O reverso da medalha - Labuan Bajo

O reverso da medalha – Labuan Bajo

282 views

Viajar faz bem, todos o sabemos. Cada vez mais se ouve e vê escrito por esse mundo fora ‘vai viajar que te abre a mente’. Não poderia nunca discordar de uma tal afirmação. Gap years para viajar, licenças sem vencimento e até abandonos do trabalho, tudo só para se poder partir. Há de tudo isto e mais um pouco. Viajar faz bem e está na moda. Quando viajamos passamos a dar mais valor às coisas que antes consideramos pequenas, somos brindados com experiências que levamos para a vida, passamos a ser mais humildes e aprendemos que nem sempre estamos no controlo de tudo. E está tudo bem assim. Quando viajamos satisfazemos a criança curiosa que há dentro de cada um de nós e à qual devemos sair porta fora e só voltar quando tiver de ser. Viajar é tão bom que há até quem use o número de países que já visitou como uma medalha. Não uma medalha verdadeira, daquelas que tradicionalmente vemos ser colocadas em peitos alheios em ocasiões cerimoniosas. Não, não uma dessas medalhas. É sim uma medalha simbólica, que em vez de ser carregada ao peito é antes carregada para as redes sociais, sob a forma de inúmeras bandeiras representativas dos locais por onde já se passou no perfil de cada um. Uma medalha deste tipo.

Mas a verdade é que se viajar dá direito a uma medalha, há que recordar que toda a medalha tem o seu reverso. Viajar não é só coisas boas, não é só memórias inesquecíveis com amigos, em paisagens estonteantes e a aproveitar experiências transcendentes. Não. O ato de viajar durante longos períodos de tempo tem um lado pernicioso acerca do qual as pessoas não gostam de falar. Ou dois, digamos antes assim.

Quando viajamos durante largos períodos de tempo há uma tendência universal para deixarmos de ser surpreendidos. É assim que as coisas funcionam. A praia magnífica que se estende diante de nós mais não é que uma miniatura, ou um parente pobre, do outro areal que vimos aqui ou acolá. Ou é apenas mais uma praia, só isso. Os novos arrozais com que nos deparamos nunca são tão verdes, nem têm tantos socalcos, como aqueles que vimos há uns meses atrás ainda para mais de forma gratuita. As paisagens deixam de nos roubar tanto a respiração, as pessoas locais, embora o sejam, já não parecem tão simpáticas como antes, o snorkeling que fizemos naquela outra ilha é que foi bom. Este não. Este tipo de reação, para além de normal, apresenta-se quase como uma inevitabilidade. Mas a verdade é que não o é, e tal sentimento deve ser combatido com unhas e dentes. No fundo, devemos continuar a dar valor às novas experiências que vamos vivendo, devemos continuar a predispor-nos a ser surpreendidos.

O olhar de amigos que nos visitaram durante a viagem foi um bom tónico para nos recordar disso mesmo. Os seus olhos virgens, neste caso, de Sudeste Asiático, que pela primeira vez aqui se abriram e que resplandeceram um brilho inigualável, recordaram-nos que tais olhos foram também os nossos, só que há uns nove meses atrás. E assim deveriam continuar a ser. Os seus olhos, na primeira vez que viram arrozais ou quando perceberam que cabem cinco pessoas sem capacete numa scooter, ou ao depararem-se com um primeiro macaco a atravessar a estrada, ou água do mar tão turquesa que faz inveja ao pantone que dá nome a uma tal cor, disseram-nos tudo. Brilharam de alegria, como se acabados de ver um truque de magia. Todos os mercados locais foram uma novidade, as comidas típicas algo que sempre abriu o apetite, a vegetação abundante um espetáculo digno de se admirar. Os sorrisos das pessoas e a sua genuína simpatia, o trânsito frenético, as ultrapassagens destemidas, as oferendas à porta de casas, restaurantes, templos e no meio da estrada, o cheiro a incenso, o andar descalço em todo o lado, o não ter planos, tudo foi novidade e um verdadeiro esplendor. Os preços baixos, as viagens de barco e autocarro, o acordar sem saber onde dormir nesse mesmo dia, tudo se apresentou como um novo capítulo aos seus olhos, tudo contribuiu para um sorriso interminável, tanto em tamanho como em duração. Olhos de quem viu a verdadeira Ásia pela primeira vez, e que nos disseram ‘daqui não quero sair’. Como eu os percebo.

Todas estas coisas fazem já parte do nosso quotidiano, de uma rotina que com o tempo abraçamos e à qual nos esquecemos de dar o devido valor. Não devia acontecer. O tempo e a rotina levaram-nos a um aparente estado de letargia do viajante de longo curso que deve, a todo o custo, ser evitado. Não há que parar de viajar, não é isso que quero dizer. Mas, como dizia o Sérgio Godinho a respeito de outras coisas, mas cujas palavras assumem igual pertinência neste caso, no qual encaixam que nem uma luva, quando viajamos há que o fazer sempre com um brilhozinho nos olhos, o qual não pode nunca desaparecer. Caso contrário, desaparece também a magia de viajar.

