Quem nunca ouviu a expressão a primeira impressão é a que fica que atire a primeira pedra, eu aguardo. Bem me parecia. Queiramos ou não, as primeiras impressões são importantes nos dias que correm. São elas que nos levam a engravatar-nos para entrevistas de emprego ou que nos compelem a tapar as tatuagens com uma camisola num dia de verão quando, suados da cabeça à ponta dos pés, vamos conhecer os nossos futuros sogros pela primeira vez. É esta a força que têm as primeiras impressões.
A par disso, claro está que também conhecemos o ditado que nos alerta para o risco de julgar um livro pela capa. Certamente já todos fomos defraudados por amores à primeira vista que rapidamente deixaram de o ser, por livros e filmes cujas capas e cartazes nos enganaram e fizeram perder horas preciosas das nossas vidas. Grandes amizades que não passaram de uma simples noite de copos há muito esquecida, restaurantes magníficos que, depois de uma dececionante refeição, instantaneamente passam a ser merecedores da nossa maior crítica. Num mero exercício de gestão de expectativas, devemos ter cuidado com as primeiras impressões. Há que saber dar-lhes o merecido valor, é certo, mas devemos saber pô-las no seu devido lugar. Não nos exaltemos com pouco, sim, mas também não nos deixemos desanimar quando algo não parece, à partida, tão bom quanto aquilo que prometia ser.
Para quem chega à Índia por via terrestre através de Sonauli a primeira impressão com que fica é que ali reside uma fronteira que se faz notar. Uma fronteira como deve ser, que faz jus ao seu nome e que demarca dois mundos distintos, dois locais onde as coisas se fazem de forma diferente. De um lado fica a Índia, onde as cores, os cheiros, os sons, as pessoas e os lugares já não são os mesmos que se experimentam e vivem do outro lado, no vizinho Nepal.
O registo dos passaportes perante os oficiais do exército indiano é feito em papel, anotando-se em grandes cadernos os nomes e propósitos das visitas de quem perante eles se apresenta. Mais à frente, na fila para carimbar o passaporte ainda na secção indiana da fronteira, oficiais tomam a liberdade de esbofetear civis acabados de apresentar os seus papéis, recordando-nos que o sistema de castas que desde há uns tempos para cá é legalmente proibido ainda se faz sentir. Por outras palavras, logo na fronteira dá-se de caras com uma realidade à qual não se está habituado e para a qual nem sempre se está preparado.
Na sequência de uma acesa batalha para assegurar um lugar num autocarro local seguem-se três desconfortáveis horas até se chegar a Gorakphur, onde a estação de caminhos-de-ferro é o ponto de referência para comprar um bilhete no primeiro comboio que saia para Varanasi. E também aí a realidade se faz sentir de um modo diferente.
Nas intermináveis e incontáveis filas para comprar bilhete na estação a decência e a boa educação são atiradas borda fora pelos presentes que, passando uns à frente dos outros num atropelo frenético, acabam amontoados e encavalitados junto à vitrina na esperança de rapidamente adquirirem o tão alcançado bilhete de comboio que lhes permita daqui fugir. Mas não só. Ao longo de toda a estação uma das mais hercúleas tarefas passa por não tropeçar em algumas das milhares de pessoas que ali se deitam e que a habitam durante dois ou três dias. Famílias inteiras que aqui se deslocam com antecedência para reservar o seu lugar num determinado comboio e às quais já não compensa regressar à aldeia de onde vieram. A solução? Acampar na estação e, pura e simplesmente, aguardar. As pontes aéreas destinadas a permitir a movimentação entre plataformas estão fechadas, pelo que resta atravessar a pé os carris que as separam e dessa forma entrar no comboio parado do outro lado da estação. Tudo isto ao arrepio, claro está, das mais elementares normas de segurança ferroviária que sempre nos habituamos a respeitar. Por aqui tanto faz, o que interessa é chegar à nossa carruagem.
A viagem desde Gorakphur a Varanasi na classe geral do comboio custa a módica quantia de noventa rúpias e dura cerca de sete horas. Mas estas não são umas sete horas quaisquer. Não. Estas são sete horas nas quais nos encontramos dentro de um pequeno compartimento com cerca de cinco metros quadrados onde convivem forçadamente mais de trinta almas perdidas – umas em cima, outras em baixo, todas elas desconfortáveis, apertadas e incomodamente acomodadas. Um compartimento em que, com cerca de trinta e cinco graus, se faz sentir uma mistura de odores que vão desde caril, a suor, a chulé e roupa mal lavada, assim como a urina proveniente dos corredores e das estações onde se aguarda em demasia. Tudo isto sem esquecer o odor a pessoa – aquele cheiro a pessoa, sabem? – que no final de um dia sempre se faz sentir. Um atentado a todos os sentidos, sim, mas ao olfato em particular. Ainda assim, sete horas em que somos brindados com sorrisos, tentativas de conversas em inglês, com caras especadas que nos fitam como se de monstros nos tratássemos – se calhar, em tempos, os nossos antepassados foram-no mesmo por cá –, com pedidos de fotografias por parte dos nossos companheiros de viagem, com recomendações de sítios para visitar, em que ensinamos português e francês e em contrapartida aprendemos a língua local. Quanto mais não seja, com tão diversas atividades parece que o tempo no comboio acaba por passar mais depressa – ou menos devagar, creio ser mais acertado dizer.
