GRANDE ENTREVISTA – ALDINA DUARTE

11960 views

“A textura da voz, a intenção da leitura, a respiração que toma as rédeas do peito e que respira quando nós nos sustemos, a força telúrica capaz de devolver à terra tudo o que à terra pertence, o drama e a dádiva, principalmente a dádiva das coisas simples e eternas da vida, é que me levam Mar adentro. Se tudo isto é fado, tudo isto é Aldina!”.

João Monge

 

A voz é intensa, poderosa, envolvente, no ênfase de uma ideia, de um pensamento, ganhando contornos de teatralidade, sempre que as mãos se intrometem na conversa. Os olhos, duma expressividade arrebatadora, fixam os nossos, com uma altivez que só a tranquilidade consciente de uma vida de convicções consegue dar. O riso, de tão absolutamente genuíno, chega a soar quase infantil, sobretudo quando se transforma em gargalhada, entregando ao rosto uma expressão de mulher/menina. Uma espécie de justiça divina, direi eu, como se Deus lhe devolvesse, agora, o direito a uma eterna meninice. Fala como se cantasse. Com a mesma entrega, a mesma inteireza, a mesma honestidade… como num fado, e ninguém é mais fado do que Aldina.

“Fora de tempo, fui uma criança velha”, contará Aldina Duarte sobre uma infância “sem espaço para alegrias”, vivida no bairro de Chelas, num tempo em que a sobrevivência era palavra de ordem. “O grande acontecimento que marca a minha primeira infância é o fascismo. A minha infância foi triste, cruel, porque quando não há comida, não há conforto, não há respeito. Isso determina tudo.” Mal começou a ler, descobriu “uma coisa chamada imaginação”, e quis ser escritora. “Foi a única profissão que quis ter.” Mal sabia a “Princesa Prometida”, como lhe chamou Manual Mozos, no documentário que realizou sobre a sua vida, que um dia assim seria.

Aldina Duarte chegou ao fado tardiamente, depois de uma juventude dedicada à política, que não lhe deixava espaço para novas descobertas. Era o tempo em que a música era uma arma, e quem convivia com Zeca Afonso, Sérgio Godinho, José Mário Branco, Fausto não sentia necessidade de se perder em divagações. A epifania deu-se quando ouviu Beatriz da Conceição a cantar a um metro dela. “Foi uma revolução.” A partir desse dia, Aldina, que já tinha nome de fadista, ficou com o destino traçado. Durante dois anos, embrenhou-se no mundo da arte que a arrebatou, ouvindo, estudando, convivendo, sentindo, partilhando. Quando se decidiu arriscar a cantar, estava tão pronta que todo ela era fado. Depois de uma passagem pelo Clube do Fado, a convite do guitarrista Mário Pacheco, fez do Senhor Vinho a sua casa, e de Maria da Fé a sua mentora, e, durante os últimos quinze anos, quase diariamente, entregou-se por inteiro à sua arte. “Não foi logo um amor sereno, como é agora…era uma espécie de tremor que me acontecia sempre que cantava, como se fosse outra pessoa.”

Insegura, porque demasiado exigente consigo própria, Aldina duvida da sua capacidade, e decide parar de cantar, durante seis meses. Mas, convencida por Camané, à época, seu marido, e por Maria da Fé, regressa ao fado, para nunca mais parar. Aos 37 anos, grava, pela primeira vez, “Apenas o Amor”, um álbum que a consagraria definitivamente. Seguem-se “Crua”, “Mulheres ao Espelho”, “Contos de Fados”, “Romance(s)”, “Quando se Ama Loucamente”, o disco em que decide cantar-se, e “Rouba- dos”, lançado em 2019, e que chega imediatamente aos tops.

Durante mais de duas horas, numa conversa que ocuparia uma BICA inteira, Aldina contou-nos o seu percurso, falou-nos dos seus amores, emocionou-nos com as suas paixões, divertiu-nos com as suas histórias. Arrebatadora, como em palco, aqui ficam os contos de Aldina Duarte, que “já não são contos, são fados, já não são fados, são vida.”

 

O meu fado vive muito do improviso e se não houver esse improviso corre o risco de ficar… frouxo.

O fado em geral?

Há fado e fado. Por exemplo, o fado tradicional, sim. Se não houver aquilo que se chama “estilar o fado”, se não houver esse improviso e esse risco, digamos assim, a intensidade e o essencial perde-se, de facto. Porque não é melodia para se mecanizar. Porque é demasiado simples, mas demasiado aberta. Portanto, percebe-se que ao simplificar demais, o que é que vai acontecer? Vai ficar quadrada, repetitiva, e tão maçadora que pode levar a que se perca o interesse pela história que está a ser contada. Tem de se ter mesmo muito cuidado no fado tradicional, que é a minha matéria de eleição…para a vida.

No belíssimo texto que Ana Sousa Dias escreveu para o disco, a Aldina diz: “Este é o disco que deveria ter feito quando comecei”.

Há aí um grande equívoco. Eu nunca disse que deveria, mas que era suposto ter gravado. Porque quando se começa, não se tem repertório. Por isso, é normal escolher fados que já estão feitos, e que são aqueles que habitualmente se cantam nas casas de fado. Eu uso muito uma metáfora para distinguir estes fados que gravei agora, que são o que nós chamamos “fados musicados”. Quer dizer, todos são musicados (risos), mas a estes chamamos “musicados” porque pressupõem que há uma letra e uma música que nascem juntas. A estrutura é aquela, está definida. Ao contrário de um fado tradicional, em que, com a mesma melodia, se podem cantar as mais diversas histórias. Há 180 melodias de fado tradicional. Portanto, tenho matéria para o resto da vida. (Risos).

Assim já se percebe a não inclusão de dois grandes fadistas, o Joaquim Campos e o Alfredo Marceneiro, nas escolhas de “Roubados”.

Não coloquei o Marceneiro, que é o meu mestre, ou, como costumo dizer, é o fado, nem incluí o Fernando Maurício, por isso mesmo. Os temas mais fortes, que mais admiro deles, são repertório do fado tradicional, e não faziam sentido neste conceito. A ideia era sair, temporariamente, da minha casa, para outra casa, para ver, depois, o que se transformava na minha casa de sempre, e perceber de que forma a minha casa de sempre contaminaria a nova casa temporária. E eu chamo casa, porquê? Porque qualquer um deles é fado. Quanto a isso, não há qualquer dúvida. É que, às vezes, os puristas teimam em dizer que o fado mais fado é o fado tradicional. Não é. O fado mais fado é o fado mais verdadeiro, o fado mais inteiro.

