Em Lisboa, vá pela sombra

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Se acaso pretendesse reduzir a famigerada (gerada pela fama) luz de Lisboa a uma única fotografia, não hesitaria um segundo. A cidade está toda na imagem que Gérard Castello-Lopes nos deixou, do alto, voltado para a rua do Arco do Carvalhão, um local a que os antigos chamavam os Terramotos. Nessa fotografia, um monumento de arte, a luz segue pela rua adiante, lado-a-lado de uma estranha fila de gente, numa adivinhada monotonia, que é bem o retrato de um Portugal onde, como dizia o ditador, as pessoas “viviam habitualmente”.

Mas se se olhar um pouco para além dessa luz quase obscena que parece dominar o cenário, invasora, nada pudica, há na pintura a preto e branco da máquina de Castello-Lopes um recorte bem mais variado, sofisticado, seja no elegante pormenor geométrico que rebate, como num desenho, as casas – e que, diacronicamente, imaginamos evolutivo, como num filme, seja nas caricaturas individuais das figuras em presumível movimento, que se projetam contra a grade bordejante. A luz está lá, sempre igual, por toda a parte, quase banal. É, porém, nas sombras que a criatividade se forja.

Lisboa é uma cidade de sombras – e essa não é uma expressão de retórica passadista, sentimental ou misteriosa, embora pudesse ser também isso tudo, até com fado à mistura. É uma realidade insofismável, que só não tem emergido porque, é preciso dizê-lo, há uma óbvia conspiração a favor da luz, para a qual o exército das sombras não encontrou até hoje o adequado antídoto.

Querem exemplos, omnipresentes na cidade ? É a sombra que o Aqueduto das Águas Livres atira contra o solo que lhe confere uma grandeza humanizada. Sem a sombra, aquela obra de arte seria apenas uma maqueta, em ponto grande. Passeie-se sob as arcadas do Terreiro do Paço, num dia inundado de sol, e olhe-se a riqueza dos desenhos que as sombras produzem nas paredes pombalinas. É a sombra que acomoda o viajante que por ali anda e que, por alguma razão, a procura, fugindo da luz, da torreira. A sombra protege, a luz abafa. A sombra, no fundo, é o lado bom da luz.

Um dia, dedique o leitor uma boa hora a percorrer os caminhos do lisboeta cemitério dos Prazeres. Escolha um dia de sol (Lisboa tem uma obsessão tal com o sol que até deu a uma sua rua o nome de “rua do Sol ao Rato”) e perceberá melhor o que lhe quero dizer. Para além das árvores que lhe filtram a incómoda luz, um dos mais óbvios “prazeres” do cemitério é, para os vivos, claro, poder apreciar a infinda variedade das projeções das sombras dos jazigos, um rendilhado criativo que confere a algumas daquelas fúnebres moradias uma dignidade de bairro, onde nem sequer faltam os gatos, que o silêncio reinante permite melhor apreciar. Sente-se num dos bancos que por ali há, à sombra, à conversa, gastando o tempo, que é, além da esplêndida penumbra da contraluz, a mercadoria mais abundante no local, e logo perceberá melhor o que lhe quero dizer

Nem lhes conto o quanto me perturba ver alguns fabianos, « cara al sol », como se entoava no tempo infame, loiros de escaldão, a calcorrearem a ala central do Parque Eduardo VII, já de si escavado como uma vala para adoradores do dito, como se acaso estivéssemos por aqui à borda de um fiorde, num país em que o verão se esgotasse num fim de semana. Convide-se essa gente ao gosto da fuga, por um momento, para a adjacente Estufa Fria e, estou seguro que eles logo perceberão o “calor” ímpar da sombra, das árvores, da delicadeza da luz filtrada. Eles verão que é a noite e o dia, ou melhor, um quase vice-versa.

Lembram-se das imagens brancas, desertas ou quase, muito ensoleiradas (em especial aos domingos, em que a brutalidade da luz parece apostada em rimar com a santidade do dia), dos filmes do neo-realismo italiano? Pois bem, o velho “novo cinema português” tentou reeditar esse registo, jogando com a alvura das avenidas a que nos habituámos a chamar “novas”, usando e abusando de uma luz sem vergonha. E se revisitarmos essas películas, com alguma sofisticação no nosso olhar, é hoje um re- galo ver as imagens, inundadas de branco, ganharem de imediato « cor », logo que a câmara se descai, com bom gosto, para a intrusão das sombras, que conferem à naïveté das histórias um sentido digno de recato, de discrição, um toque de intimsmo, que a luz não permite e até antagoniza. Não será por acaso que, na expressão «a-preto -e -branco» o preto surge primeiro…

Como o leitor já presumiu, cansa-me muito escutar o rame-rame do discurso obsessivo, turístico-folclórico, sobre a luz de Lisboa. Tanner – um cineasta suíço que, talvez por isso, não percebe muito de cores da vida do Sul – chamou a Lisboa “A cidade branca”. Nunca percebi onde é que ele foi descobrir a “kasbah” que o fez encontrar Argel por aqui. Lisboa não é uma “cidade branca”, é uma terra de cores vivas, a que as sombras fazem ganhar novos cambiantes. Por isso também é falso o que cantou Sérgio Godinho, no “Lisboa que amanhece”, ao dizer que “as sombras de Lisboa são da cidade branca a escura face”. Uma ova !

As sombras são a face mais “luminosa” da cidade e, claro, ganham outra expressão na noite quando, finalmente, a cidade se liberta do sol. É então que a saudável e pecaminosa – no bom sentido, que é o do bom pecado – face de Lisboa se revela.

Olhem-se com atenção as sombras incomparáveis da ruas que atravessam a Bica em noites de copos e música, procure-se uma ruela esconsa no Cais do Sodré onde se imagina o «deal» final entre a meretriz e o marinheiro da esquadra da NATO, visite-se a tristeza quase suburbana da entrada de uma pensão “com águas correntes” na Almirante Reis, atravesse- se a Praça das Flores na penumbra de um fim de tarde da Lisboa «colorida» pela diversidade sexual, faça-se uma romagem romântica à som- bria estátua de Sousa Martins, no Torel, numa noite de luar, ou à ímpar marca de solidão da Triste-Feia, a mais misteriosa rua da Alcântara que foi operária. Ou olhe-se a sombra do Tejo nas Docas, as esquinas onde os adolescentes trocam «shots», com o iPhone na outra mão, nas madrugadas divertidas de Santos ou (ainda) do Bairro Alto. As sombras de Lisboa não têm fim, morrendo no cansaço do alvor do novo dia, feito de olheiras e, claro, de sol.

É essa a minha Lisboa, feita de mil sombras, de mil e uma noites, de uma resistência denodada à ditadura da luz, cuja única verdadeira virtuali- dade é ter o mérito de ser geradora dessa gló- ria eterna da imagem que é a sombra.

Que este texto possa ter ajudado os visitantes de Lisboa a melhor entenderem que, aqui chegados, têm uma magnífica Lisboa de sombras pronta para ser consumida. Tenho fundada esperança que o que aqui deixei, este guia irónico em forma de elegia da cidade escurecida, tenha contribuído para que, sobre este tema, haja sido feita, finalmente, alguma luz.

Embaixador Francisco Seixas da Costa

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