semanal na Folha há muito tempo.

Mas o Pereira Coutinho é amigo do Otavinho Frias Filho, desde sempre. Eu fiz um jantar em minha casa para os dois, porque a gente tinha editado na Palavra o livro do Otavinho e editávamos o João. Como o Otavinho estava em Portugal, vieram jantar comigo e passei o maior vexame da minha vida. Eu tinha escrito a contracapa do livro e lembrei-me de ir pegar para ele autografar para mim. Fui à estante, peguei o livro e entreguei na mão dele. Ele abre e já tinha feito a dedicatória, um ano antes, e eu não lembrava. Fiquei tão sem graça, que ele falou assim: “Paula, posso fazer outra”.  (Gargalhada). Então, o João e o Otavinho eram amigos. Com o Ricardo é diferente, porque tem um impacto tão grande no Brasil que o maior jornal do país o convida para escrever, e isso revela a importância que é reconhecida.

 

Não acha que esta nova leva migratória trouxe uma revolução de costumes, de uma certa forma de estar que está a mudar a cidade e o país?

Acho que no dia que os brasileiros entenderem, e não entenderam ainda, o sentido de humor dos portugueses, aí a coisa vai mudar. Aliás, os brasileiros nem sabem que os portugueses têm sentido de humor e que o sentido de humor português é muito british. E isso faz toda a diferença. Eu tive, durante 27 anos, uma moça que trabalhava na minha casa que era portuguesíssima. Entrou na minha casa com 18 anos, para cuidar dos meus filhos pequenininhos, e ficou até há dois anos atrás. Agora tenho uma mineira, de quarenta e poucos anos, com um marido e duas filhas, uma gente da melhor qualidade, super do bem, que eu adoro. Mas, ontem, eu estava tomando café e ela estava ali conversando, e de repente diz: “Ah porque os portugueses, eles têm uma maneira de falar…” e pouco depois “Aqui em Portugal…” e eu disse para ela: “Vou-te dar um conselho que eu aprendi. Aliás, graças a Deus eu não precisei aprender porque eu cheguei com isso muito claro há trinta e um anos. Quando a gente muda de país, é que nem você ser hóspede na casa da sua mãe. Mesmo na casa da mãe, depois que a gente sai, tem coisa que a gente não pode fazer. Então, nenhum português foi lá pedir para você vir morar aqui, não foi?” – “Não, ninguém.”- “Na verdade, Portugal até tem um problema de emprego e, teoricamente, você está tirando emprego a um português. Por isso, pára de falar assim dos portugueses, porque são nove milhões e meio dentro de Portugal e mais cinco milhões fora, e tem portugueses de todo o jeito, como tem brasileiros de todo o jeito.” – “A senhora tem razão.” É preciso vir com humildade, espírito de adaptação e de cabeça aberta para entender e aceitar as diferenças. Eu nunca me senti estrangeira em Portugal. Nunca me senti descriminada por ser brasileira, e, quando falo isso, as pessoas duvidam de mim. Nossa, nunca? Nunca! Pelo contrário, sempre me senti super acolhida. Por exemplo, eu começo uma reunião na TAP, e sou a única brasileira, e tem dez pessoas na sala, e, quinze minutos depois, todo o mundo está falando brasileiro.

 

Isso é verdade e é impressionante.

Como é impressionante eu não deixar de falar brasileiro vivendo há trinta e um anos em Portugal. Eu não conheço nenhum brasileiro a viver em Portugal que tenha perdido o sotaque e não conheço nenhum português que vá ao Brasil que não ganhe sotaque. Ganha na hora! Essa é outra coisa que os brasileiros têm de aprender, é que o sotaque é deles. Eles acham que o sotaque é “sotaque de português”. Querido, o sotaque é seu!