Vamos usar como metáfora a arquitectura, que é mais familiar. O fado tradicional é um espaço muito bem definido, com uma personalidade fortíssima, melodicamente, e ritmicamente, tem uns alicerces incontornáveis. Mas a casa está por decidir. Ou seja, quando eu coloco uma letra naquela melodia, é como se estivesse a decidir onde fica a porta de entrada, onde fica a janela, onde ficam as divisões … até chegar ao telhado. E esta casinha, o fado tradicional, pressupõe que eu improvise, ao público, com uma determinada lógica, que faça, daquela história que eu estou a cantar, uma música com princípio, meio e fim. Porque, se eu improvisar, melódica e ritmicamente, tudo o que aquele chão musical, digamos assim, permite, aquilo não teria fim e não se definiria. Seria uma massa à solta. Portanto, eu tenho de escolher um caminho, dentro daqueles múltiplos caminhos a que aquela letra me leva. Tenho de escolher um caminho dentro daquela melodia. Cada vez que um fadista canta uma letra criada por si, num fado tradicional, mesmo que o cante a vida inteira, ele nunca está feito. Porque um dia vou por ali, faço as janelas, coloco-as no outro lado, às vezes faço as janelas maiores que as portas… Isto vai tudo mudando conforme o estado de espírito, conforme as limitações físicas …

… os amores, os sofrimentos.

A grande base da minha criatividade, sem falsas modéstias, foi toda construída a partir dos meus limites. Não tenho a menor dúvida.

Por isso é que só se pode gravar um disco assim com esta experiência e com esta vivência?

Sim. Eu já tenho uma personalidade artística e um repertório próprio definidos, construídos ao longo destes 25 anos. E esse era o meu objetivo número um. Por isso, tive a curiosidade de pensar assim: “Agora vou ali fazer uma espécie de arquitectura de interiores, ou seja, vou decorar aquela casa de outra maneira” (risos). Não tenho as possibilidades que tenho num fado tradicional, mas tentei trazer aquela escola de improviso que, ao longo destes anos, tenho desenvolvido na casa de fados, e nos meus fados, numa música onde não é muito habitual fazer-se isso. Daí chamar-lhe versões, correndo o risco de fazer grandes asneiras e de estragar muita coisa.

Não foi o caso, muito antes pelo contrário.

(Sorriso). Ainda que, acho que esse medo não se justifica, porque os clássicos são intocáveis. Defendem-se a si mesmos. Um clássico resiste a tudo. Podem fazer-se as maiores asneiras, à volta ou com eles, que, o que sobra, são eles próprios. Por isso, comparar-me ao original seria absurdo, por todas as razões, e mais algumas, seria uma grande inconsciência, uma grande insanidade da minha parte pensar que poderia competir com aqueles grandes mestres todos, e com aquelas versões… Isso está fora de questão. Além disso, acho um mau princípio para a criação artística. Há quem se sinta estimulado por isso, mas a verdade é que não tenho qualquer espírito competitivo, nunca tive. Não só na arte, em tudo.

Embora o meio do fado seja bastante competitivo.

Na arte em geral, cada vez mais, se cultiva isso. Aliás, o que é o empreendedorismo? É um bocadinho aquela coisa de estarmos sempre a competir, a ver quem é que alcança melhores resultados, baseados na mentira de que “se fores muito bom, alcanças tudo”. Isto não é bem assim. Há gente extraordinária, a trabalhar como ninguém a vida inteira, e que não alcança esses resultados. E não é por isso que é menos virtuosa. Mas, nem sequer acho injusto, acho que as pessoas (que-retirar) não desistem de fazer uma coisa que fazem bem, porque é assim que se sentem bem com a sua consciência. Podem não ter tido mais sucesso, mas foram felizes a fazer aquilo em que acreditavam. E não há maior bênção do que isso, não é? (Sorriso). Portanto, acho essa coisa do empreendedorismo um bocadinho foleira.

Num determinado momento da sua carreira, fez uma pausa de seis meses de fado. Foi quase uma desistência?

Sim, também é um direito, sermos fracos. Também temos de ter esse direito, e, na altura, fraquejei bastante.

Insegurança?

Insegurança total, e a crença, quase absoluta, de que não tinha o menor talento para me manter onde estava. E isso foi uma sensação tristíssima, porque eu amava esta arte. Já não era paixão, era mesmo amor, mas achava que não cumpria os mínimos necessários.

O fado foi uma descoberta visceral?

Foi, porque foi uma descoberta tardia, improvável. Já tinha muita outra bagagem, já era uma mulher adulta quando cheguei ao fado, o que não é muito comum. O fado é uma arte de tradição oral, e, portanto, o testemunho vai-se passando, e vai crescendo por ali, naquele meio. O que até é bom, porque aquela inconsciência infantil e adolescente vai acompanhando a relação com esta música. Eu dou sempre o exemplo do Camané. O Camané é um génio naquilo que faz, e cresceu, desde criança, no meio da sua arte. É quase como um miúdo que nasceu para a música, e tem um dom incrível para tocar violino, tem a sorte de ter uns pais que o metem num óptimo professor, com quatro anos. No caso do Camané, como ele nasceu realmente para aquilo, o facto de ter crescido ali deu-lhe uma consistência extraordinária.

Embora seja um empenhadíssimo estudioso do fado.

Completamente. Agora, imagine, juntar isso com toda aquela interiorização natural de uma vivência no meio… O Camané não sabe de cor as 180 melodias do fado tradicional, mas, se alguém lhe diz que a primeira frase começa de uma determinada maneira, ele resolve logo, porque aquilo está tudo lá. Foi semeado, germinou, e está tudo ali. Ora eu não, eu chego adulta ao fado, já com uma consciência. Quando ouvi a Beatriz da Conceição, pela primeira vez ao vivo, a um metro de distância, nunca tinha ouvido música assim. (É que ainda há mais essa. Nós não estamos habituados a ouvir música assim. Ouvimos melodias nos concertos, mas ali, a um metro… epá!) Por isso, quando ouvi uma artista como a Beatriz da Conceição, fiquei trespassada, completamente. Costumo dizer que tive duas revoluções na minha vida, o 25 de Abril e esta. A brincar, costumo dizer que faço 25 de Fado, porque foram mesmo duas revoluções. Nunca mais fiquei igual e, num ápice, a minha vida transformou-se completamente. E repare, não que eu quisesse ser fadista, e isso é que teve graça, eu nem sequer queria ser fadista. Andei quase dois anos, praticamente, só a ouvir e a comprar discos, e a querer saber mais e mais e mais. Eu só queria estar ali, no meio daquela arte. Como é que não conhecia? Como é que vivi num país em que só há aquela arte, e como é que isso me passou tão ao lado? Depois fui tentando perceber, e a razão principal foi o facto de eu sempre ter sido muito politizada: dos 12 aos 15 andei na UEC, depois dos 15, até não sei quantos, estive no PSR, portanto, até ao meu luto partidário, que é recente…

… que é a fase que está a viver agora.

