Está longe da minha capacidade de compreensão perceber o que leva as pessoas a fazer determinado tipo de coisas. Por que raio haverá alguém de querer correr uma maratona em aproximadamente duashoras? O que faz com que uma pessoa se proponha suster a respiração durante cerca de três minutos enquanto nada na vertical rumo à escuridão das profundezas do oceano? O que passa pela cabeça do ser humano que pretende ser o primeiro a atingir o cume das oito maiores montanhas do planeta? Quando olhamos para algo como o famigerado Livro Guiness dos Recordes é fácil ficar boquiabertos com algumas demonstrações de pura predisposição para o sofrimento. Tentativas intermináveis de ultrapassar limites incompreensíveis para aqueles que, como eu, mais não procuram que o conforto que um bom livro e uma lareira acesa podem proporcionar numa chuvosa tarde de inverno.
Ninguém pode dizer que não estava avisado de antemão. Desde logo porque todo o sofrimento começou ainda antes sequer de se dar por iniciada a caminhada propriamente dita. Numa carrinha de caixa aberta, durante cerca de uma hora, a resistência das costas dos passageiros é testada pelos solavancos resultantes de altas velocidades atingidas numa estrada longe de estar terminada, ou que há demasiado tempo o está, assim reclamando uma ansiada empreitada. Por outro lado, o que esperar de uma caminhada para a qual, antes sequer de começar, se é obrigado pelas autoridades a medir a tensão, os níveis de oxigénio, assim como a recolher outros dados básicos de saúde? Como se tal não bastasse, as caras cansadas, sujas e suadas daqueles que se cruzam, logo no início, com quem inicia a sua marcha mas em sentido inverso, não são o melhor augúrio do que ainda está para vir. Três maus prenúncios, digamos assim.
Não obstante todos os avisos e alertas disponibilizados, há quem faça vista grossa e se proponha concluir aquilo que ainda nem sequer foi devidamente principiado. Cegos por uma inexplicável camada de loucura que tolda a vista inicia-se uma subida que, durante mais de cinco horas, por entre terra, areia, raízes, pedras e pedregulhos, subidas e descidas, faz com que todas as decisões tomadas até então comecem a ser questionadas. A falta de terreno regular e plano que não implique doses anormais de pressão exercida sobre os joelhos contribui para uma sensação de dúvida e inquietação que, embora atrasada, se começa pela ocasião a instalar. Dúvida essa que apenas se dissipará quando, à chegada ao acampamento base, se sente o calor proveniente de um sol que se põe acima das nuvens, cedendo lugar à lua e às estrelas a quem caberá, a partir do final da tarde, iluminar toda a cratera de um vulcão há muito adormecido. Num tal momento, já com os pés livres das amarras de sapatos e de meias que não os deixaram, até então, respirar, e com o ar fresco e limpo da montanha a cumprimentar os aventureiros com dois beijos na face, sente-se que a caminhada de até então ‘não foi assim tão exigente’ e que ‘se a recompensa é esta, então vale a pena’.
Doidos. Malucos. Inconscientes e ignorantes. Por essa altura ainda não sabem o que está para vir. É certo que o cenário de um pôr-do sol acima das nuvens faz esquecer tudo aquilo que até então se aguentou. Não há dúvida de que a sensação de quase poder acrescentar manualmente uma estrela a um céu repleto delas, como até então se julgou impossível, pode produzir o efeito de se ignorar o que ainda há por diante. Um jantar reconfortante e um chá quente de pernas cruzadas no chão e com uma lanterna na cabeça, acompanhado dos sorrisos daqueles que em conjunto aguentaram tal jornada, parece fazer com que todas as gotas de suor e a dor sentida nas pernas tenham feito todo o sentido. Mas não. Se ao menos se soubesse o que ainda está para vir ter-se-ia pedido mais recompensas ainda. Muitas mais.
Acordar à uma da manhã nunca é bom. Acordar à uma da manhã para fazer exercício físico menos bom ainda é. Acordar à uma da manhã para enfrentar o inferno na Terra, com temperaturas a rondar os zero graus, é algo que nem sequer faz sentido. Depois de um pequeno-almoço leve nessas mesmas condições, iniciar uma subida rumo ao cume do vulcão Rinjani, que dista três mil setecentos e vinte e seis metros em altura do nível médio das águas do mar, é algo que não passa pela cabeça de ninguém. Dos mais sãos, pelo menos, não passa.
Dadas todas as condicionantes descritas, a subida seria já por si só exigente. Mas acrescente-se a tudo isto um percurso que brinda quem o atravessa com um oceano de areia que nos banha pela altura dos tornozelos. Uma quantidade de areia tal que, combinada com a inclinação do solo, a cada dois passos obriga mesmo os mais preparados a ter de recuar um. Um terreno tão traiçoeiro que, a cada paragem, afunda aqueles que o percorrem de tal forma no solo que estes se veem obrigados a ceder parte do que até então tão arduamente havia já sido conquistado. Mas, não havendo outra opção senão parar para recuperar o fôlego, que haverá a fazer senão recuar? Não há por que alguém se sujeitar a tal demanda. Afinal de contas, quem é que, no seu estado normal, se põe em posição de, em plena escuridão, com uma lanterna na cabeça, olhar em direção ao céu e perceber que aquilo que dificilmente vislumbra não são estrelas afinal, mas antes lanternas nas cabeças daqueles que, como o próprio mas mais cedo, se propuseram a esta loucura?
Foram estas e outras interrogações e inquietações que me assolaram quando, às seis da manhã, a quase quatro mil metros de altitude, sentado numa rocha dura e fria ao ver o nascer do sol pintar as nuvens, desde cima, em tons alaranjados, me apercebi que ainda faltavam cerca de oito horas de caminhada nesse dia. Foi nesse mesmo momento, já com as pernas adormecidas mas em processo de reaquecimento, que dei por mim a perguntar a mim mesmo, em estado estupefacto, ‘porque fazemos isto a nós próprios´?
Por João Barros