A professora agarrou-me e eu sem perceber porquê tanta emoção só porque ia mudar de escola, algo que para nós era razoável e normal. Estávamos em 1979, a meio da minha segunda classe, na Escola primária Gil Vicente em Cascais prestes a ir viver para Lisboa.
Nesta escola, era apaixonada pelo menino que fugia pela janela. Não me lembro de nada mais dele a não ser que tinha caracóis. Eu estava no fundo da sala à esquerda e ele estava à frente do lado direito e na primeira oportunidade fugia da aula. Como não gostar de um rapaz assim?!
Chegámos a Lisboa e fomos viver para a Bica. Uma casa muito pequena, num prédio muito antigo: uma pequena sala, um pequeno quarto, uma muito pequena cozinha e uma casa de banho inexistente, que a minha mãe teve de (re)construir. Essa construção provocou reações nos vizinhos. Os de baixo, que eram tão velhotes que para mim teriam uns cem anos, vieram aconselhar a minha mãe e o meu padrasto a não o fazerem:
— Vivo aqui há 70 anos e nunca precisei mais do que de uma sanita. Uma vez por mês, vou a casa da minha irmã tomar banho. Ou aos banhos públicos, na rua de S. Paulo. Pense bem no que vai fazer, porque roubar espaço à cozinha… onde é que já se viu isso? É onde uma mulher passa a maior parte do tempo! — dizia a senhora, consternada—.
Foi essa mesma senhora que nos ensinou a escutar os vizinhos com copos de vidro e pé alto, encostados na parede. Usei a técnica muitas vezes, até para a escutar a ela. Nunca ouvi nada de muito interessante, mas funcionava, se bem que as paredes eram tão finas que não era preciso um grande esforço para se escutar o que quer que fosse. Na Bica quase tudo se passava para uma vasta audiência, composta em grande parte por senhoras à varanda, com os braços cruzados a comentar de janela para janela o que se ia passando.
Quando davam as dez horas os vizinhos de baixo começavam a dar pancadas com o pau da vassoura no tecto para nos calar. E o estrondo mantinha-se até que não andássemos mais aos saltos. Habituámo-nos a isso e também a termos sempre a vassoura pronta para avisar o vizinho de cima, quando este ultrapassava as horas de poder fazer barulho.
Neste bairro, onde vivemos quase dois anos, brincávamos na rua até muito tarde. Os ritmos da brincadeira faziam-se de acordo com os horários do elevador da Bica. No ponto onde os dois elevadores se cruzam os mais audazes ficavam entre os dois com ar de heróis, apesar destes passaram a pelo menos meio metro de cada lado. Tentei uma vez, não corri perigo nenhum, mas tive tanto medo que nunca mais repeti.
Por vezes deixávamos cair coisas para os carris e lá vinham os vizinhos com cabos de esfregona ou vassouras, uma ferramenta muito importante na Bica. Na ponta colavam uma pastilha elástica ou sabão com uma pinga de água para amolecer um pouco. Com jeitinho, chegava-se ao objecto perdido, que geralmente eram as chaves de casa ou moedas, e puxava-se para cima. Se as chaves eram pesadas, demorava mais. Durante esta actividade, iam-se juntando mais e mais vizinhos para ajudar e dar palpites. Quando ouvíamos a campainha do elevador fazíamos uma pequena pausa na tarefa, e libertávamos o carril até à sua passagem.
A Hora do Lanche
Antes ainda de termos fome, ouviam-se as mães a chamar:
– Óooo Fanãaa, olha o laaanche.
E todos corríamos para as nossas casas a apanhar o nosso. Na Bica, e à falta de elevadores, as mães ou as avós desciam um cesto atado a uma longa corda, com a comida. Tive muita pena de nunca ter tido um cesto. De qualquer maneira, vivíamos num segundo andar. A nossa mãe não era das que gritava por nós, até porque à hora do lanche estava na redação da revista onde trabalhava. Mesmo que estivesse em casa acho que nunca teríamos esse prazer. Ou era a empregada, ou nós mesmos que preparávamos o nosso lanche.