Que é a fase em que estou a viver, infelizmente. Porque acho que não é bom sinal. Não deixo de votar, mas não consigo apoiar um partido, como já apoiei em tempos.

A verdade é que, por estar muito absorvida por essa aprendizagem, por a política ser a matéria que me interessava, fui-me rodeando de amigos, fui construindo uma rede, sobretudo na António Arroio, que, de facto, não passava pelo fado. Por isso, quando o descobri, fiquei muito surpreendida por essa minha rede não passar por aí, porque era a minha cara, era aquele género de música, aquele género de artista que eu gostava.

Também existia uma questão política, que ajuda a explicar essa distância. O fado era muito conotado com o Antigo Regime, e, durante muito tempo, fechou-se nas casas da especialidade.

Isso é verdade, mas acho que foi mais uma questão geracional. O fado fechou-se nas casas de fado, mas os grandes fadistas estavam todos lá. Houve ali um tempo, da Revolução, em que foi preciso arrumar a casa. O fado era, indiscutivelmente, uma música associada ao regime, não há nada a fazer, e, portanto, como em todas as revoluções, tem de haver um tempo de revolução e um tempo de luto.

Que, diga-se em abono da verdade, até foi bastante curto. Talvez porque tínhamos a Amália…

Amália é um génio incontornável. Mas é um génio universal, não só português. A Amália está num patamar completamente inatingível. Ao nível de uma Ella Fitzgerald, de uma Édith Piaf ou de uma Elis Regina, quer em talento artístico, quer em personalidade, quer em dom. Ela é inteira, de facto. Não a torna, para mim, melhor fadista que ninguém…

Isso é outra coisa.

Pois é… (risos) Isso é mesmo outra coisa. Agora, é inegável que o génio desta arte é Amália.

E foi revolucionária, porque inovou imenso numa arte pouco dada a inovações.

A inteligência artística dela era brutal! E seduzia toda a gente que tivesse qualquer tipo de talento, porque devia ser assombroso ouvir uma voz assim, ali, à mão de semear. Se eu fosse poeta e estivesse ali, a ouvir uma mulher daquelas, numa casa de fados, ia a correr para casa escrever um livro para ela (gargalhada).

Temo que primeiro teria de ir para casa dela continuar a ouvi-la (risos), correndo o risco de encontrar o Vinicius de Moraes, o Alain Oulman, o David Mourão-Ferreira…

Exactamente (risos), porque como ela era genial, tudo que era bom andava à volta dela. Era um íman para tudo o que valia a pena, e tinha todo o mérito, porque era verdadeiramente inspiradora. Agora, convém dizer que o perigo para a história de uma arte como esta, que tem uma força muito invisível que acaba por ser muito frágil, é o de se reduzir o fado à Amália. Mal comparado, seria como reduzirmos a história da pintura ao Picasso. Ficaria tudo mais pobre. Às vezes, a minha reserva em divulgar demasiado a obra da Amália (que é a mais divulgada de sempre e a mais bem cuidada de sempre, e, felizmente, está eternizada), advém desse receio. Portanto, é importante cantar outras coisas, até porque o fado está pujante, independentemente de andarem miúdos a cantar com bandas, e não sei o quê. Mas é próprio da idade, é próprio dos fadistas, que, como são grandes intérpretes, quando põem a cabeça de fora, despertam a curiosidade de outros géneros musicais, que os vêm buscar, porque percebem que há ali uma personalidade muito forte, que pode ser muito vantajosa para a música deles. A gente mete o Camané a cantar com os Xutos, e aquilo ganha outra dimensão. É lindo ouvir o Camané a cantar o “Circo de Feras”, porque ganha outra vida. Não é melhor, nem pior, mas ganha algo… Por isso, não é de admirar que as novas gerações de fadistas se sintam atraídas por outros géneros. Eu acho que as pessoas se esquecem que estamos a falar de miúdos com vinte e poucos anos. Ninguém ouviu os grandes fadistas no início. Eles, quando gravavam, já tinham uma segurança e uma consistência muito grandes, até porque tinham esse bom método que é o de cantar nas casas de fados, regularmente, e só quando a matéria estava bem consistente é que gravavam. Já tinham a personalidade muito definida, já sabiam muito bem o que estavam a fazer, já tinham muita segurança, até na escolha do repertório.

Portanto, quando ouvimos certos miúdos, esquecemo-nos que têm vinte e tal anos. A gente ouve a Carminho e a Ana Moura, que eu acho que são duas fadistas extraordinárias…

… no caso da Carminho, o fado também vem do berço, estava ali tudo…

Pois, mas também anda a experimentar outras coisas. Foi cantar Tom Jobim e MPB, e mais não sei o quê. Porque é uma necessidade própria da idade. A Ana Moura, a mesma coisa. Ganharam uma dimensão muito grande, e encantam muito facilmente. Por exemplo, no caso da Carminho, encantou o Chico Buarque, encantou diversos músicos que deram a cara por ela.

A Carminho e o Zambujo.

O Zambujo não, porque o Zambujo não se assume como fadista. É um homem que vem do Cante Alentejano, entrou pelo fado, e bem, mas não interrompeu o seu caminho, até chegar a um sítio que é só dele. E ele próprio tem essa honestidade.

É o nosso João Gilberto, e isso já é um dom extraordinário.

