Votos de silêncio, tampões para os ouvidos, auscultadores que cancelam o ruído, meditações voluntárias, semanas passadas em templos budistas em que nem uma palavra é proferida. Hoje em dia não faltam por aí tentativas que visam resolver os males daquela que é uma forma de poluição que não se vê, mas com a qual temos diariamente de lidar e que muito se faz sentir. Uma que contribui de sobremaneira para o cansaço existencial de toda a população. Estou a falar de poluição sonora.
Não há dúvida que por aí há muito que é bom de se ouvir. Descartemos os sons da natureza, porque esses, deliciosos e recorrentemente subvalorizados, estão cá para ficar independentemente do que nos aconteça a nós, humanos, enquanto raça. Ainda assim, há música para todos os gostos e feitios que deve ser cantarolada, poesia pronta a ser declamada, há gargalhadas descontroladas que devem ser dadas e conversas sobre todos e quaisquer temas que devem ser partilhadas. Há discursos que, por mais difícil que seja, devem ser proferidos e há também verdades que, por mais que custem, devem mesmo ser ouvidas. Na minha opinião, que mais que um ouvinte me considero um bom escutador – gosto de escutar, internalizar, perceber, absorver e depois sim apreciar – não faltam coisas boas para ouvir neste nosso mundo, e convencer-me do contrário será muito difícil.
Em todo o caso, se é verdade que há muita coisa boa por aí para ser ouvida, também o é que tudo o que é bom, se em exagero e de forma desmedida, pode tornar-se incomodativo. Sim, é mesmo assim que tudo se passa. Tal sucede com todas as dimensões da nossa vida e a audição não é exceção. Num mundo em que sempre nos tentaram incutir que mais é melhor, não acreditemos num tal cliché. No caso dos sons e da ausência de silêncio tal não corresponde, de forma alguma, à verdade.
Quando damos por nós cansados, seja por excesso de exercício ou porque atravessamos um período de doença – ou de falta de saúde física, vá -, sabemos que devemos deixar o corpo recuperar. Quando a vista está desgastada, deixamo-nos olhar estupefactos para o vazio ou, pura e simplesmente, fechamos os olhos até que nos voltemos a sentir preparados para os abrir. Quando comemos de forma desmedida atiramos promessas para o ar jurando a pés juntos que tão cedo não voltaremos a comer sobremesa depois de devorar uma francesinha. Os ouvidos não os podemos fechar, claro está, o que levanta uma dificuldade acrescida. Em todo o caso, tal não equivale a dizer que não devamos à nossa audição o devido descanso que ela reclama e merece.
À semelhança de todas as outras realidades que nos rodeiam, também o silêncio deve ser educado. Só assim é possível transformar o nada em tudo, o vazio em absoluto, a ausência em presença, o superficial em fulcral. Ainda que não seja dito vezes suficientes, a verdade é que o silêncio deve ser educado e cultivado. Faz muita falta, hoje em dia, escutar o silêncio. Concedermo-nos a nós mesmos o tempo necessário para ouvir o nada, entregando o dom da audição ao vazio, ao infinito das planícies desabitadas dos nossos ouvidos. Está na altura de nos entregarmos aos silêncios ensurdecedores, aqueles que não entram pelos ouvidos dentro, mas que antes ficam à sua porta. Se nos foi dada a faculdade de ouvir, porque não dar uso à possibilidade de também todos os sons indesejáveis poder silenciar? Devemos a nós próprios, pelo menos, tentar alcançar tal grau de serenidade.
É certo que há vários tipos de silêncio. Desde o desejado ao constrangedor, do inevitável porque nada há a dizer ao forçoso já que nada queremos ouvir de volta. Há minutos de silêncio pelas vítimas de infortúnios, injustiças ou desrespeitos, como também há o silêncio de uma noite bem dormida e descansada. Há o silêncio dos povos que, em pleno ano novo, se limitam aos sons estritamente necessários para não despertar a ira dos Deuses e outros espíritos que acreditam poder vir a destruir os seus lares, mas há também o silêncio de uma casa vazia à chegada de uma grande viagem. E há ainda silêncios de estupefação, que estão lá para nós quando olhamos para algo e ficamos sem palavras. Como também há silêncios que tanto podem ser encontrados na solidão, mas também na companhia daqueles de quem nos sentimos mais próximos, na vastidão da montanha ou na agitação de um mercado local por entre berros impercetíveis dos comerciantes. O silêncio pode ser encontrado onde quisermos, está sempre lá pronto a brindar-nos com a sua companhia e a verdade é que há silêncios para todos os gostos e feitios, para todas as idades e ocasiões, para a felicidade e para a tristeza, para a saúde e para a doença, para a solidão e para a partilha de momentos de alegria. E se assim é, há que saber abraçar todos estes tipos de silêncio e a todos eles valorizar, já que com eles, eventualmente, seremos obrigados a conviver. Escutemos o que os vários silêncios têm para nos dizer.
