Tanto mar e o ter de se sair para se poder voltar

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Conversámos com Bárbara Coutinho, diretora do MUDE – Museu do Design e da Moda, a pretexto da exposição Tanto Mar – Fluxos Transatlânticos do Designque o Museu realizou recentemente fora de portas, entre Março e Julho de 2018, no Palácio dos Condes da Calheta, Jardim-Museu Agrícola Tropical, em Lisboa. Esta exposição, fruto de uma curadoria conjunta de Bárbara Coutinho com Adélia Borges (Brasil) juntou design contemporâneo de Portugal e do Brasil num diálogo transatlântico. Quisemos saber tanto desta exposição como do atual momento do MUDE, um museu que – descobrimos – se quer em constante mudança!

 

Comecemos pela instituição. Com o MUDE fechado para obras…

 

Bárbara Coutinho – O MUDE não está fechado para obras! O que está fechado é o “equipamento”, o edifício sede do MUDE, para obras de requalificação integral.

Trata-se de um edifício que ocupa um quarteirão inteiro e julgo mesmo que poucos terão a perceção da dimensão que este espaço tem. Mesmo visto do exterior, engana-nos de uma certa forma, visto que não se percebe que aquele espaço tem 8 pisos e 15.000 m2. Irá tornar-se [agora] num enorme equipamento, com uma considerável área dedicada exclusivamente ao Design, nas suas mais diferentes expressões. Como é sabido, abrimos ao público em 2009 assumidamente como um museu “In Progress”. Assumindo o espaço como rotina e matéria, como lugar de trabalho. E fazendo este processo de ocupação das pré-existências.

Mas tudo tem um limite, na medida em que há condições de segurança, sobretudo dos bens [em exposição], entre outras questões verdadeiramente problemáticas, tais como a falta de acessibilidades para pessoas com a mobilidade condicionada, que antes não poderiam passar do primeiro piso.

A generalização do conceito de Design, na sua aceção mais contemporânea, é-nos muito recente. Um fenómeno de nicho, entre o início e finais dos anos 90, e que surge na sequência de uma revolução cultural que se operou em Lisboa por essa época. Gente ligada à cultura, desde a música até à arquitetura, que se começam a interessar por outras áreas, e a procurar a multidisciplinariedade ou os cruzamentos interdisciplinares. E, num curto espaço de tempo, deixou de ser algo de marginal e ganhou a atual dimensão e aceitação que tem na sociedade. Como explicar esta tão súbita revolução?

Foi uma alteração rápida, sim, e terá sido acompanhada pela abertura a um certo cosmopolitismo ligado, se quiser, à educação e a uma noção mais concreta por parte das pessoas, das várias gerações que entretanto foram surgindo, da importância da arquitetura, do design, do gosto, do desenho, do traço, da urbe… de inúmeros fatores. A realidade é que hoje, em 2018, quando falamos de Design, estamos longe daquilo que era a realidade dos anos ‘80 ou ‘90 ou até mesmo o início do século XX.

 

Mas houve, também, outros importantes fatores que contribuíram para uma divulgação do design em Portugal. É inegável que a ação da experimentadesign (bienal de Lisboa) foi bastante importante para uma determinada forma de divulgar o Design e trazer nomes internacionais, para fazer um cruzamento entre esses nomes, grandes nomes, grandes referências do design mundial e o que era a geração de designers portugueses que, entretanto, foi ganhando conhecimento e estabeleceu contactos, etc.. Sem dúvida, a experimentadesign pôs o Design na moda, através de uma estratégia de comunicação e marketing muito forte.

Apesar de tudo, há ainda muito por fazer e é preciso tempo e um outro tipo de trabalho para que consigamos chegar a níveis que outros países já chegaram, não é que os precisemos de ter como referência. Mas nunca tinha existido um museu do Design em Portugal.

O MUDE, entretanto, estreou-se fora de portas com três exposições. A ideia de trabalhar e mostrar esta ligação que sempre existiu, entre o design brasileiro e o design português, aconteceu na sequência do Lisboa Capital Ibero-Americana da Cultura?

Esta programação do MUDE nasceu exatamente para responder a um desafio que surgiu por intermédio da Vereação da Cultura da Câmara Municipal de Lisboa enquanto “Capital Ibero-Americana da Cultura”. O programador António Pinto Ribeiro entendeu que era essencial que houvesse uma relação natural e em rede com os vários equipamentos como complemento a esse programa.

E eu vi nisso uma oportunidade para aprofundarmos algo que já tínhamos começado a fazer e que era nossa intenção vir a desenvolver. Em 2014/2015, houver uma exposição comissariada por mim, que se chamava – aliás, chama! Pois encontra-se em itinerância e atualmente está a ser apresentada em Rhode Island, na RISD (Rhode Island School of Design) a ser apresentada – “Como Se Pronuncia Design Em Português” que é e ficou assumidamente como uma pergunta.  E brincando um pouco com isso e sobre aquilo que o Robin Fior [Designer, 1935-2012] dizia, que o que era preciso era tirar as “aspas” ao Design, que resolvi que seria pertinente tornar a visitar a questão – Como é que (afinal) se pronuncia Design em Português? – focando-me no “design de produto”. E o título da exposição manteve-se como uma pergunta porque a intenção não era a de afirmar que exista um “design nacional” ou “design português”, ponto.

