Uma arte esquecida, esta de caminhar - Chitwan National Park

Uma arte esquecida, esta de caminhar – Chitwan National Park

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Há várias razões que podem levar alguém a caminhar. A que menos importa e que para aqui não é chamada é a que nos diz que devemos caminhar para chegar a algum lado. Num mundo de estímulos tão urgentes e constantes, em que num exercício de impossível omnipresença somos levados a crer que devemos constantemente estar em todo o lado a todo o instante, esta é uma das principais razões pelas quais somos forçados a caminhar. Num quotidiano de estranhos contrastes, no qual impera um ininterrupto e persistente movimento, não raramente damos por nós a caminhar e viajar contrariados, contra a nossa própria vontade. Por estas e por outras deixemos esta razão para caminhar de lado. Há outras que melhor servem o propósito de enaltecer esta tão esquecida e premente arte.

Há quem caminhe para espairecer e quem o faça para se acalmar. O caminhar como forma de combate ao aumento da pressão arterial é igualmente relevante, como também o é caminhar por questões religiosas, de crenças e de busca por espiritualidade. Peregrinações a Santiago de Compostela, Fátima, Meca, não faltam caminhos para percorrer com um tal objetivo. Caminha-se para explorar cidades no Japão sob o sol quente de julho, para aproveitar o cheiro a maresia ao longo do extenso areal de Vila Praia de Âncora numa manhã solarenga de sábado, para ver os picos mais altos do mundo rasgar os céus em pleno Nepal ou ainda para assistir a barcos e lanternas boiar calmamente ao fim da tarde na margem do rio que atravessa Hoi An, numa cerimónia de nos roubar a respiração. De dia ou de noite, ao sol ou à sombra, com calor ou frio, sob intensa chuva ou com a perspetiva de neve, caminhe-se. As condições podem exigir alguma ponderação prévia, é certo, mas se há coisa de que nos podemos orgulhar é da nossa capacidade de adaptação. Mais ou menos camisolas e camadas, mais impermeável ou menos t-shirt, o que é isso nos dias de hoje em que o acesso a tudo é tão facilitado?

Outra das razões que nos leva a caminhar é a subconsciente necessidade que temos de nos perdermos, já que só assim nos poderemos a final encontrar. A nós, sim, e também a tudo aquilo que nos rodeia e que nem sempre percebemos lá estar. Num exercício de caminhar só porque sim, andar sem destino pode ser a solução perfeita que nos permite apreciar a imobilidade e estática das coisas que estão à nossa volta. Apenas caminhando por caminhar, como forma de antídoto não só para o corpo, mas também para a mente e a alma, será possível recuperar da azáfama em que vivemos, escutar-nos a nós próprios e ao que as pedras do caminho têm para nos dizer. Caminhando em busca do nosso próprio norte acabamos por nos perder em lugares, pensamentos ou deambulações, os quais serão o trajeto que nos permitirá redescobrirmo-nos. Impõe-se perdermo-nos mais para então depois nos verdadeiramente encontrarmos noutros lugares, noutras pessoas, em novas culturas e tradições. Só assim podemos mudar quem somos e a forma como vemos o que nos envolve – e que falta isso faz! Apenas percorrendo um qualquer caminho nos poderemos dar a esse luxo.

Numa sociedade sedentária como aquela em que vivemos, longe vão os tempos das populações nómadas. Está na hora de recuperar alguns dos hábitos do passado, já que parecem faltar nos dias de hoje doses moderadas de nomadismo alimentadas pelo simples facto de, um pé à frente e outro atrás, percorrermos o caminho instintivamente, sem pensar. Apenas e tão só porque desejamos avançar. Rumo ao desconhecido ou não, interessa deixarmo-nos surpreender por aquilo que a estrada tem para nos oferecer. Juntemo-nos à manada migratória que insiste em não parar e que visa desvendar cada pedaço de terra que o nosso planeta tem para oferecer.

A minha última caminhada teve lugar no Parque Nacional de Chitwan, a partir de Sauraha, em pleno Nepal, por entre uma selva em que ursos, elefantes, tigres, crocodilos, rinocerontes, macacos, veados, javalis e leopardos convivem em aparente – mas tensa – harmonia. Nesta selva, o ato de caminhar, para além de nos fazer sentir pequenos e irrelevantes, tem o condão de funcionar como exercício de humildade. Coloca quem a atravessa numa frágil posição naquela que é a cadeia alimentar de predadores que dominam os trilhos cerrados por entre a verde vegetação. A razão? Nesta caminhada de dois dias, a única proteção – se assim lhe podemos chamar – contra a vida selvagem basta-se com dois guias, no caso o Surya e o San Jyee, um à frente e outro atrás, vestidos de verde tropa, o mais alto deles nem com um metro e setenta de altura – os humanos não se medem aos palmos! –, os quais estão munidos, imagine-se, apenas com um pau de bambu cada um destinado a afugentar todos aqueles animais que para além de uma simples visita, desejam algo mais de nós. Sim, há também esta razão para caminhar, a que passa por nos humildar. E que falta também faz isto a tantos dos que por aí andam de forma atribulada…

Ainda assim, faça-se o que se fizer, não caminhemos somente como forma de escape a algo ou apenas porque a sociedade nos compele a isso mesmo. Não se caminhe porque necessitamos de estímulos impostos por pares que nos são impingidos contra a nossa real vontade. Não nos lancemos em caminhada apenas e tão só porque não podemos estar parados, porque devemos fazer parte da agitação e ebulição que são o mundo moderno e a sociedade atual. Certamente já todos ouvimos que parar é morrer, que temos constante e incessantemente de nos mover. Não creio que seja verdade. Caminhar é importante, sim, mas a verdade é que tem de ser muito mais do que isso. Caminhar é e sempre será mais que uma mera forma de nos levar a fazer parte de algo a que sentimos não pertencer.

Em determinados casos, tal como caminhar há mesmo que saber parar. Parar sem quaisquer demoras, sem pressas, sem que nos sintamos obrigados a mover. Por vezes, só parados podemos verdadeiramente perceber o nosso lugar e apenas de tal forma passaremos a conhecer o caminho que temos de percorrer.

 

Por João Barros

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