E conseguiu fazer uma miscelânea que mais ninguém consegue. É o Cante Alentejano, é o Fado, é a música brasileira, é o Jazz de Chet Baker, de que ele também gosta muito. Conseguiu fazer uma amálgama das coisas que ama e que mais o tocam. Agora, a Ana Moura, que já está, há muito tempo, com uma banda, a cantar outras músicas, e que tem uma carga de música pop mais acentuada, é uma fadista de rara excepção. Mesmo rara, com um timbre incrível, com uma alma enorme, com uma naturalidade na interpretação e uma autenticidade que só os grandes fadistas têm. Se eu mandasse e pudesse, punha a Ana Moura a cantar o maior disco de fados da actualidade. Mas também percebo que ela tenha outras ambições, e que também goste do que está a fazer. Aquilo resulta, porque a Ana é aquilo também. E quem somos nós para questionar? Eu não permito que ninguém me impeça de ser quem sou, por mais que achem que eu devia fazer outra coisa. Se eu não estiver segura disso, se eu estiver com um pé noutro lado, ninguém me vai tirar a oportunidade de experimentar, mesmo que se revele um erro. A Ana está a fazer uma coisa que é ela também. Agora, não tenho a menor dúvida que a Ana Moura e a Carminho são duas fadistas de corpo inteiro.

Regressemos a “Roubados”, que tenho ouvido repetidamente. Algo que sobressai na maioria dos fados é a suavidade da guitarra do Paulo Parreira, em contraposição à força da viola de fado do Rogério Ferreira.

Há versões que são só de viola. Desta vez fui eu que fiz os arranjos…

Num deles, “Vem”, de Júlio de Sousa, notam-se até umas dissonâncias no início do tema, que fazem lembrar a bossa-nova.

Nestas melodias não se corre o risco de desvirtuar, como ocorreria se fossem fados tradicionais, porque, algumas delas só são fados porque foram feitas para a voz de fadistas, porque se tivessem sido cantores a cantá-las, se calhar nem eram fados.

Excepto, por exemplo, no “Arraial”, que foi escrito e composto por um fadista…

… Que é só o João Ferreira Rosa. (Risos). Cujo patamar é altíssimo.

Que além de ter composto fados maravilhosos, construiu belíssimas “casas” sobre as músicas do Alfredo Marceneiro, para usar a sua metáfora de há pouco.

Eu costumo dizer que, se voltasse à terra e pudesse escolher ser um fadista, queria ser o João Ferreira Rosa. Palavra de honra. Eu gostava de ser aquele fadista. Uma fadista assim como ele. Gravou só dois discos, e não precisa de mais. É incrível! Faz-me lembrar aqueles escritores que escrevem dois, três livros ao longo da vida. Como aquele brasileiro que escreveu “Lavoura Arcaica”…

O Raduan Nassar.

Exatamente. É igual. Ele, para mim, é o nosso equivalente no fado, porque está ali tudo o que é preciso. É lindo. Tenho uma história maravilhosa com ele. Nós nunca fomos amigos, e encontrámo-nos na vida para aí umas três ou quatro vezes. Eu já tinha gravado uns dois ou três discos, e ele não sabia quem eu era. Foi ao Senhor Vinho, e eu estava numa fase em que a motivação para cantar já não era muita. Andava cheia de dúvidas, de inseguranças, de vontade de desistir por não me considerar suficientemente boa. A verdade é que eu acabo de cantar, vou para o forno, que é o sítio onde fica a Maria da Fé e os vários fadistas que fazem parte do elenco, e João Ferreira Rosa entra a chorar, mesmo em lágrimas, e pergunta: “Quem é esta mulher?”, a olhar para mim, e vira-se para a Maria da Fé, e acrescenta: “Ela é como nós”.

“Ela é como nós” é muito bom. É genial. É mesmo à João…

É, não é? Quem o conhece, sabe. Eu, que detesto expor-me, e chorar em público, levantei-me e apresentei-me: “Sou Aldina Duarte.”, e ele respondeu: “Fixei. Muito obrigada.”, e eu: “Dê-me licença.” E saí a correr para a casa de banho, para chorar. E chorei compulsivamente, porque parecia que aquilo tinha sido como se o Marceneiro viesse à Terra e dissesse: “A menina há-de morrer fadista, que eu não permito que você desista.” Como se tivesse tido, ali, o certificado que precisava, dado pela pessoa certa. Nem ele sabe o quão importante foi para mim.

Passados uns anos, dois ou três, vou cantar numa gala do Casino do Estoril, e erámos seis fadistas, um deles o João Ferreira Rosa. Eu, nervosíssima, disse à Maria da Fé, que também estava: “Meu Deus, eu vou cantar no mesmo sítio que ele.” E a Maria da Fé: “Ele vai ficar muito contente, porque gosta muito de te ouvir.” Cheguei lá e fui logo ter com ele. – “Olá, lembra-se de mim?” – “Então não havia de lembrar, por amor de Deus, nunca mais me esquecerei. E estou aqui para vê-la cantar”. Fui fazer o ensaio de som, e, quando voltei, ele diz-me: “Se você canta assim no ensaio, não sei como vai cantar logo à noite”. Estava sempre a estimular. Eu só pensava, o que é que me está a acontecer? Ele deve estar a ouvir umas coisas que eu não sei bem o que são. Entretanto, convidou-me para jantar com a Maria da Fé e um grupo e lá fui e estive a ouvir as histórias dele. Quando chegou a hora do espectáculo, cantava eu, depois cantava ele e terminava com a Maria da Fé. Quando fui cantar ele, que estava na coxia, disse: “Estou aqui para ouvi-la”. Fui cantar e quando regressei ele já não estava. Era natural, tinha ouvido um fado e teria ido preparar-se. Além do mais, já tinha, com certeza, ouvido cantar os melhores da história do fado. Mas ele voltou e eu disse: “Agora também vou ficar aqui a ouvi-lo, claro”. E ele riu-se, foi e cantou a “Triste Sorte” e eu só pensava: “Meu Deus, não acredito que é o mesmo que me disse aquilo”. No dia seguinte, a Maria da Fé liga-me a perguntar se podia dar o meu número de telefone ao João Ferreira Rosa porque ele lho tinha pedido. “Com certeza”, disse. Ela lá lhe dá o número e ele liga-me. “Estou, como está? Olhe, tem aí uma caneta e um papel?”. Disse que sim e ele: “Então vá lá buscar.” E ditou-me uma letra, por telefone, escrita por ele, enquanto eu tinha estado a cantar na véspera. “Isto é você a cantar. Chame-lhe “Auto-retrato”. E como você, já sei, tem muito jeito, escolha a melodia do fado tradicional onde a quer cantar”. Estreei esse fado no Senhor Vinho e depois cantei-o nos vinte anos de carreira na Culturgest, onde ele esteve, mas estava com muita tosse e o Miguel (Lobo Antunes) fez o favor de projectar o concerto todo só para ele, num vídeo lá fora. Quando cantei o tema dele e contei a história, ele veio à sala e disse “Obrigado Aldina” (imitando a voz rouca de João Ferreira Rosa). Nunca mais o vi (emocionada)..

