Viagem a Mundocau*

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Em Mundocau o jogo era muito mais que o sustentáculo dos obscuros domínios, muito mais que o tentacular (a)braço omnipresente nas veias e nos tecidos do microcosmos envolventes.

Mais do que bengala do poder, o jogo era, em Mundocau, um estado de alma. Era deste estado que derivavam todos os outros, sem excepção.

Em Mundocau, aliás, não havia propriamente um poder, mas uma multiplicidade deles, em inter-relações permanentes. E do jogo das inter-relações, nos emaranhados novelos dos dias e das apostas, iam resultando as decisões, as leis e as acções.

Todos sabiam também que em Mundocau a lei era sobretudo e apenas o símbolo de um poder supostamente unificado, ainda que repartido. Assim como que um trunfo mais sobre o tapete verde ou aquilo a que, nos ca- sinos propriamente ditos, se chama a mesa ou a banca.

Mundocau podia, portanto, com uma certa dose de imaginação e outra igual de realismo, ser comparada a um casino integral, funcionando sem quebra, 24 horas em cada 24.

Os contornos do dia e da noite esbatiam-se, para os jogadores mais contaminados, envolvidos na infinita sucessão de lances, perdas e ganhos, recuperações e alívios ou derrotas devastadoras.

Só o cansaço, vencendo o corpo por algumas horas, dava origem à cadência das vagas à volta da grande mesa a que Mundocau se assemelhava. Sem esquecer, claro, o jogo que passava por debaixo da dita mesa.

Embora grande parte dos jogadores apostasse individualmente, tomando em conta a sorte ou azar e os lances dos outros parceiros, os grandes apostadores das salas reservadas ou salões VIP representavam grandes organizações que espalhavam os seus peões um pouco por toda a parte, onde quer que se abrisse uma banca.

Os croupiers tinham a marca indelével dos muitos anos de experiência que lhes davam uma pose indistinta, mas de elevada craveira profissional. Recolhiam as perdas dos jogadores, sem piedade ou emoção, em amplos abraços sobre a mesa e faziam a redistribuição dos lucros com impávida rapidez, sugerindo persuasivamente o montante das gorjetas.

Mundocau prosperava, pois para isso se vocacionara à saída da Idade Média de onde surgira com atraso de séculos, quando comparada com padrões europeus.

Mas em Mundocau os padrões europeus eram, quando muito, referências elas sim exóticas com que os recém-chegados faziam as primeiras medições com a subtileza de um bando de trogloditas interpretando Mozart.

Mundocau era, também, um lugar onde a velocidade de substituição dos seres e das coisas atingia os níveis e desníveis impressionantes de uma bolsa de valores em tempo de especulação.

Na medida em que o espaço escasseava, acotovelavam-se os agentes das forças e interesses em presença. Até a cidade em si se renovava num ritmo tal que tornava fugaz a visão debitada pelos bilhetes postais comprados pelos turistas.

O dragão adormecido da ponte ligando Mundocau a Tai Pan simbolizava, com a sua forma simples e bela, o espírito, o estado de alma da própria cidade.

Sobretudo à noite, quando vista de Tai Pan, a cidade, Mundocau, com os alinhados perfis dos postes de iluminação e as luzes dos hotéis e das ruas, irradiava uma extrema beleza e quietude onde se escondia, no entanto, a crua verdade dos jogos que se prolongavam pelas noites, e o submundo da geração dos excedentes.

Mundocau não era povoada apenas por jogadores. Se assim fosse o capital, unidade equivalente usada ao tempo, e a sua reprodução em espiral no progresso entrevisto das belas declarações, não se faria à velocidade desejável.

Havia um outro mundo, sobre o qual se exercia o domínio do mundo do jogo no sinuoso amplexo de mil braços e ventosas que sugava as vivas entranhas dos seres que o habitavam trabalhando sem horário.

Era neste submundo de Mundocau que se viviam os pequenos grandes dramas do quotidiano e se produziam os lucros necessários ao financiamento de uma grande parte das apostas.

Limitada no espaço de chão, que as autoridades mandavam conquistar ao mar como quem espalha manteiga numa torrada, a cidade crescia sobretudo em altura, e com ela crescia também a ambição dos jogadores. Os elevadores andavam à cunha e eram muitos os voos e as quedas aparatosas, como a do operário em construção atrapalhando o tráfego, já de si caótico, da cidade e das ideias.

A cidade era, nestas condições, a de mais alta densidade de tudo por quilómetro quadrado, fosse qual fosse o indicador tomado em consideração.

Porém, a cidade não era apenas o limitado espaço que a continha. Como que em resposta a esta condenação imposta pelos homens e pela natureza, Mundocau influenciava e disseminava-se por meio outro mundo. Habitantes, produtos, jogadores do interior e do exterior mantinham em funcionamento um permanente fluxo de trocas, de tudo, veiculadas por uma complexa rede de comunicações e de influências, de contratos, sedes e fomes.

Era tal a circulação de e para Mundocau que as suas infraestruturas rebentavam já pelas costuras, levando à necessidade de rapidamente se edificarem novos portos e aeroportos para o tráfego das coisas e das gentes, já que o capital, esse, viajava geralmente incógnito ou invisível, via telex ou satélite, idos que eram os gloriosos tempos das malas pretas de couro e efeitos decisivos.

Do submundo dos submundos de Mundocau apenas nos deixaram os cronistas breves referências, assim como essências desperfumadas. Julga-se que os que conheceram esse compartimento da memória oculta da cidade não deixaram registos decifráveis por razões a que ao tempo se chamavam especificidades e que até aos nossos dias não foi possível compreender.

Tudo o que se sabe é que ali se produzia com base na unidade chamada dúzia, palavra que ficou do tempo dos bárbaros que ocuparam Mundocau por mais de quatro séculos.

Apesar de tudo isto Mundocau inspirou não só a poesia dos poetas como a de outros ramos das pré-ciências antigas, tais como a economia, a sociologia e a culinária, bem como essa nobre arte dos nossos antepassados – a política.

 

Ilustração Adalberto Tenreiro

Por João Amorim**

* Nota do autor: Esta crónica foi escrita em Junho de 1987 e lida aos microfones da Rádio Macau. Continua perfeitamente ‘actual’.

**Vogal do Conselho de Administração da Fundação Oriente

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