Ainda assim, mais do que isso, não só nos devemos acostumar ao silêncio como também o devemos ativamente procurar. Permitamo-nos deixar para lá o que é escusado, desde palavras, a sons, ao que quer que seja e, de vez em quando, quando quisermos e nos apetecer, entreguemo-nos ao silêncio. Deixemo-nos e autorizemo-nos revisitar um tal momento ou lugar que pode ser alcançado quando e onde quisermos. Deixemos o silêncio ensurdecer, ganhar dimensão e, de tempo em tempo, dominar a nossa audição.
Há quem diga que a beleza das coisas está na sua simplicidade, que o belo está no vazio e na ausência. O silêncio é simplicidade, corresponde ao vazio das palavras – mas não da comunicação -, sem que no entanto este seja um vazio qualquer. Não. Este é um vazio que nos preenche, que nos permite atingir a plenitude num mundo de acentuada azáfama, ebulição e agitação. Quem nunca se sentiu pleno e realizado ao ver um pôr-do-sol acompanhado por alguém, numa conversa na qual nem uma só palavra é proferida? O silêncio fala muitas vezes mais alto que palavras, diz-nos mais sobre nós e aquilo que nos rodeia do que o fazem conversas intermináveis em que muito fica por dizer, do que todas as enciclopédias Larousse conjugadas – ou o Google, vá -, poderão alguma vez vir a transmitir-nos.
Por vezes esquecemo-nos que uma das coisas mais bonitas do silêncio é que, à semelhança das palavras e de todos os outros sons, também ele pode ser partilhado. Não é tão fácil quanto partilhar uma conversa com alguém, mas é também isso que faz do silêncio algo de tão especial. Quando damos por nós no ponto de conforto que nos permite partilhar o silêncio com alguém, com quem quer que seja, dêmo-nos por sortudos, já que alcançamos algo que nem todos têm a sorte de poder vir a partilhar com outros, muito menos consigo próprios. Sim, porque quando estamos em silêncio, rodeados por nada, não estamos sós nem tão pouco nos devemos sentir entregues à solidão. Em última instância estamos connosco mesmos, e há lá melhor companhia que essa?
Para todos aqueles que, tal como eu, pretendam ouvir atentamente o silêncio, fixo, imóvel e enternecedor, uma viagem ao Acampamento Base do Annapurna no Nepal pode ser a cura para muitos dos seus males. De todos os sítios este é um local perfeito para isso. Para nos fecharmos num local amplo e aberto e, pura e simplesmente, escutarmos o silêncio que nos rodeia e aquilo que ele tem para nos oferecer. Num verdadeiro privilégio nos dias que correm, aqui podemos nada mais ouvir que a nossa respiração, o silêncio do vento, das montanhas, das pedras, da vegetação, do sol, da neve, dos animais selvagens e tudo aquilo que cada um deles tem para nos oferecer.
Por cá instala-se um tipo de silêncio que pode facilmente ser encontrado nas ruas de pedra e ardósia das várias aldeias e lugares que se situam neste santuário onde reinam a tranquilidade, a paz e a letargia. Tudo leva tempo, é calmo e sossegado em Gandhruk, Chhomrong, Dovan, Deurali, ou nos acampamentos base das montanhas Machapuchare ou Annapurna. Aqui, em lugares tão recônditos, imperam silêncios impostos pela natureza e pela altitude, os quais apenas são interrompidos pelo som das cigarras, dos corvos, dos búfalos, dos deslizamentos de terra, do sol ou do vento a cortar a paisagem que a todo o momento se estende diante nós. Sons esses que também contribuem para o silêncio tão desejado que nos rodeia desde o sopé até ao cume da montanha. Silêncios que não só conquistam a audição, mas também tudo aquilo que somos. Aqui, nas montanhas dos Himalaias, aquele tipo de silêncio que habitualmente se encontra apenas onde se cruzam a noite e a manhã, naquele momento efémero que tantas vezes, sem sucesso, tentamos alcançar, pode ser encontrado com facilidade. Está por cá e dele há para dar e vender.
Depois de dias a caminhar no santuário do Annapurna por entre montanhas que ascendem a mais de oito mil metros de altura e que de forma nada tímida rasgam o céu, o silêncio tornou-se no meu som favorito. Tal como o branco também o é para muitos pintores que nele começam por ver uma tela pura pronta a ser explorada, estou convencido que o silêncio é a base a partir do qual devem ser construídos e ouvidos todos os outros sons.
Só em silêncio podemos ouvir os nossos passos e a nossa própria respiração. E, se assim é, apenas em tal caso será possível ouvirmo-nos a nós mesmos, perceber a cada momento quem somos, de onde viemos e para onde vamos. Haverá algo mais precioso que isso?
Por João Barros