 

Parece-me muito desencantada com o seu Brasil…

Ainda tenho de ultrapassar um pouco essa tristezasinha dos brasileiros, só agora estarem tão deslumbrados com Portugal e não terem descoberto isso antes. Em 94, o ano em que Fernando Henrique foi eleito pela primeira vez, eu estava na Cosmopolitan, e a Veja me convidou para escrever na última página, numa crónica chamada Ponto de Vista, que toda a semana tinha um cronista diferente convidado. Quase morri de orgulho (risos). O convite era exactamente por causa das relações entre portugueses e brasileiros, e eu escrevi um texto, que não sei onde está porque naquela época não tinha computador, que se chamava “Uma relação tão delicada”, e em que dizia que os brasileiros me pareciam aqueles adolescentes mal-educados e tontos que preferiam ter sido colonizados pelos ingleses e que os portugueses eram aqueles avós babacas que batiam palmas ao filho mal-educado quando falava qualquer besteira. Uma hora, essa relação ia ter de melhorar, ia ter de chegar a um ajuste de maturidade, e, de certa forma, acho que, quase vinte e cinco anos depois, essa relação está ficando mais madura. Os brasileiros deixaram de falar da “terrinha”, expressão que eu abomino, e “país irmão”. “O país irmão” é uma expressão que eu odeio, porque não é verdadeira. “País irmão”, o cacete! São dois países que têm muito em comum, mas com um monte de coisas para resolver. Então, acho que estamos entrando numa fase de maturidade na relação entre dois países com uma ligação delicada. Acho natural que os portugueses se orgulhem de terem descoberto aquele país gigantesco, e sei que têm um carinho enorme pelo Brasil, e que, quando lá chegam, amam, porque, aqui entre nós, o Brasil é fácil de gostar (risos). Por outro lado, também percebo que os brasileiros ainda estejam descobrindo a maravilha que é Portugal, vindo visitar, vindo morar para cá, em busca de paz e, na minha opinião, por uma questão de desapontamento com o Brasil. Essa emigração recente também tem uma coisa meio ideológica.

 

 Resulta dum extremar de posições que o Brasil está a viver desde há cinco, seis anos a essa parte?

Desde 2013. Desde Julho de 2013, com a primeira manifestação contra a subida do preço das tarifas dos ónibus. Aí começou tudo, e acho que depois, nos últimos cinco anos, o Brasil foi ladeira abaixo.

 

A grande transformação social promovida pelo PT, durante os governos Lula, foi só um fogacho, que não teve continuidade, ou essa ascensão social, de milhões de brasileiros, criou novos graus de exigência que deixaram de poder ser satisfeitos com os biliões desviados para a corrupção e os reflexos da crise internacional?

Em 1982, fiz um documentário chamado “Brasil do Oiapoque ao Chuí”, e fui ao interior do Nordeste, e nunca vi tanta pobreza. Aliás, nessa época, vi muita pobreza. O Nordeste era realmente muito pobre. Por isso, acho que era necessário fazer alguma coisa para mudar essa tragédia. Mas não tenho uma vivência no Brasil, nesse Brasil, para saber se, de facto, essa transformação aconteceu. Mas eu sei de coisas. Por exemplo, nós fizemos uma edição sobre o Ceará, logo no começo da revista, e um dos projectos mais maravilhosos que descobrimos foi o das rendeiras que criaram uma comunidade dedicada aos bordados tradicionais. E aquilo estava super organizado, e vendiam muito, tanto que até começaram a exportar. Era um projecto maravilhoso. Cinco anos mais tarde, fizemos outra edição do Ceará, e foi outra jornalista fazer a reportagem, e falei que queria muito recuperar aquele projecto das rendeiras e perceber em que fase estaria.

 

Já não existia.

