Era uma questão de tempo. Nunca foi um ‘e se…’. Sempre foi um ‘quando será que…’. Não havia dúvidas que, eventualmente, iria acontecer. A curiosidade era muita, o amor pelos tons avermelhados, amarelados e alaranjados do picante uma certeza. Mas à entrada do sétimo mês de viagem, eis que finalmente aconteceu. Tenho saudades da comida portuguesa.
Não é que, de repente, tenha deixado de gostar de arroz, de noodles, de vegetais, tofu, tempeh ou de molho de soja. Era o que faltava! Não é que as garfadas repletas de molho picante já não sejam uma parte importante da minha vida. Não é que, de repente, um spring roll acompanhado de uma cerveja Chang, ou Lao, ou Bintang, não seja, em simultâneo, a melhor forma de fechar o dia, mas também o mote para o início de uma noite bem passada. Não é disso que se trata. Não, não estou cansado dos nasi e dos mie gorengs, dos satay, dos bun cha, ou das mil e uma formas de fazer e comer caril na Tailândia. Nem sequer estou farto de apenas usar colher, garfo ou chopsticks para comer, de já não me lembrar sequer de ver uma faca à mesa. Não. É tudo saudades, só isso. E não só da comida propriamente dita. Acima de tudo é da comida que tenho saudades, sim. Mas também sinto falta de tudo o que a comida representa.
Sinto falta de decidir o que comer nos próximos dois ou três dias, do ter de ir às compras lá abaixo. Mesmo nos dias frios de Inverno. Faz-me falta andar nos corredores do supermercado à procura de azeite e do vinagre balsâmico que compro sempre. Que saudades tenho de azeite! De ter de ir à secção das especiarias porque a curcuma e os orégãos estão mesmo a acabar. De ver quais os vinhos que estão em promoção esta semana e de trazer sempre uma garrafa a mais. Mas não só. Também me faz falta o organizar jantares em casa com amigos. Daqueles jantares em que temos de pensar em duas ou três entradas porque ‘não é preciso ir logo para a mesa’. Daqueles jantares em que há que acertar cuidadosamente as doses do prato principal porque toda a gente já esteve a encher a barriga com as – tais sempre excessivas – entradas. A sobremesa? Essa parte fica a cargo dos amigos que vão lá a casa jantar. Dos jantares para os quais escolhemos uma boa garrafa de vinho para cada momento e em que quando vamos para a mesa temos sempre de reduzir o volume da banda sonora de fundo, composta pela música que escolhemos a dedo, de propósito, para aquela ocasião.
Mas também me faz falta um almoço que entre pela tarde dentro e se arraste até ao fim da mesma. Daqueles em que ficamos à mesa tempo a mais enquanto histórias e memórias são regadas com uma dose generosa do digestivo que nos foi oferecido no Natal passado, mas que não tinha ainda sequer sido aberto. Faz-me falta o ir comer a casa dos meus pais, dos meus sogros ou de quaisquer outros familiares e de – sem surpresa, mas surpreendentemente – ser outra vez brindado com um banquete que não mereço, mas que farei por merecer. Fica feita a promessa. O banquete, como não poderia deixar de ser, será devorado lá fora, no jardim, em baixo da árvore grande ou do guarda-sol, porque já não está assim tanto frio e o calor desmesurado também ainda não se faz sentir. Não pode ser de outra forma. Afinal de contas, o jardim serve para quê?
A acrescentar a tudo isto faz-me falta ainda a comida propriamente dita. Tanto aquela que me é familiar, com que cresci, os sabores que conheço tão de cor como as memórias que me invadem quando volto aos sítios em que fui feliz, como também a que nunca provei mas que sei ser parte de uma forma de fazer as coisas a que estou acostumado. Quão bem cairiam agora uns filetes de pescada com salada russa, ou uns panados com arroz de feijão a fugir? Claro que quero sopa e pão. O café pode vir no fim. Quero tudo a que tenho direito, tudo aquilo que esteja incluído na diária de um dos inúmeros snack-bar – tem de ser snack-bar, caso contrário perde-se toda a essência portuguesa – que se espalham desordenadamente pelas ruas do Porto.
Enquanto escrevo estas linhas vem-me à imagem uma tábua de queijos e enchidos acompanhada de um cesto com pão. Um pão daqueles que, quando apertado, parece prestes a desfazer-se, queixando-se da pressão, estalando, mas que no final mantém a sua forma. No meu subconsciente estou prestes a devorar uma burrata rodeada de tomates cherry, regada a azeite virgem e com umas folhas de manjericão no topo acabadas de arrancar da nossa horta de interior. Imagino-me a comer um prato de marisco à beira-mar, em Vila Praia de Âncora, acompanhado de doses excessivas, mas sempre necessárias, de finos acabadinhos de tirar. Daqueles com dois dedos de espuma no topo, como deve ser. Diante de mim vejo a minha mãe a sorrir com um prato repleto de alheiras de Cabeceiras de Basto acabadas de preparar, enquanto ao lado, estranhamente, um especialista em brasas – há sempre um, não é? -, que percebo ser o meu pai, prepara o grelhador para um churrasco que se prolongará durante várias horas.
Se me fosse dado a escolher, neste momento comeria, sem hesitar, um rojão do Café Expresso. E comê-lo-ia no Café Expresso, naquelas toalhas de papel, com uma caneca de vinho maduro tinto a acompanhar. Estou a falar de um daqueles rojões que se desfaz só com o toque do garfo, em que a faca nem sequer é chamada ao serviço. Ou então comeria uma francesinha acabada de sair do forno no Buffet Fase servida com a quantidade certa de queijo e enchidos. Quanto ao molho, é sabido que terei de pedir uma dose extra. Ou será que trocaria tudo isto por um peixe grelhado num dos inúmeros restaurantes da Apúlia, acompanhado de batatas a murro com um excesso evidente – mas bem-vindo – de azeite e alho picado? Se calhar apetece-me, afinal, um rissol de carne do Capa Negra com uma cerveja fresca a acompanhar. Que inferno, não é fácil escolher.
Hoje deu-me para isto, para pensar em comida. Entre outras, é uma das coisas boas de viajar. Tanto nos podemos deliciar com um prato que nunca experimentamos como podemos sentar-nos à mesa e pensar ‘outra vez arroz’? O primeiro simboliza a vontade de conhecer o que de novo há para descobrir. A segunda representa o valor que damos ao que temos em casa. E a verdade é que, por vezes, precisamos de nos afastar do que nos rodeia para perceber o quão valioso é o que nos espera quando regressarmos.
Por João Barros