Parece-me que deixou de fazer sentido esse tipo de afirmações. Mas foi, no fundo, olhar para aquilo que tinha sido a nossa cultura material do século XX e perceber se haviam pontos fortes, se havia ideias, que na minha perspetiva poderiam constituir características não distintivas, comuns às de outros países, mas que seriam, no nosso caso, características específicas na nossa evolução.

Mas ainda em 2015 procurei o Frederico Duarte, porque sabia que ele estava a fazer a tese do doutoramento sobre o Brasil e comuniquei-lhe que gostaria muito que fosse ele o curador de uma segunda exposição. Porque esta exposição, que nasceu com o “como se pronuncia design em português”, sempre foi idealizada como um primeiro capítulo. Na forma como a imaginara, em 2014, haveria um segundo capítulo a tratar a relação Portugal-Brasil e ainda um terceiro, a abordar Portugal, Brasil e África, para – no fim de tudo – se tentar responder à questão de se existe um “design em português” ou um “design português”.

E assim que soube que em 2017 ia ser Lisboa Capital da Cultura Ibero-Americana… senti que era chegado o momento.

E aí falei com o António Pinto Ribeiro, com quem também já tinha falado a propósito de África e onde o desafiei a fazermos algo acerca disso. Isto muito antes de a “Capital” surgir. Mas foi então que assumi querer desenvolver três exposições. Exposições essas que partissem do geral para o particular e tornassem a regressar uma vez mais ao geral. O António Pinto Ribeiro aceitou, a Vereadora também, e então fizeram-se estas três exposições: a primeira que se chamou “Novo Mundo”; a segunda que se chamou “Brasil Hoje” (que tinha também como subtítulo, o “como se pronuncia design em português”); e a terceira que se chama “Tanto Mar”. E foram todas realizadas no Palácio da Calheta, em resultado de uma parceria com a Universidade de Lisboa e com o Museu de História Natural. Aliás, assim que o encontrei, apercebi-me de que era a casa certa para estas três “discussões” – qual era a nossa relação com as ex-colónias, com os territórios colonizados, e como é que isso se expressava através do design e da cultura material -, além de que este paláciom um acervo fantástico e pareceu-me que era mesmo a “casa certa” e que esta própria casa seria também um conteúdo a trabalhar.

Num breve resumo de cada uma destas exposições, e, começando com o “Novo Mundo”, propôs-se (através da “Ibero-Americana de Desenho”) um olhar para os 23 países do espaço ibero-americano, com um enfoque entre 2008 e 2016.

E o “Novo Mundo” foi essa incursão pelo mapa geopolítico do atlântico sul, foi o olhar para esta relação, tendo em conta os dois lados do atlântico, perceber um pouco o que é que é a produção aqui ou acolá. O Brasil tinha uma tradição de ir às raízes muito maior que a nossa.

Esta incursão pela América do Sul ou América latina e América central, permitiu-me ficar a conhecer melhor uma realidade que não era assim tão próxima, mas que me fez perceber como é que nós estamos a falar num contexto que ainda é muito pouco conhecido no mercado ou no sistema global do design que ainda é muito marcado pela cultura anglo-saxónica. Mas que é um território interessantíssimo de práticas colaborativas, participativas de trabalhos de coletivo, de trabalhos com as populações, com as comunidades, de uma atenção muito grande às questões da sustentabilidade no seu todo, não é só a sustentabilidade ambiental, mas à sustentabilidade económica.

De seguida, fez-se o “Brasil Hoje”. Quando convidei o Frederico Duarte já sabia que o Frederico não me ia cair naquilo que era o “Brasil com Z” e, sim, que iria mais fundo procurar encontrar como é que o Design tinha respondido às grandes questões do século XXI.

Já a última que se estreou resultou de um convite que fiz a Adélia Borges, que é uma curadora com mais de 60 anos. Jornalista, que se tornou curadora e diretora do Museu da Casa Brasileira. Quando lhe lancei o convite perguntei-lhe se quereria fazê-lo a quatro mãos. E ela aceitou fazê-lo em parceria e começámos então, de imediato, a criar o “Tanto Mar” nos mesmos moldes em que eu já me tinha debruçado sobre Portugal. Partirmos do geral, num olhar para o Brasil que se começou a cruzar com a perspetiva que eu já tinha de Portugal. E este encontro resultou surpreendente a vários níveis. Mesmo em termos pessoais.