Não. Tinha acabado porque elas tiveram de optar entre manter o projecto ou receber a Bolsa Família, e preferiram ficar com a Bolsa Família. Isso para mim é muito paradigmático. Teve muitas coisas boas, mas também muitas erradas. Eu fui muito PSDB. Amo o Fernando Henrique, aliás, amava, porque hoje em dia já não amo mais. Era muito próxima do José Gregori, que foi Ministro da Justiça dele e, depois, Embaixador em Portugal, e é meu amigo da vida, e Marilena Gregori e Dona Dulce Cardoso. A Bolsa Família, que eu sempre achei um projecto deslumbrante, é um projecto da Dona Rute Cardoso. Portanto, quando olho essa transformação que o Lula promoveu, sei que o PT fez o que fez porque tinha uma base deixada pelo Fernando Henrique, que lhe permitiu fazer essas transformações. Se não tivessem existido oito anos de Fernando Henrique, credibilizando o país externamente e garantindo o equilíbrio financeiro, não tinha sido possível um primeiro mandato do PT do jeito que foi. Eu não votei no Lula. Aliás, votei no Lula quando tinha vinte anos em São Paulo. Depois, nunca mais votei no Lula. E, quando houve a eleição Lula/Serra, o Zé Gregori, que era o Embaixador do Brasil em Portugal, me ligou, pedindo para eu ir à SIC Notícias no lugar dele, porque, como era Embaixador, não podia falar de política, eu disse “Pô, eu não gosto de falar de política, sou jornalista”, mas, como eu tinha tanta fé no José Serra, fui. Era eu e o Duda Guennes, que era um personagem maravilhoso, o percursor de todos nós, porque o Duda veio para Portugal no 25 de abril, e era uma pessoa de quem eu gostava muito. Mas o Duda era PT até a medula, e lá fizemos o debate. Passados quinze dias, ou uma semana, teve a eleição, e fomos comentar de novo na SIC Notícias. E estavam passando as imagens de Brasília, a felicidade total com a vitória do Lula, e a moça lá da SIC vira-se para mim e diz assim: “Tem alguma coisa errada. Você está emocionada com essas imagens, mas o seu candidato não era o Lula.” Aí, eu disse para ela: “Primeiro, não é mais Lula, é Presidente Lula. Acabou essa intimidade, ok? Segundo, o que eu estou vendo é o meu Brasil feliz com o meu Presidente. É obvio que tenho de ter o mínimo de esperança de que isso vai dar certo. Posso até achar que ele não era o cara mais bem preparado para ser o Presidente da República, mas é um cara que tem uma história, e a partir do momento em que foi o mais votado, é o meu Presidente.” Resumindo, acho que, com base no trabalho do PSDB, o primeiro mandato do Lula foi um mandato bem feito. Mudou o Brasil e ajudou muita gente a sair da miséria. O que, no meu entender, destruiu tudo isso foi a corrupção, que dói especialmente vinda do PT. Porque uma coisa é você ver o Collor, o Sarney e aquela corja toda roubar, outra é você ver o PT roubar. Porque o PT podia errar, mas o PT não podia roubar. O Zé Dirceu foi o ídolo de uma geração. Eu sou mais nova, mas o meu marido, que tem mais oito anos que eu, idolatrava o Zé Dirceu, que tinha sido o cara do Maio de 68. Por isso, quando você vê o que essas pessoas fizeram, o que essas pessoas roubaram, traindo os ideais, é muito ruim, é muito triste. Agora, eu detesto a Dilma, aliás, nem é detestar, acho a Dilma uma tonta, uma babaca, uma pessoa que está preocupada em ser “a Presidenta”, que é a coisa mais ridícula que alguém pode dizer. Sabe, o buraco é mais em baixo, porque tem muito mais coisa que pensar. Mas ela não tinha de ser destituída. Ela tinha acabado de ser eleita. Um dos dias mais tristes da minha vida de brasileira foi assistir àquela Assembleia de Destituição, juro por Deus. Eram quatro e meia da manhã aqui, e eu chorava e pensava: “Meu Deus, quem é essa corja? Quem são esses animais? Quem são esses boçais?”. Então, acho um absurdo terem tirado a Dilma, e mesmo o Lula, acho ridículo. Quando qualquer gerentezinho da Petrobras tem cem milhões de dólares na Suíça, o Presidente da República é corrompido com um apartamento no Guarujá, é ridículo! E isso me entristece, porque acho que, independente de qualquer coisa, o Lula tem uma biografia que o honra. Muito pouca gente foi capa da Time como um dos homens mais influentes do mundo. Então, jogar uma biografia no lixo é muito ruim, e a prova de que é ruim é o retrato do Brasil. Hoje, as pessoas vão votar em quem, daqui a três meses? No Bolsonaro?

