“Nunca tanta sombra deu tanta luz”*
“No meio dessa mesa de festa, mais só do que no alto do Gólgata, um Homem olha para a frente, com os seus olhos em que por momentos a esperança se nublou.”
Agustina Bessa-Luís in “Embaixada a Calígula”, Guimarães Editores
Por estes dias, em que parece que a “Terra parou”, para usar o título do extraordinário filme, de 1951, de Robert Wise (não confundir com o remake serôdio de 2008), tenho-me lembrado, por razões óbvias, de Milão, a que Agustina chamou “uma jóia onde se juntam a beleza, a dignidade e o espírito”. Ou melhor, tenho-me lembrado, do refeitório do Convento de Santa Maria delle Grazie, onde, mesmo em frente à Crucificação de Montorfano, me deixei arrebatar pelo mais impressionante dos murais alguma vez pintados: L’Ultima Cena, de Leonardo da Vinci. Sobre ele se disse ser a única pintura no mundo em cinemascope, tal a sua impressionante dimensão horizontal. E, de facto, o primeiro impacto é, exactamente, o da sua grandiosidade. Depois, aos pouco, em esforço, lá nos vamos focando nas treze figuras representadas por Da Vinci. Primeiro, e por maioria de razão, em Cristo, imóvel, estático, diria mesmo, perante a enorme agitação dos doze discípulos que o rodeiam. De todos, menos de João, o dilecto, o único que não gesticula e que, ao contrário de todas as representações que vira até então, não se encontra inclinado sobre o colo do Senhor, mas próximo de Pedro, que, de pé, o incita, assim o imagino, a perguntar a Jesus o nome do traidor. Sim, porque Da Vinci, optou por representar na sua Cena, a passagem do Evangelho segundo S. João, em que Jesus anuncia: “Em verdade, em verdade vos digo, está entre vós aquele que me há-de trair”. Daí a agitação indignada de todos, perante a resignada quietude de Cristo, sozinho, no centro da mesa, braços abertos, como que em total transcendência. A mão direita afastando-se da de Judas, a quem acabara de entregar o símbolo da traição, o pão ázimo embebido em vinho, e a esquerda, aberta, tombada sobre a mesa, em sinal de dádiva absoluta. No rosto, iluminado pela luz de fim de tarde que lhe incide por trás, sobressai uma expressão de sofrimento, acentuada pelos lábios semicerrados, e os olhos que nunca somos capazes de perscrutar. Talvez por isso, daqueles 35 metros de parede, o que mais nos marca, ou, pelo menos, o que mais me marcou foi a forma absolutamente impressionante como Da Vinci representou a incrível solidão de Jesus no meio dos que lhe são próximos.
À semelhança desse Cristo de Leonardo, talvez nunca como hoje, em que já não há multidão, nos sintamos tão sozinhos no meio dos que nos são próximos. Como disse Francisco, o pastor que veio do fim do mundo, numa Praça de São Pedro vazia de gente, na mais impactante imagem deste “tempo de solidão e de incerteza”**:
“Desde há semanas que parece o entardecer, parece cair a noite. Densas trevas cobriram as nossas praças, ruas e cidades; apoderaram-se das nossas vidas, enchendo tudo dum silêncio ensurdecedor e dum vazio desolador, que paralisa tudo à sua passagem: pressente-se no ar, nota-se nos gestos, dizem-no os olhares. Revemo-nos temerosos e perdidos. (…) A tempestade desmascara a nossa vulnerabilidade e deixa a descoberto as falsas e supérfluas seguranças com que construímos os nossos programas, os nossos projectos, os nossos hábitos e prioridades. (…) Com a tempestade, caiu a maquilhagem dos estereótipos com que mascaramos o nosso «eu» sempre preocupado com a própria imagem; e ficou a descoberto, uma vez mais, aquela (abençoada) pertença comum a que não nos podemos subtrair: a pertença como irmãos.”
De facto, habituámo-nos a aceitar que, nesta era de globalização acelerada, não haja espaço para o exercício da fraternidade. Porém, a “tempestade” que se abateu sobre a Humanidade veio provar o contrário. Veio provar que, mesmo no confinamento das nossas casas, que embora habitadas, pareciam vazias, nunca nos foi tão urgente essa necessidade de “pertença” e de dádiva. A violência da “tempestade” pode ter fechado fronteiras, esvaziado ruas e cidades, mas devolveu-nos, pelo menos por enquanto, a fraternidade solidária que há muito tinha desaparecido e que, não tenho dúvidas, será a gigantesca bóia que nos permitirá aguentar até à ambicionada chegada da bonança.
*Frase com que João Bénard da Costa termina a sua descrição do filme King of Kings de Cecil B. DeMille, de 1927. In “Crónicas: Imagens Proféticas e Outras – 1º Volume”, Edição Assírio & Alvim, 2010.
**Excerto do poema “Data” de Sophia de Mello Breyner. In “Livro Sexto”, Livraria Morais Editora, 1962.
Por João Moreira