Quando nos sentámos e eu lhe disse que queria mesmo abordar a realidade do Brasil, e nas pontes de diálogo que se poderiam estabelecer entre os nossos dois países – e aqui tenho de dizer que quem me despoletou esta ideia foi o exemplo do Agostinho da Silva (que não terá nada a ver com Design ou tem terá tudo a ver com Design, talvez – e disse-lhe que o que eu gostava mesmo era que olhássemos e percebêssemos as afinidades, os fluxos, refluxos, como é que há influência (ou não) concreta em termos de trabalho, onde é que se podem encontrar exemplos disso… e começámos a elencar nomes até que chegámos ao já mais conhecido Joaquim Tenreiro, porque ela sabia que ele era um português que tinha ido para o Brasil e se tinha tornado num pioneiro. De repente, éramos confrontados pelo enorme desconhecimento que tínhamos e, portanto, quando digo que é surpreendente é que, ao mesmo tempo que parece que somos irmãos e que somos muito próximos, a série de estereótipos que estão definidos e que ainda persistem na minha própria visão sobre Brasil ou a visão duma brasileira sobre Portugal. E estamos a falar de duas pessoas com uma cultura média, bom, boa! Eram enormes estes desconhecimentos de parte a parte.

Fruto da nossa história mantivemos relações que muito influenciaram as nossas artes. Posto isso, temos uma língua em comum e essa “proximidade” fez muito por nós todos. Para muito português, o Brasil foi um porto seguro durante um certo período de tempo, depois tornou-se o contrário. E agora o interesse já será outro, mas essas afinidades e esse triângulo entre Portugal, o Brasil e África é um triângulo que resulta da nossa cultura, um fruto comum. E esta exposição demonstra o quanto ainda há a fazer para se perceber que há uma riqueza muito particular quando olhamos para este universo, para estas referências (que não são melhores nem piores do que outras) que nasceram de toda estas contingências geográficas e políticas e que faz sentido conhecê-las melhor. Até porque temos pequenas características, em muita coisa da nossa cultura material, que o Brasil depois pega e amplia com uma espécie de lupa que lhes conferem uma outra abrangência. Certas coisas, por exemplo, e foi também por aí que nós entrámos no “Tanto Mar”, se formos para o azulejo, para as madeiras, se formos por exemplo para a joalharia, para o têxtil, iremos ver inúmeras semelhanças que resultam não só dos nossos dois povos ou culturas, mas, sim, do facto de serem globais. E tornamos a voltar à mesma questão e qual será a essência daquilo que é o Design. Foi por isso que muitas dessas peças que nós incluímos na “Tanto Mar” não entram na definição canônica do design moderno ou do design industrial ou, enfim, do design como nós vulgarmente o concebemos. Estão nas margens, nas franjas do design dos ofícios ou do artesanato, que é uma área muito, muito forte no Brasil e que hoje em dia está em franca recuperação, nomeadamente com o interesse cada vez maior pela cultura Índia. É que agora essa questão dos “Krafts“ [do artesanal] está de facto a surgir. E quando digo surgir não me refiro ao Brasil, mas ao global. Quase que como uma outra resposta, a este modelo de desenvolvimento [preconizado pela nossa sociedade].

Deste interesse generalizado, resulta numa aproximação do designer em que este passa a interagir com o artesão em pé de igualdade e então resulta dali uma mútua aprendizagem e não algo do género: “eu agora vou ensinar-te como é que tu ganhas, como é que tu te modernizas e isto ou aquilo eu acho já se passou”, eu acho que essa fase já passámos também já percebemos que o modelo de produção capitalista é o que é e terá que ser repensado e está a sê-lo [pois] não há sistema melhor.

E o que o artesão nos traz é um sentido de trabalho mais profundo, mais contínuo. E da interação entre ambos resulta algo de mais sólido, mais estruturado – de parte a parte – e as coisas são discutidas e problematizadas e não se limitam ao “ai que giro isto é, e agora com cortiça!”. Por exemplo, agora tem se feito muita coisa com cortiça. Mas, invariavelmente, as coisas mais interessantes que se podem encontrar em cortiça continuam a ser os originais.

Sempre existiu no Brasil uma relação com a diversidade das matérias e o hábito de se usar o que estiver mais à mão.

Sim, mas isso também se explica pela carência de meios. E, repare, eu acho que nós estamos a sair duma crise profunda. E passar pelas crises é sempre horrível. Tal como nos aconteceu recentemente e que nos forçou a fazer os nossos reajustes. Mas eu, que tenho uma formação em História, estou ciente de que as crises são potencializadoras de transformação.

Por outro lado, e até por nos termos tornado nessa “porta aberta ao mundo” que hoje somos é sempre transformadora. Tudo isso tem implicações e pode mesmo considerarse que estamos a ser “retro-colonizados” por gente que chega cada vez mais e com outras ideias. E isso obriga-nos a abrimos também um bocadinho as mentalidades que aqui habitavam. E esta miscigenação que hoje “sofremos” também nos traz coisas novas e transformadoras. Já não há volta atrás.

 

 

Por: André Gonzaga

Foto: MUDE

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