 

Isso seria a visão do horror!

Aí, me desculpe, porque, eu que nunca votei no Lula, se o Lula for candidato, eu voto nele.

 

Mas o que assusta é esse extremar de posições de que falava. Essa impossibilidade do contraditório, de parte a parte, e que se estende a quase todos os temas.

Está todo o mundo maluco. Eu tenho uma imensa tristeza, porque eu amo o Brasil! Não quero voltar a morar lá, mas amo o meu país. Quando vim para Portugal, o meu marido teve uma proposta de trabalho, e como a gente já estava querendo sair do Brasil, embora na época fosse muito complicado porque eu tinha um filho de quatro meses e outro de dois anos, fizemos um acordo, deixar correr durante um ano e depois decidir se ficávamos. Deixei o apartamento de São Paulo fechado e seis meses depois já tinha a certeza de que queria ficar aqui para sempre. Tenho, até hoje, guardada uma entrevista que dei para O Independente sobre os brasileiros em Portugal, em 1987, e onde já dizia que queria morrer em Portugal e as minhas cinzas espalhadas pelo Tejo. Continuo dizendo a mesma coisa. Portugal é o meu chão, é aqui que eu amo viver. Agora, é óbvio que eu gosto do Brasil, que eu amo o Brasil e tenho imenso orgulho de ser brasileira. Acho que ser brasileira, ter sido formada com aquelas quinhentas raças é muito importante para mim e tem muito a ver comigo. Eu me identifico muito com isso, mas ao mesmo tempo fico desesperada, porque vejo o meu país ser destruído. A gente lá em casa tem muito interesse por história e política, e tem até uma biblioteca muito boa de História do Brasil. E você lê sobre o Brasil dos anos 60, com essa coisa do Maio de 68, sobre os anos 50, sobre o período da Ditadura Militar que, em termos culturais, até por causa da ditadura, estimulou o aparecimento de um teatro forte, um cinema forte. Mas aí tem aquele lado brasileiro, aquele lado Macunaíma, aquela coisa do twist. Quando você via Rei da Vela, do Oswald de Andrade, dirigida por aquela maluquice do pessoal do Teatro Oficina, e todo esse turbilhão cultural que tinha a ver com o teatro, com o cinema, com a literatura, com as artes plásticas, com a música, era uma efervescência cultural contra a ditadura e cheia de artimanhas. Não é à toa que o Chico ficava inventando o Julinho da Adelaide, era para fugir à censura.

Depois, tinha aquele twist de contemporaneidade, (de que-retirar) do qual, eu acho, o Caetano é um símbolo.

 

O símbolo duma permanente capacidade de se renovar que o Brasil tem.

Quando me perguntam o motivo pelo qual vim embora e fiquei, digo sempre que foi porque não nasci (o-retirar) Caetano Veloso, porque se tivesse nascido Caetano, que tem uma capacidade de ler e interpretar o Brasil que muita pouca gente tem, com uma clareza que só ele consegue, talvez tivesse ficado. Só que o Brasil é antropofágico, o Brasil te devora, o Brasil te põe num liquidificador e você se acaba. Se eu tivesse ficado, não dá para imaginar o que teria acontecido. Profissionalmente, eu não teria virado o que virei. Eu acho que Portugal me deu régua e compasso e me deu o distanciamento de que precisava, aquela coisa de poder olhar com a distância certa, e, sobretudo, me deu algo que o Brasil não consegue dar por força da forma de ser brasileira, que é um tempo de raciocínio. Portugal me deu, na hora certa, porque eu tinha vinte e oito anos, uma idade boa de amadurecimento, o tempo de que precisava para aprender mais, para ler mais, para estudar mais, para raciocinar.

