Diário de bordo – Abril, revoluções mil ao telefone

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Começou tudo com um post da livraria Poesia Incompleta que dizia algo como – Farto do distanciamento social? Ligue SOS Poesia.

Fui à gaveta dos projectos-que-queremos-tanto-fazer-e-nunca-conseguimos, raptei um documento que se chamava “consultórios literários” e telefonei ao famigerado livreiro. Perguntei-lhe: Queres vir comigo? Ele disse que sim porque não tinha como me dizer que não. Em menos de vinte e quatro horas montámos um consultório telefónico para resolver os males do corpo e do espírito com poesia. Minto. Não foram vinte e quatro horas. Nem só dois cúmplices. Foram 30 anos de amizade e de leitura entre pares, projectos discutidos e (re)pensados vezes sem conta com uma associação maravilhosa e ruminante com quem dei os primeiros passos e espero dar os últimos, uma equipa inteira de um teatro prodígio em Viseu, e uma longa e crente espera pelo momento em que o encontro entre as forças cósmicas (leia-se: nós e o mundo lá fora) aconteça ao serviço da mais bela  missão na Terra: criar.

O formato era simples. Um número de telefone. Não há vídeo. Uma queixa, uma dor de alma, um mal de amores, e Zás! Um diagnóstico em 15 minutos.

O desfile de ilustres foi interminável. Rimbaud para melancólicos, Herberto Hélder para servos do coração, Jorge de Sousa Braga para a falta de fé, Shakespeare para os (des)encantados, sempre Césariny, Rui Nunes, Margarida Vale de Gato, Miguel Martins, Vasco Gato, António José Forte, Camilo Pessanha, Edson Russel. Quartos de hora que catapultavam o ouvinte para fora de casa. A intimidade com um estranho, a troca de palavras escritas por outros que nos confirmam ou deslindam o que pensamos. O público e o privado unidos pelo mais belo dos instrumentos: a voz deitada na poesia. A voz real, física, presente, em nossa casa, a entrar pelo nosso corpo e pela nossa cabeça numa época em que nos pedem uma distância social sem precedentes, achando plausível o impedimento temporário de falarmos com estranhos.

Começámos no dia do pai, terminámos no dia da poesia. Os dias foram mágicos e serão para mim inesquecíveis, sinal da minha muito peculiar quarentena, em contacto com tanta gente que nunca ouvira nem, e em múltiplos lugares devido à minha nova profissão. A geografia, se não são a condição, também não será a condicionante. O limite é a vontade. E por isso esses dias não terminaram aí.

E se fizéssemos isto com o Miguel Gouveia da editora Bruáá para os mais pequenos se poderem queixar dos problemas mais loucos e obterem as respostas mais absurdas? Pegámos no telefone e perguntámos: Gostamos tanto de te ouvir, queres vir connosco? Ele também disse que sim.

E se nos puséssemos ao telefone com os 5 continentes? O espectador podia convidar quem quisesse ou mesmo oferecer boleia a um desconhecido, e viajar de videochamada, até Macau, Melbourne, São Paulo, Fortaleza, Funchal, Antuérpia.

Nasceu assim o Consultório Turístico no fim-de-semana de Páscoa: 9 países, 3 continentes e até 2 planetas, com uma escapadinhas a Marte. Fizeram-se encontros em hotéis fechados no Funchal, visitas guiadas em Antuérpia por musas desempregadas, call girls em São Paulo, surfistas bolsonaristas em Fortaleza, o mar, o mar, o mar em Melbourne e as ruínas de São Paulo em Macau. Entusiasmámo-nos. Agora vamos celebrar a revolução de abril. Como? Com quem? Com a Aldina Duarte. Com o Jorge Silva Melo. Pegámos no telefone para convidar. Cantar fado ao telefone? Não sei se me apetece mas tenho aqui um poema que faz parte da minha vida (vejam no Subpalco do Teatro, é de cortar a respiração).  Ler ao telefone?, disse Jorge Silva Melo, certo, mas não ouço bem, posso gravar? (Vejam a contrassenha da nossa revolução na companhia de Mário Dionísio).