Que história.

Esse fado ainda o canto, aliás, canto sempre, mas nunca o gravei. Ou melhor, ainda não o gravei, porque ou crio um disco à volta dele ou tenho de arranjar um contexto muito forte para que ele sobressaia com a grandeza que esta história merece.

Gosta de criar histórias à volta…

Gosto. Eu não estava preparada para os singles, como se pode ver. (Risos). Mas isso anda-me a desafiar.

Mas não precisa. Com este “Roubados”, entrou directamente para os tops, como um vendaval.

(Risos). Sim, mas este disco é mais fácil de chegar às pessoas, muito mais fácil que os outros. As pessoas já têm uma memória, consciente ou não, das melodias, que são melodias muito mais acessíveis.

Para mim, a sua interpretação de “Vendaval” é a melhor de sempre.

Mas não tem nada a ver com o original.

Pois não, mas como eu não sou um fã do Tony de Matos…

É o que toda a gente que não é me diz (risos). Quem é fã é capaz de dizer exactamente o contrário. Um amigo meu falou-me de alguém que disse uma coisa tão engraçada, contra mim, claro, mas com tanta graça: “Vendaval é o Tony de Matos, o resto são aragens”. (Gargalhada). É espectacular. É contra mim, mas é espectacular. Tem uma certa elegância.

É preciso sofrer para cantar estes fados?

É, é. Alguns. Basta ser sensível ao outro e ao sofrimento alheio. Não é necessário passar-se por tudo isto, até porque, para se passar por tudo o que esses fados cantam, nem uma vida chegava. Mas para ser um bom fadista é preciso, de facto, ser muito sensível ao sofrimento alheio, mesmo quando se é jovem. Eu acho que quando se é jovem pode-se cantar bem, dependendo do repertório. Há características na jovialidade que podem ficar lindas no fado. Porque o fado também tem um lado muito romântico, muito amoroso, muito amável, diria eu. Os fadistas são muito fortes, são capazes de ser muito fortes, altivos, com uma coragem artística enorme, mas expõem-se em fragilidades com uma elegância que habitualmente não se associa muito ao fado. As pessoas ficam-se por aquela coisa da caricatura, do grito, do efeito, mas não é. O fado impõe-se quando alguém que faz transparecer uma força e uma coragem tão grandes, ao mesmo tempo, se expõe numa fragilidade, que poderia ser uma humilhação, mas não é. É coragem na fragilidade e na fraqueza. Têm coragem em revelar-se na fraqueza, na fragilidade, e isso…

… revela uma grande força.

Isso é uma grande força e é essa força, para mim, que muitos fados têm. Ora eu acho que não há nada mais sensível e frágil, e até arriscado, do que os amores da juventude, porque são uma coisa muito intensa e isso liga muito bem com o fado. No entanto, há um certo tipo de fado que, de facto, exige amadurecimento e algum sofrimento, próprio da vivência. O importante é que o repertório corresponda. O problema é que muitas vezes o repertório não corresponde à idade, o que faz com que soe estranho.

Às vezes até um bocadinho irritante.

Até mesmo insuportável. Não há nada pior do que mau fado. Enquanto uma má música pop às vezes até anima, nem que seja a guiar, o mau fado não dá. Fado, ou é bom, ou não dá. Não dá, porque soa mesmo muito mal. Até chega a ser grotesco.

Mas a verdade é que é preciso ser-se bastante sensível ao sofrimento, isso eu acho que sim. Embora haja fadistas que podem não ter essa sensibilidade, mas têm uma capacidade de sofrimento tão grande que já lhes basta.

A Teresa Tarouca, por exemplo.

Exactamente. Aquilo é uma ferida aberta.

O fado “Dor e Sofrimento” só podia ter sido cantado por ela.

Tão adequado e tão bem cantado, tão sensível. Eu acho incrível, acho que ela é mesmo uma fadista incrível. Todos os bons fadistas têm uma personalidade única e souberam sempre definir-se no seu repertório.

Há uma frase sua em que diz: “Pela primeira vez cantei o vazio do amor, a fealdade, e foi uma grande transformação na minha vida.”

Foi no meu disco anterior (“Quando Se Ama Loucamente”) em que dei um salto tão grande que ainda ando aqui a voar num sítio meio desconhecido. É o sítio de cantar-me, não é de cantar só o que sou, é de cantar-me, a mim. Eu ainda não tinha tido coragem de insistir tanto nisso e de escrever e arriscar cantar-me, até porque, pela minha natureza reservada e por uma série de convicções que tenho, acho que não me adapto de todo, nem me quero sequer adaptar a esta fronteira que se desmanchou, entre o privado e o público. Não quero viver nesse mundo. É evidente que estamos aqui a falar de assuntos íntimos, tudo isto é íntimo, mas não é privado. Não falarei nunca da minha vida privada a ninguém e não comprometerei nunca a privacidade de ninguém que faz parte da minha vida. Só que, sendo isto uma grande verdade, também é uma grande verdade que, na arte, não se pode dizer, “agora, dou-me até aqui.” Eu não posso dizer: “só me dou até aqui”. Tive foi de ganhar segurança, do ponto de vista técnico, porque se a técnica não estiver adquirida, não há como nos expressarmos.

Para isso foi fundamental o tempo?

O tempo e a casa de fados foram fundamentais para adquirir técnica. Trabalhar até aprender a cantar.

Ter alguém como a Maria da Fé por trás, numa convivência diária, foi importante?

A Maria da Fé foi a pessoa mais importante da minha vida. Deu-me um espaço na casa dela e confiou em mim, quando eu ainda não sabia nada, nem por onde estava a ir, e ela deu-me o espaço todo para eu caminhar. Isto tem a sua importância. Quando, às vezes, penso que tive o privilégio de ouvir durante quinze anos seguidos a Maria da Fé, todas as noites, as pessoas não têm noção do que isto representa. Não há lição maior! Não há nada que supere o que eu aprendi com este convívio.