À chegada a Varanasi, já o relógio conta com uns minutos depois das onze da noite, é-se brindado com centenas de propostas para uma curta viagem de tuktuk até ao hotel reservado de antemão. Entre inúmeras cuspidelas, estridentes apitadelas, incontáveis batedelas e constantes solavancos, damos por nós em movimento numa verdadeira corrida de carrinhos de choque, apenas com a diferença de que aqui os condutores têm buzinas e não se limitam a andar às voltas, antes tendo um destino final onde, parece, todos necessitam urgentemente de chegar. Mas pouco interessa, já que quando damos por ela estamos à porta do hotel depois de quase trinta horas de viagem desde Catmandu até aqui. Um hotel em que nos é oferecido um quarto sem janela e no qual somos visitados, durante a noite, por um pequeno rato. Não faz mal, tanto faz. Adormecemos de imediato e só voltamos a acordar no dia seguinte já depois das dez e meia da manhã. Há já muitos anos não dormia até tão tarde assim.
Varanasi é uma cidade especial. As ruas que levam aos inúmeros ghats dispersos pela margem do Rio Ganges são tão estreitas que obrigam a quem nelas passa, ou habita, a conviver entre si. É impossível não o fazer. Aqui damos de caras com pessoas que, quando nos cruzam, levam o polegar à garganta num movimento vagaroso e horizontal como que nos avisando que não devemos caminhar por ali, mas também com avós que carregam no seu colo o corpo morto de uma criança que, com não mais de três anos, se encontra enrolado num lençol branco. Evitamos olhar e assim que desviamos a atenção deparamo-nos com seis pessoas, entre gritos e sorrisos, que carregam aos ombros uma maca de madeira contendo um cadáver envolto em flores e tecidos alaranjados cujo destino é o crematório mais próximo. Aqui assim, em plena rua, no meio de motas, bicicletas, tuktuks, pessoas, cães, vacas, cabras e de todos aqueles que levam a cabo a sua marcha matinal.
Nestas ruas estreitas o fumo dos crematórios mistura-se com o cheiro a especiarias e a naan acabado de cozinhar, assim como com o odor proveniente das fezes de vaca espalhadas por toda a parte e que tornam o ato de caminhar um desafio constante. Um fumo que não chega nunca a desaparecer já que o principal crematório da cidade onde todos os hindus querem morrer funciona ininterruptamente, vinte e quatro horas por dia, sete dias por semana, todos os dias do ano, a uma velocidade média de trezentos corpos cremados diariamente ao ar livre. Por cá, segundo as tradições hindus, todos os corpos podem ser cremados com a exceção de mulheres grávidas, crianças, sadhus, leprosos e daqueles que tenham falecido fruto de uma mordidela de uma cobra. A todos estes está reservado um destino diferente, que passa por serem atirados diretamente ao Rio Ganges sem direito a qualquer cremação, rio esse cujo fundo alberga já os restos mortais de todos aqueles que, na sua margem, foram sujeitos à prova do fogo. Tal como sucede com as tradições cristãs, também por aqui parece que todos acabamos no mesmo sítio, que todos temos o mesmo destino, com a particularidade que este é também um local onde milhares de pessoas se banham diariamente numa tentativa espiritual e ritualística de busca por uma inalcançável purificação.
As primeiras impressões estão hoje intrinsecamente ligadas à forma como se raciocina e, não raras vezes, acabam por toldar o espírito crítico que a todos deveria assistir. A importância das primeiras impressões torna-nos mais obtusos, menos flexíveis, deixa pouco espaço à existência do saudoso benefício da dúvida. Nos dias de hoje, fruto de uma tal moda – ou forma de viver? -, tornamo-nos donos e senhores da verdade apenas com recurso a meros laivos daquilo que julgamos conhecer em pormenor, mas que muitas vezes nem superficialmente temos a oportunidade de entender. Demasiado rápidos a formar uma imagem daquilo que temos pela frente, o que recorrentemente sucede de forma inconsciente e instantânea, parece nunca haver espaço para segundas oportunidades – que o há, acreditem que há. As primeiras impressões alteram a nossa própria realidade e têm o condão de não nos permitir ver as coisas como realmente elas são. Num mundo em que a imagem vale tanto, em que o politicamente incorreto dá lugar à instantânea condenação e a elevadas doses de cancelamento gratuito, toda a gente parece cuidar-se em demasia com o deixar uma boa primeira impressão. O resultado? Um mundo menos autêntico, menos real, mais construído só para inglês ver.
As primeiras impressões que tenho da Índia resultaram de fazer tudo aquilo que usualmente se recomenda fazer, sim, mas ao contrário. Em toda a parte se alerta para entrar na Índia e na sua cultura e tradições de forma calma, devagar, devagarinho e com parcimónia, e a verdade é que não fizemos por menos. Fizemos tudo absolutamente ao contrário, entramos de cabeça perdida. Devoramos comida de rua no primeiro dia, viajamos na classe mais baixa de comboio, começamos a jornada por Varanasi e pernoitamos em hotéis pouco confortáveis. Não andamos de máscara, caminhamos por ruas estreitas e pouco movimentadas e às vezes até o fizemos durante a noite. Só não nos banhamos no Ganges. Não fomos tão longe, vá.
E querem saber que mais? Correu tudo bem. Afinal de contas, pudemos criar as nossas próprias primeiras impressões sobre este efervescente país sem nunca perder de vista tudo o resto que ele tem ainda para oferecer. Que preciosidade esta, a de poder guardar espaço para assimilar tudo o que de bom ou mau ainda esteja para vir durante a viagem.
Por João Barros