Perceber ou não? Eis a questão - Deli

Perceber ou não? Eis a questão – Deli

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O ser humano é um ser social, ouvimos vezes sem conta. Ninguém consegue sobreviver sozinho, nem tão pouco faria sequer sentido tentar. Que o diga o protagonista a quem Jon Krakauer deu vida nas páginas do seu famoso Into the Wild, Chris McCandless. A felicidade só existe verdadeiramente quando compartida com alguém, e por essa razão temos necessariamente de nos relacionar. Ora, para nos relacionarmos uns com os outros somos forçados a comunicar, e aí é que podem surgir alguns obstáculos.

Se comunicar por si só já apresenta os seus problemas, os quais não vale a pena estar aqui a enumerar, comunicar na Ásia é um desafio ainda maior. A língua que uns e outros falamos não é a mesma, às vezes nem uma língua comum é dominada pelas partes em diálogo. A cultura é diferente, os gestos também o são e nem sempre é fácil chegar a um entendimento. Que o diga quem já tentou comunicar na Índia, em que um abanar de cabeça de um lado para o outro, que em qualquer parte do mundo representa negação, aqui antes significa condordância. Ainda assim, por incrível que possa parecer é sempre possível chegar onde queremos. Seja para ir às compras, acertar no meio de transporte que vamos apanhar, encomendar comida num restaurante, pedir informações, por mais complicado que possa parecer acabamos sempre todos por nos entender. Não é fácil, mas a verdade é que por aqui tudo se faz e com um sorriso de orelha a orelha a acompanhar.

Um ano a viajar no continente asiático reduz à insignificância, senão à quase total inutilidade, o alcance e pertinência de muitos dos inúmeros cursos de comunicação que por todo o mundo vemos serem publicitados. Como decorrência da necessidade de nos desemerdarmos há um conjunto de ferramentas de comunicação que nem sabíamos existir, mas de que todos somos possuidores, que são potenciadas e nos permitem sair de qualquer situação. Tanto faz o que façamos, como o façamos, o que interessa é, de alguma forma, conseguir comunicar. Aprendemos pequenas palavras na língua local, gestos são perdidos no ar, estranhos sons que julgamos representar o que nos interessa saem das nossas bocas. Apontamos para o prato do lado como quem diz é aquilo que quero comer, agarramo-nos às partes baixas com ar desesperado como que demonstrando a urgente necessidade de encontrar a casa de banho mais próxima, fechamos os olhos e juntamos as palmas das mãos ao lado da cara perguntando se há quartos disponíveis. Um ano de viagem por um continente que inicialmente nos era estranho – mas que já não o é mais – põe-nos à prova no que à comunicação respeita, e também isso contribui para o sentimento de plenitude que apenas se pode obter viajando por cá.

Ao longo desta viagem houve um conjunto relativamente fechado de perguntas a que tive de responder vezes sem conta. Como te chamas? De onde vens? Para onde vais? De onde és? O que fizeste hoje e vais fazer amanhã? O meu nome é João, venho daqui e vou para acolá. Sou de Portugal – não, não é Espanha, são países diferentes -, hoje fui visitar o templo no cimo da colina ou no sopé da montanha e amanhã vou tentar encontrar a cascata cujo nome não sei pronunciar. Do lado de lá, para além de um sorriso recebi recorrentemente a referência universal que qualquer português obtém quando viaja: Portugal? Cristiano Ronaldo? SIIII. Sim, foram muitos e desafinados os SIIII que ouvi ao longo deste ano, aos quais respondi sempre com um inicialmente entusiasmado, mas para o final mais cansado, sim, é isso mesmo. A exceção foi uma e apenas uma. Em pleno Nepal, ao invés da óbvia alusão futebolística a que tanto me habituei, à resposta Portugal um rosto cansado e suado antes preferiu confirmar se eu não seria nacional do mesmo país que António Guterres. Confesso que foi esta a resposta que me arrancou um maior sorriso. Não que desvalorize os feitos e recordes obtidos com os pés por aquele a que muitos se referem como o melhor de sempre. Mas saber que os dotes intelectuais dos portugueses também são capazes de levar o bom nome de Portugal até ao outro lado do mundo deixou-me particularmente satisfeito.

No outro dia dei por mim a pensar no seguinte: se num país que não o meu pudesse entender tudo o que me dizem e tudo o que dizem sobre mim, será que o desejaria? Não há dúvidas de que poderia ser um exercício interessante para satisfazer a curiosidade aguçada e desmedida que me caracteriza. Em todo o caso, parte da fantasia de viajar resulta também da premissa de não entendermos o que raio se passa à nossa volta, de nos sentirmos estranhos num determinado local, do receio e simultâneo anseio pelo desconhecido, e para isso muito contribui o não dominar a língua falada num determinado local.

Se pudesse perceber e entender tudo o que se passa à minha volta, creio que educadamente rejeitaria uma tão preciosa habilidade. Antes prefiro que custe, que demore mais a chegar a algum lado mas que no final seja obtido o mesmo resultado. Num mundo em que a satisfação imediata equivale, não raras vezes, ao aparente significado de realização, fazer as coisas devagar e ter de dirigir esforços para obter algo torna o chegar lá – onde quer que seja – muito mais prazeroso. E esse é um dom do qual não estou, ainda, disposto a abdicar.

Por João Barros

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