Foi ao telefone que ouvi o som de uma ideia a nascer. Na voz de Joana Craveiro, uma especialista em teatro documental, entre virtudes várias: “Desço a Avenida da Liberdade todos os anos desde que nasci”, diz-me. E eu percebo que naquele exacto momento ela está a criar em voz alta, percebo que se ficar ali quietinha, perto dela, terei o privilégio de a ver dar à luz uma performance que fará História.  Pensei: “Ela vai descer a avenida sozinha este ano”. Mas ela não desceu. A nossa capitã de abril de 2020 subiu a avenida, escalou 46 anos de pós-revolução, levou-nos a todos à rua em plena quarentena,  deixou-nos a lacrimejar onde queríamos todos estar – em 1974. Munida de dois telemóveis, um saco de compras com rodas e uns quantos frascos de álcool, durante 12 horas, Joana Craveiro percorreu, incansável, o caminho da revolução pelas ruas desertas de Lisboa, ao telefone com os nossos heróis.

Um milhar de espectadores, desfazendo-se em lágrimas, acompanhou em directo o streaming da performance duracional do Teatro do Vestido, A Cidade Lavada e Livre, no Subpalco digital do Teatro Viriato, um palco especialmente concebido e estreado para o efeito. “Não há descontinuidade entre passado e presente” dizia Joana Craveiro, “estamos todos a acontecer”.

Em simultâneo, 4 actores do Teatro do Vestido – Alexandra Freudenthal, Daniel Moutinho, Estêvão Antunes e Tânia Guerreiro – atendiam telefonemas de espectadores e faziam-nos viajar até outros momentos poéticos, como aquele em que alguém decide juntar-se a uma revolução quando “ainda não se chamava revolução” ou se despede, pedindo um último cigarro.

Uma ideia tão simples, tão genial.

 

Para quê? Porque criamos coisas? Para as dar?  Para ocupar o nosso lugar? Para perguntar “Está aí alguém? Querem vir comigo?”

 

Muito se tem falado da distância, do digital, do streaming, dos teatros fechados, da impossibilidade de fazer teatro e aglomerar pessoas. E a verdade é que Joana Craveiro e o Teatro do Vestido contrariaram todo este discurso mais ou menos consensual.

Na minha história pequenina e pessoal, a performance da Joana Craveiro começou naquele meu telefonema para a Livraria Incompleta. Não! Minto. Foi no telefonema inesperado que ela me fez quando começou a sua performance, às 8 da manhã, em Campolide, e que me fez recordar que o meu pai, em Angola, soube da revolução através de um telefonema da minha mãe, que saíra à rua nesse dia de abril para me vacinar. A minha mãe disse ao meu pai “É desta!” (Não o tinha sido da outra, a do dia em que eu nascera, o do golpe falhado, a 16 de Março de 1974). E para a Joana, quando terá começado? Quando terminará?

Qualquer criação tem uma duração de gestação maior do que a de um elefante. Nove anos não chegam para marinar uma ideia que pode não vir ao de cima por falta de meios, de contexto, de coragens, ou, tão-só, de ouvidos.

O mês de Abril passou num instante, ao telefone com o planeta, com a criação e seus criadores. E eu, numa felicidade ímpar de quem aterrou, por puro acaso, no melhor lugar que há para assistir à criação do belo e da mudança, arrisco-me a telefonar de novo, a partir dos bastidores, daquele lugar onde se encontram autores, artistas, artesãos, técnicos, produtores, instituições, associações independentes, burocratas, pessoas inacreditavelmente generosas, muitos loucos ou uns tantos sábios.

– Estou, é o Gonçalo M. Tavares? Eu queria muito convidá-lo para…

– Claro, faço com todo o gosto mas tenho aqui outra ideia que talvez seja melhor…

Por Patrícia Portela

(to be continued)

 

Para saber mais sobre estas performances por favor ver aqui em

www.Teatroviriato.com

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