Adorava o pão com marmelada! Uma vez, corri para a rua, ainda de pão na mão, para continuar o jogo da apanhada. Quando chovia, os carris tornam-se muito escorregadios e assim que lhes passei por cima, escorreguei e fui a deslizar deitada no chão de barriga para baixo, desde a nossa rua, a Travessa da Laranjeira, até à rua de baixo. Quando finalmente parei, ainda deitada no chão, olhei para uns senhores velhotes que observaram a situação e que com ar de orgulho comentaram:
— E o pão nem sequer tocou no chão! — provocando uma gargalhada geral.
E lá estava eu, naquela posição, mas com a mão direita inclinada para cima. Toda eu suja de óleo, mas o pão com marmelada manteve- se incólume e perfeito para consumo. Já na altura tinha as minhas prioridades muito bem definidas.
As festas em casa
Lembro-me de três festas, nesse curto período na Bica.
Uma, em que fomos visitar um rapaz que fora operada às amígdalas. Nem nos dávamos muito com ele, mas estas visitas eram uma obrigação social a que não podíamos faltar. Tenho ideia de que as mães do bairro nos apanhavam na mercearia, e indicavam onde tínhamos de ir, e a que horas.
Então, lá fomos nós visitar o rapaz sem amígdalas. Uma casa minúscula, como quase todas, uma mesa com um lanche e uma cortina a separar o quarto. Entraram muitas crianças, a mãe dele abriu a cortina, disse como é que ele estava a recuperar, e como ele só podia comer gelados. Ficámos a olhar, desejámos-lhe as melhoras para poder voltar rápido para a rua, a mãe voltou a fechar a cortina para ele descansar, e nós ficámos um bocadinho na sala a comer pão com fiambre e a beber Tang.
Outra festa teve um desfecho muito triste na altura, mas há pouco tempo, por acaso, encontrei os intervenientes e, todos juntos, acabámos por nos rir desse dia.
Era o aniversário de um dos nossos vizinhos. Mãe e filho esperavam todas as crianças do bairro com uma mesa cheia, mas mesmo cheia, de doces. Esta mesa era o orgulho da família porque era nova, em vidro fosco castanho, pés de metal, e ocupava quase toda a sala. Era mesmo moderna, no início dos anos 80. Todos nos empoleiramos em volta, e a mesa partiu-se a meio. Dividiu-se literalmente em duas, ainda antes de começarmos o lanche. Foi um momento dramático, com mãe e filho a chorarem pela mesa acabada de comprar a prestações. A festa deu lugar à tristeza «o que é que o pai vai dizer quando voltar do trabalho?». Mal entrámos, e já estávamos de saída. Nesse dia ficámos tão perturbados, que ninguém foi brincar para lado nenhum.
A última festa que me lembro, já estávamos quase a mudar para outra casa, noutra freguesia, São Mamede, e teve sabor a festa de crescidos. Não havia pais. Em casa estavam alguns adolescentes e umas tantas crianças. Mal nos podíamos mexer, e dançávamos aos pulos, enquanto cantávamos e gritávamos:
Quero ver Portugal na CEE Quero ver Portugal na CEE
Entretanto, o meu irmão Bernardo nasceu na Bica e passeá-lo de carrinho tornou-me uma pessoa «muito importante» aos olhos das outras amigas de oito anos. Elas tinham bonecas, eu tinha um bebé verdadeiro. Chegaram a pagar-me para que eu as deixasse empurrar o carrinho. O negócio corria bem, mas a Lúcia, a empregada, apanhou-me e eu fiquei proibida de alugar o meu irmão.
Entretanto, Portugal acabou mesmo por entrar para a CEE, mas primeiro mudámos nós de casa.
Texto por Marta Gonzaga