Na técnica?

Na técnica e em tudo. Na entrega, onde sempre nos compararam. Apreendi com ela a importância da entrega diária. Pode não se ter alma todas as noites, mas pode-se ter entrega, pode-se tentar o tempo todo. Eu vi, ninguém me disse, eu vi, todos os dias, a concentração dela antes de cantar e a necessidade de relaxar após cantar, por causa da intensidade dessa entrega. E ou amas isto ou não amas; ou queres ou não queres. Foi a minha grande escola, que, felizmente, colou muito bem com a minha personalidade, quer humana, quer profissionalmente.

O que sente quando está a cantar?

É um mistério extraordinário, porque é, ao mesmo tempo, muito sagrado e quase banal, na medida em que faz parte do meu dia-a-dia.

Quando, há tempos, lhe pediram uma definição de fado, disse que a coisa mais próxima era Deus.

Pois. Não sei viver sem fé. E não estou a falar da Maria da Fé (risos). Para viver na busca da felicidade, ainda que não seja permanente, preciso de fé. É muito difícil, para mim, viver sem fé. Já tive a experiência de ter, uma vez na minha vida, uma crise de fé e foi muito penoso. Isto, só aqui, não me basta e o fado tem isso na minha vida. Com as minhas convicções, achei que devia ter sempre trabalhos paralelos à casa de fado, para não ter de ceder em nada que dissesse respeito ao meu canto. Por isso, enquanto não pude viver só do fado, fui sempre tendo outras profissões e fazendo outras coisas. Mas, há muitos anos que me dou ao luxo de viver só de cantar. Ao longo dos tempos fui recusando propostas, que me podiam ter dado uma projecção enorme, que me podiam ter tornado uma pessoa bastante mais rica, mas eu não faço cedências. É um compromisso comigo mesma, não sei viver a fingir. Eu troco dinheiro por tempo. Propõem-me ir fazer uma tournée de mês e meio não sei onde e não vou. Não vou, lamento. Dava-me umas boas massas, se calhar pagava logo o que falta da casa, mas prefiro ficar a dever mais uns anos (já está quase). É a vida.

Esses princípios, em que não transige, ficaram-lhe da infância, de que sei, não gosta de falar?

Não é que não goste… já falei o que tinha a falar. Mas, sim, a infância, sobretudo a primeira infância, que é aquela a que se dá menos importância e talvez seja a mais marcante, porque a outra, ainda a transformamos com as condições em redor, acredito que me marcou definitivamente. O meu instinto de sobrevivência vem daí. Sou muito boa a sobreviver e ando a aprender a viver bem. Isto pode parecer absurdo, mas viver, simplesmente, para mim, durante muito tempo foi estranho, porque precisava daquela luta permanente… da sobrevivência. Quando começava a ficar tudo estável, não reconhecia o terreno. Então, até sabotava o sucesso das coisas. Parece um bocado doentio, mas é verdade. Eu era boa a sobreviver e o resto era-me desconhecido. Actualmente, não. Aprendi, felizmente, a viver e a estar bem e a sentir-me merecedora. Porque quando se cresce tão pobre e se vence tanto, e se vai tão longe como eu fui, a fazer tão livremente tudo, às vezes, há uma sensação…

É feliz?

Feliz, completamente, é impossível, porque ainda há demasiada gente a morrer injustamente e a ser injustiçada de várias formas. Portanto, ser completamente feliz, não. Há uns momentos, mas não. O mundo é muito foleiro, embora eu goste muito das pessoas. Nesta hierarquia das formas de vida, do que mais gosto é das pessoas. Portanto, acho muito tosca esta fase da nossa evolução, porque continuo a não compreender como é que alguém consegue ser podre de rico e ao lado existirem pessoas a passar fome.

Estamos a caminhar para pior?

Não, de todo. Não acredito nisso, nem que quisesse (gargalhada). Às vezes tento ser mais pessimista, mas tenho a doença do optimismo, que é muito perigosa.

Mas é uma belíssima doença.

Às vezes leva à ilusão. Temos de ter cuidado. É preciso ser realista. A ilusão nunca é boa. Às vezes, o meu extremo optimismo, que é inato, salva-me em momentos cruciais, mas obrigo-me a descer a Terra, porque o optimismo tem esse perigo da ilusão. Aquela ideia de que agora vai ficar tudo bem, porque as coisas não podem ser tão más, de que as pessoas não podem ser tão más, e afinal são. Há pessoas mesmo muito más e há coisas mesmo muito mal feitas. Mas pronto, é uma aprendizagem.

Depreendi que ache que estamos a caminhar para melhor.

Estamos, só que o que é bom não é visível nem valorizado.

E o que é bom?

São pessoas que, por exemplo, não perdem de vista a sua individualidade nem a do outro, que fazendo parte de um grupo e de uma espécie, aceitam as suas diferenças tal como aceitam as dos outros. A diferença é uma coisa maravilhosa, super-enriquecedora, e é tratada como se fosse um papão. Portanto, bom seria um mundo menos desigual, sobretudo no que diz respeito às necessidades básicas. Não me importo nada que existam pessoas que tenham aviões privados, desde que não haja ninguém a passar fome, é só essa a questão. Eu nem quero nenhum avião privado, não acho graça nenhuma (risos). Em boa verdade, eu nem quero fazer tournées (gargalhada).

Muito menos num avião privado.

Quero ter tempo para as pessoas de quem gosto, quero ter tempo para as coisas de que gosto. Prefiro ter tempo para ler um livro.

Os livros continuam a ser um escape, como eram na adolescência?

