Acordar cheio de bolhas

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Regra dos livros: um ativo vale a soma dos seus rendimentos futuros aos preços de hoje. Regra das nuvens: um ativo vale o que o último louco estiver disposto a pagar por ele. Regra dos sem regras: pode ser que eu não seja o último louco. Há milhares de textos de economia sobre bolhas especulativas e este não é mais um. É sim um texto sobre quando o céu nos cai em cima da cabeça: mais coisa menos coisa, ele cai sempre que a distância entre ele e ela sugere como virtude o que é defeito. Um defeito por excesso. O excesso de “valorização”. O lucro não é plano, mas também não é redondo. Qual lucro? O do mercado imobiliário, que nas grandes cidades portuguesas cavalga por falésias acima. Aquela regra dos livros está sempre certa e sempre a errar. Ela aplica-se tanto a ativos mobiliários (ações de empresas cotadas, por exemplo) como a ativos imobiliários (prédios, casas, terrenos). Numa ação cotada, calcula-se o valor atual dos dividendos futuros e já está. Num prédio, faz-se o mesmo às rendas e também já está. A variável, claro, está nesses cálculos, uma vez que uma empresa pode ser melhor gerida ou aplicar uma inovação que aumente os lucros futuros e, portanto, os dividendos. O mesmo num imóvel, que também pode ser alvo de investimentos aumentando as rendas ou beneficiar de condições “inovadoras” de procura que também façam subir as rendas. A primeira explicação para a subida dos preços sobretudo nos centros de Lisboa e Porto é esta: a procura turística aumentou, o que levou empresas a comprar prédios para construírem hotéis e particulares (ou mesmo pequenas empresas) a aderirem ao alojamento local, assim aumentando a rendibilidade dos imóveis e logo os seus preços. Também grandes fundos de investimento estrangeiros encontraram em Portugal margens de rendibilidade maiores do que noutros países já em estado de maturidade e canalizaram os seus investimentos para cá. Mas depois há outros fatores, incluindo o da pura especulação. Repare-se, na tal regra dos livros não entra nos cálculos que um ativo vale hoje o seu valor potencial de venda. Assim é porque num mercado racional (e os mercados são sempre alterados por epidemias de comportamentos não racionais de agentes económicos), o valor de uma venda também é calculado pelos seus rendimentos futuros: se o comprador acredita que pode gerir melhor ou obter sinergias desse ativo, paga mais porque crê ser capaz de aumentar essa rendibilidade. Nas bolhas especulativas não é assim. Muitos compradores entram no mercado e compram apenas porque acreditam que em breve conseguirão vender mais caro, mercê não da sua qualidade de gestores mas da evolução incontrolável do mercado. Estas bolhas, que são cíclicas nos mercados financeiros, promovendo grandes deslocações de capital, vão gerando grandes fortunas e grandes imodéstias: os vendedores tomam-se por grandes visionários quando na prática estão apenas a surfar uma onda gigante. Toda a gente está temporariamente a ganhar. Fazem-no, para mais, com crédito fácil da banca, que entra no festim nu porque é a dar crédito que os bancos lucram. E fazem-no com o Estado saciado por impostos que tributa nas compras, mas mais-valias e nas propriedades. Até que um dia a onda, ou a bolha, rebenta, com estrondo ou ao longo de anos, e os últimos compradores ficam com ativos sobrevalorizados que já ninguém quer pagar, devendo ao banco somas que muitos já não conseguem saldar. O resto… bom, o resto aconteceu em Portugal por alturas da Troika, com os portugueses a perceberem que estavam quase sem poupança, com milhares de empreendimentos parados em obras, malparado a crescer, os bancos a precisar de capital e os Estados a distribuir dinheiro de contribuintes por causa dos riscos sistémicos. Ninguém sabe calcular a última finura da película da bolha antes de ela rebentar. O mercado imobiliário de Lisboa e Porto pode ainda subir mais antes de o céu nos cair em cima da cabeça e enquanto isso iremos ouvir especialistas de mercado, que normalmente são intermediários que ganham à comissão, dizer que “os preços são sustentáveis”. Até lá, há um efeito direto que é o afastamento do centro das cidades das classes pobres e médias, o que além dos dramas particulares desenraíza as próprias cidades. Quando a economia não serve a sociedade mas agrava as suas desigualdades, a sociedade racha o seu vínculo da identidade. E aí já não há livros nem nuvens, há extratos bancários, escrituras nas gavetas e talvez bolhas nas mãos.

 

Por: Pedro Santos Guerreiro

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