Mas não só. É verdade, ainda há pelo menos um outro lado obscuro no ato de viajar. E tal acontece porque viajar é distância. Das pessoas, dos lugares, dos momentos, de coisas, de uma rotina, de tudo. Quando partimos em viagem o nosso subconsciente está sempre dominado por um medo e receio que optamos por suprimir, mas que está lá. Um receio de que algo de mal aconteça na nossa ausência.

Não se trata de perder bons momentos. Quanto a estes, quando decidimos viajar sabíamos de antemão que tais momentos seriam perdidos. Casamentos, nascimentos, batizados, primeiros passos, almoços de domingo, tardes bem passadas no campo, festas populares no verão, carinhos e afetos dos nossos animais de estimação, copos com amigos ao fim do dia de trabalho no Asa de Mosca, fins-de-semana em Braga, Monção, Cabeceiras de Basto ou Vila Praia de Âncora, manhãs a deambular pelas ruas do Porto. Sabíamos que teríamos, durante uns tempos, de adiar o prazer inerente a tipo de momentos, mas com isso vivemos bem. Afinal de contas viajar durante tanto tempo foi resultado de uma decisão consciente, ponderada e informada. Sabíamos que iríamos abdicar de tais momentos em prol de algo diferente. Por isso não, não é a esse tipo de situações que me refiro. Refiro-me, pelo contrário, a maus momentos.

Como não poderia deixar de ser, durante todo o período de tempo em que estamos longe vão também haver momentos menos bons. Momentos maus, que não controlamos quando acontecem ou mesmo se acontecem, ainda que seja quase inevitável que algo de mal venha mesmo a ocorrer. Há um elevado grau de probabilidade que venham mesmo a suceder, já que o tempo e a vida que momentaneamente deixamos para trás continuam o seu curso, não ficam parados à espera de quem optou por partir.

Quando acontecem sentimo-nos impotentes. Queríamos estar perto, ser o ombro amigo ou o abraço reconfortante para aqueles que mais necessitam de nós. Queríamos poder esticar a mão àqueles que tantas vezes nos ajudaram a levantar quando estávamos menos bem, mas não podemos. Raio da distância. A distância tem destas coisas, é feita de opostos. Quando partimos em viagem para longe fazemo-lo com entusiasmo, claro está, mas também com um receio encapuçado. Em simultâneo desejamos não ter de voltar mais cedo que o previsto, mas a verdade é que quanto mais cedo voltarmos menos probabilidades há que algo de mal aconteça. É uma dualidade complicada, difícil de explicar. Queremos afastar-nos, ser livres, fugir de uma rotina. Mas queremos também regressar. Um regresso marcado por uma nostalgia de encontrar o carinho de tudo aquilo de que momentaneamente nos afastamos e acerca do qual tanto pensamos nos últimos meses, assim como por uma sensação de alívio por tudo lá por casa ter corrido bem – ou, quanto mais não seja, menos mal.

Algo de mal acontece e logo nos questionamos: voltamos a casa? Todos por lá nos dirão que não, não vale a pena regressar. Estamos longe, não foi nada assim tão grave, está tudo controlado e não há razão para interromper esta aventura de uma vida. Agarramo-nos aos – para este efeito – benditos telemóveis que nos permitem estar perto, ainda que longe. Tentamos estar presentes ainda assim. Aguardamos impacientemente por notícias que, em virtude de um fuso horário desajustado, teimam em não chegar tão cedo quanto desejaríamos. Enviamos forças e boas energias por forma telemática, mas não passa disso. Os nossos corações dizem-nos para voltar, amigos e familiares em casa dizem-nos que era o que mais faltava. As nossas carteiras gritam a plenos pulmões para que ponderemos bem as nossas decisões, já que podem não aguentar mais dois voos intercontinentais agendados em cima da hora. Mas não é de dinheiro que se trata. Nunca foi e nunca será. As saudades apertam, o cheiro aos cozinhados dos nossos pais nunca esteve tão presente, ainda que tão longe. Viajar é também feito deste tipo de (in)decisões e preocupações. O receio de uma chamada telefónica a meio da noite que nos transmita algo que não queremos ouvir.

É algo com que qualquer pessoa que viaja tem de conviver. Quiçá também este sentimento faça parte da viagem, daquilo que ela é e daquilo que deveria ser. Uma forma de redescoberta, não só de nós próprios mas também da forma como lidamos com situações e problemas. Não é fácil. Mas nunca ninguém disse que o seria. Caso fosse, talvez viajar não valesse tanto a pena.

Por João Barros

Este site utiliza cookies para permitir uma melhor experiência por parte do utilizador. Ao navegar no site estará a consentir a sua utilização. Mais informação

Se não pretender usar cookies, por favor altere as definições do seu browser.

Fechar