Sim (sorriso rasgado). Tive de fazer uma escolha, ou tinha uma sala de jantar ou tinha mais um acrescento na minha biblioteca. Desisti do acrescento e fiquei com uma sala de jantar (risos). É que uma sala dá muito jeito para receber amigos, com os quais podemos conversar um bocadinho sobre os livros. Mas andei muitos anos a não ter sala de jantar para ter uma biblioteca. Eu isolo-me facilmente, porque gosto, tenho prazer, não sofro de solidão nenhuma. Tenho um mundo de afectos riquíssimo, enorme, e chega-me de tal maneira que sou capaz de me distrair e depois, quando dou por mim, estou ali há não sei quanto tempo sozinha a fazer coisas, a ler, a ouvir música, a cantar, a telefonar para a minha mãe. Acho que ainda me lembro, às vezes, de telefonar para a minha mãe ou para os meus sobrinhos (gargalhada). Esta minha família, que é adorável, que me aceita como sou, em tudo, e me ama como eu sou, o que é uma bênção, sabe que o meu amor por eles não se traduz nas rotinas habituais: telefonar, ir ao domingo, etc. É muito importante termos a sorte de ter pessoas que nos compreendam. Se calhar, a pessoa que me amou mais e melhor na vida, na altura mais importante, foi a minha mãe e isso fez toda a diferença, porque eu podia ser uma pessoa muito amarga, porque sou dura, porque tenho um traço de carácter muito agressivo, porque tenho um lado mais obscuro, mas esse amor da minha mãe, inicial, foi determinante para que não me tornasse uma pessoa amarga. Se o fascismo também foi determinante, porque me tirou a infância, como eu costumo dizer, o amor da minha mãe foi mais forte, foi o que me salvou, porque senão, hoje, podia ser uma pessoa bastante amarga e revoltada e não sou.

Onde se prova que o amor tem mais peso.

Tem. Por isso é que eu digo que só não percebe isso quem não sabe o que é o amor, quem nunca foi amado.

Como vai a escrita?

Não tenho compromisso nenhum com a escrita. Sou uma leviana com a escrita.

Depois do melhor álbum de fado das últimas décadas, já tem projectos para o próximo?

Já estou a trabalhar no próximo, mas não é exactamente meu. Quer dizer, é meu porque o vou escrever, mas nem o vou cantar.

Estou a escrever um disco para crianças. Um conto de fadas para crianças, todo cantado em melodias do fado tradicional, com arranjos do Pedro Gonçalves, em que as personagens vão ser vários fadistas e eu só serei narradora num tema, no início. Se calhar nem vou cantar.

Está para breve?

Para breve não, mas já estou a trabalhar nele. Mas cada vez escrevo mais. Estou a começar a criar alguma autodisciplina para escrever, porque fiquei com essa vontade desde o meu último disco. Como escrevi um disco inteiro a contar uma história – “Quando Se Ama Loucamente” – fiquei com imensa vontade e decidi que, quando tenho um momento forte na minha vida, seja no que for, tento pô-lo em fado. Faço a letra em bruto, imagino a melodia e ponho por escrito e depois deixo para ali, numa gaveta, e logo se vê. Mas são coisas que vivi, e isso é uma coisa que ultimamente me interessa.

Porque estes fados que canto em “Roubados”, por exemplo, são coisas que eu vivi, porque foram fados que eu ouvi cantar todas as noites nas casas de fado, ao longo dos anos, pelas mais diversas pessoas. Ouvi alguns desses fados cantados pelos fadistas que me marcaram mais, pelos próprios criadores, são pessoas com quem tenho histórias pessoais. Isso é quase uma espécie de biografia do meu percurso de fadista, nestes anos. Portanto, ao criar essas versões eu também estou, à semelhança do que já tinha feito no anterior, a contar a minha história. É uma biografiazinha, uma breve biografia. Porque eu acho que esse sítio aonde vou quando me canto a mim, só consigo ainda ir quando canto coisas que eu realmente vivi. É o que me faz cantar melhor, interpretar melhor. Agora, na casa de fados, a minha descoberta é essa, quando saio dos fados que vivi para os fados a que eu sou sensível, ou porque a linguagem me cativou, ou porque a poesia me seduz, ou porque a melodia me encanta, reparo que…

… não é a mesma coisa.

Não. É como se eu voasse, como se fosse a um lugar. É isso, quando canto coisas que vivi, vou a um lugar que às vezes dói, que é mais assustador.

Porque é mais intenso?

Não, porque não sei o que é. Não reconheço tão bem e como não tenho a visão de cima, do helicóptero, como tenho nos outros, às vezes assusta-me, mas a verdade é que se vai mais longe e fica-se melhor, fica melhor, o fado fica mais rico, fica mais inteiro.

Há mais entrega?

Como lhe digo, não sei. Ando a sobrevoar um terreno desconhecido. Mas gostava de conseguir essa intensidade e inteireza nos outros fados.

Muitos dos fados que cantou foram escritos exclusivamente para si, por poetas extraordinários como a Maria do Rosário Pedreira ou a Manuela de Freitas. Nesses casos sente essa intensidade, essa inteireza?

Nesses casos é a Aldina a ser a voz de outros. Na interpretação, às vezes, é preciso ter essa inteligência de perceber que, por mais que eu ache que aquilo sou eu, não sou. Também tenho de querer saber o que está ali, para além de mim. Essa é que é a poesia. Uma vez o Padre Tolentino fez-me um dos elogios mais bonitos que já me fizeram: “A Aldina é a voz da poesia no fado.” Não é poesia, poema, é a poesia que há naquele fado e que tem a ver com a letra, mas também com a melodia, que muitas vezes não se sabe com o que tem a ver, mas que tem a ver com o todo. Por isso, seria muito errado eu cantar um fado que claramente foi escrito por outra pessoa sobre um acontecimento que nada tem a ver comigo. A Manuela Freitas, ou a Maria do Rosário Pedreira, ou o João Monge, já escreveram para mim, mas a pensar em mim.

O João Monge fez um disco inteiro a pensar em si.

Foi mesmo a pensar em mim, mas mediante a forma como ele me via, que não quer dizer que seja, exactamente, aquilo que eu sou. Escreveu a partir daquilo que ele achava que era a minha vida. Mas é a visão dele, não é a minha, e eu tenho de ter essa humildade, enquanto intérprete, de perceber que me vou cantar com o que sou, mas vou cantar, também, a visão do João, que não é a minha. E isto é um desafio incrível. Este foi o meu maior desafio ao longo dos anos, porque não tinha coragem nem recursos para ir onde fui agora. Não tinha. Era muito arriscado, com as limitações técnicas que tinha, durante uma série de anos, tentar interpretar o que estou a interpretar agora. Só servia para me frustrar, para me violentar. Agora, acho que já tenho o mínimo essencial para conseguir. Isso já é bom.

E quer assumir esse desafio de se cantar.

Quero, quero muito.

“Já não são cantos, são fados. Já não são fados, são vida.”

Exacto. É mesmo isso, porque cheguei a um ponto em que a minha vida e o meu trabalho já não são distinguíveis. Não sei que caminho é que isto vai tomar, mas sei que estou muito bem onde estou.