 

Você acha que estas eleições vão trazer a transformação de que o Brasil necessita?

Não, mas acho que vai ter de acontecer alguma coisa muito forte no Brasil. Essas eleições são capazes de despoletar um novo passo, que eu não sei qual vai ser. Vai ter de ser uma força de balançar consciências, algo que vem de baixo, que tem de vir de baixo, e tem de vir de uma geração mais nova, tem de vir de uma geração que fuja daqueles status quo de Brasília.

 

Como se dirige, durante 11 anos, com um espírito sempre tão inovador e tão revolucionário, a mais lida revista portuguesa?

Porque o assunto é muito bom (risos)! Portugal é um poço sem fundo. Quando eu apresentei o projecto para a TAP, o vice-presidente perguntou para mim: “Você acha que consegue mostrar o melhor de Portugal por quanto tempo?” Olhei para ele, e respondi: “Uns 40 anos”. A verdade é que já passaram 11. Acho que Portugal é um tema fascinante e tenho muito essa obsessão de mostrar Portugal para o Mundo.

 

O olhar de uma brasileira contribuiu para essa valorização?

Muito, porque o brasileiro não tem vergonha.  – Paula aponta para um quadro, colocado no seu escritório, com um excerto do poema “O que é, o que é?”, de Gonzaguinha, onde se lê “Viver/ E não ter a vergonha/ De ser feliz (…)”. – Você entendeu? Isso é tão a minha cara…

 

… a Paula é uma “eterna aprendiz”?

A cada minuto. Eu não tenho o menor problema em dizer que não sei, não tenho problema de exibir aquilo que eu acho que vale a pena exibir. Então, esse lado brasileiro me ajudou muito, e, como realmente amo Portugal de um jeito meio doentinho, se tornou fácil. Acho Portugal um país incrível, e já tive brigas com amigos portugueses que estão sempre dizendo que Portugal está na cauda da Europa. Que cauda da Europa? É o melhor lugar do planeta. O António Alçada Batista, que conheci logo que cheguei aqui e com quem aprendi muito sobre a vida e sobre Portugal, uma das pessoas mais importantes na minha vida, costumava dizer uma frase, que usei como prólogo de um livro que a gente publicou quando a UP fez 5 anos, que se chamava Portugal Vale a Pena, e que dizia assim: “Portugal é um bonsai. A árvore é pequenininha, mas as raízes são enormes.” Portugal é isso. Como é que é possível, numa coisa deste tamanho, mudar tudo a cada 50 km? Mudar a comida, mudar o sotaque, mudar a paisagem, mudarem as pessoas? É um poço sem fundo. Então, essa energia, que me faz estar, há 11 anos, dirigindo a UP, vem de Portugal e da vontade de mostrar que Portugal é melhor do que o resto do mundo.

 

Isso só foi possível porque a UP é uma revista corporativa?

Não, só é possível porque tenho a sorte da TAP me dar uma liberdade que eu nunca tive, em nenhuma revista que dirigi. Consigo fazer a UP, do jeito que faço, pela liberdade, sobretudo pela liberdade que tenho. Por isso, é um privilégio raríssimo você poder fazer voar. Aliás, o slogan dessa revista é “Ouse Sonhar Mais Alto”.

 

Acha, como o Vinicius de Moraes, que os portugueses precisam de se desengravatar?

Eu acho que o que Portugal precisa, e que de certa forma a nova geração, graças a Deus já tem, é de um pouco mais de autoestima.

 

Por: João Moreira

Foto: Up Magazine

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