“Romance(s)”, fica marcado pelo início da sua ligação musical a Pedro Gonçalves, dos Dead Combo e, penso não errar, é o primeiro álbum que não é produzido por si. Foi um desafio?

Foi a Paula Homem, minha editora, que me disse que achava que estava na altura de ter um produtor e sugeriu o Pedro Gonçalves. Assim que ele entrou, e nos sentámos à mesa, olhámos um para o outro e percebemos “isto não tem retorno, vamos ficar amigos para toda a vida”. Foi tipo aquelas coisas que há, dos amores à primeira vista. Depois com as afinidades todas artísticas que tínhamos, meu Deus! Assim que entrámos em estúdio aquilo parecia um turbilhão. Mas, convém dizer, seria até errado não o fazer, que foi a primeira vez que tive alguém a ouvir-me de fora, nas mãos de quem me coloquei absolutamente. Felizmente, foram as mãos certas, como no caso do Camané com o José Mário Branco. Repare que o Camané é um génio no que faz, tinha toda a sua história fadista, já era um diamante bruto, ou melhor, era uma mina de diamantes, mas, de facto, quem lapidou aquela jóia foi o José Mário.

Com pinças, como ele disse que se deveria mexer no fado.

No meu caso com o Pedro, tem a ver com o amparo. Eu até posso ter sobrevivido sozinha e bem até uma certa altura, mas não há dúvida que há coisas que só juntos é que conseguimos, sozinhos não somos capazes. E o Pedro é esse exemplo, nada foi tão longe como quando o Pedro me ouviu de fora e disse o que achava, ou quando simplesmente estava ali para o meu canto soar melhor. E gravar um disco com alguém como o Pedro, a ouvir-me e a decidir comigo e a decidir por mim, foi extraordinário… Quando era miúda, com seis anos, fiquei com as chaves de casa o dia inteiro. Pode-se pensar que era espectacular, mas não está certo. Não é assim que se é infante, que se exerce a infância. Por isso, para mim, foi uma sorte quando, aos sete, o meu padrasto entrou na minha vida e já não precisei de ter a chave de casa (risos). Com o Pedro aconteceu um bocado isso. Tive a sorte de ter uma infância, na minha arte, muito amparada, porque tive a Maria da Fé a dar-me uma casa e a ficar comigo, tive a sorte, quando gravei o primeiro disco, de ter o Miguel Lobo Antunes a dizer “vens para o mundo, mas eu organizo tudo. Vais com o Jorge Silva Melo para o palco” e depois apareceu o Pedro para me dar conforto.

Também não fez a coisa por menos (risos). Tudo à grande.

É verdade, tudo à grande (gargalhada). Eu resisto muito, mas eles confiam em mim. O Miguel ajudou-me imenso e tornou-se no meu melhor amigo. Hoje, como eu costumo dizer, faz parte do meu sangue.

O Miguel Lobo Antunes que, surpreendentemente, tem um desempenho brilhante como protagonista do filme Technoboss de João Nicolau.

Verdade (risos). Eu e o Miguel somos amigos íntimos, conhecemos muito bem a vida um do outro e ele não me quis falar muito dessa aventura. Enquanto andava a fazer o filme não o vi durante muito tempo, porque andava bastante ocupado. Quando fui ver o filme, esqueci-me que era o Miguel que estava no ecrã. Não há nada melhor. Esqueci-me que era o Miguel e estava a ver um senhor actor. Sabe aquela ideia que a gente tem, que aquele senhor deve ser importantíssimo para uma companhia de teatro qualquer. Deve ter andado a vida toda a fazer Shakespeare e agora decidiu fazer um filme (gargalhada). Foi o que senti e fiquei orgulhosíssima.

Mas sabe o que é que eu acho? Que é uma espécie de justiça divina. Se formos ver bem, aquele homem fundou o Centro Cultural de Belém, estruturou um espaço cultural como não havia, saiu para fazer o mesmo na Culturgest, já para não falar de outras coisas anteriores, mais esporádicas, por isso nada mais justo que, já reformado, brilhe desta maneira no filme do João Nicolau. O Miguel tem 72 anos, que, para mim, são uma lição. Quero ser assim quando for mais crescida, porque ele é uma pessoa extraordinária e foi uma bênção na minha vida.

Ter bons amigos é fundamental?

Nem sei viver de outra maneira. Não imagino o que será uma vida sem amigos, mas deve ser a coisa mais triste do mundo. As minhas amizades contam-se pelos dedos, mas são muito sólidas. Os meus amigos são tão importantes como a minha família, são amores diferentes, mas não competem entre si, não abro mão de nenhum deles. Claro que não tenho muitos amigos, nem tenho tempo de tratar bem de todos. Não se pode ter assim amigos à balda. (Risos).

É preciso cuidar bem deles?

Sempre. Um amigo é uma coisa preciosa e muito rara. Eu tenho muito brio em ser boa amiga. É um dos meus maiores orgulhos. Acho que sou mesmo boa amiga (risos). Por acaso gosto de mim como amiga (gargalhada). Sei que parece mal eu estar para aqui a dizer isto…

Acho que isso ficaria muito bem num fado. Gostava de a ouvir cantar esse bom gosto em ser boa amiga.

Se um dia for tão boa fadista como sou boa amiga, é porque estou a voar mesmo, mas por enquanto ainda é só o vento que me leva.

Se tivesse de escolher “O” fado, qual seria?

Não é fácil, mas atrevo-me a escolher “Triste Sorte” do João Ferreira Rosa.

Poema do João, na melodia do Fado Cravo.

Sim. Se escolhesse um hino fadista, para mim seria aquele, porque tem uma simplicidade na linguagem que advém da sabedoria, da vivência. Só quando já se sabe tudo é que se pode simplificar daquela forma, como o Picasso dizia: “Andei trinta anos a aprender a desenhar como o Miguel Ângelo e o resto da vida a desenhar como as crianças”, e aquela letra do João, tem isso, é aparentemente uma letra tão simples que pensamos: “podia ter sido eu a dizer isto, podia ter sido eu a escrever isto”, mas não podia.

 

Por João Moreira

Fotografias: Alfredo Cunha

Este site utiliza cookies para permitir uma melhor experiência por parte do utilizador. Ao navegar no site estará a consentir a sua utilização. Mais informação

Se não pretender usar cookies, por favor altere as definições do seu browser.

Fechar