Perder a noção do tempo. Acontece a qualquer um. Todos já esboçamos um sorriso ao constatar, depois de uma tarde bem passada ou de uma noite animada, que o tempo passou sem que disso tenhamos dado conta. Umas vezes são quatro da tarde e ainda estamos à mesa a acrescentar uma camada de digestivo a uma barriga já demasiado cheia. Outras são seis da manhã, o sol ameaça nascer, e ainda temos uma cerveja – ou, para os mais novos e resistentes, um gin tónico – na mão por terminar. Onde foram parar todas aquelas horas?
Em plena Indonésia, ainda que todos os dias sejam surpreendentemente diferentes entre si, é recorrentemente possível identificar um denominador comum: a forma como o tempo passa e como ele é tratado. Por este lado do mundo não há atrasos para nada, nem nunca se chega adiantado a lado nenhum. Chega-se sempre onde se quer chegar no momento exato em que tal era suposto acontecer. É este o denominador comum.
O relógio, que há muito abandonou o meu pulso, claro está que ficou em Portugal. Está algures por lá, arrumado num armário qualquer. Para que precisaria dele por aqui?
Por cá, no Sudeste Asiático, as horas medem-se de outra forma. São medidas pelo sono e pela fome. E nem assim o tempo se parece poder controlar, já que não podemos confiar totalmente no que o nosso corpo nos vai dizendo (isto ao contrário do que nutricionistas e personal trainers por esse mundo fora nos dizem que devemos fazer). Por vezes, a hora da sesta fala mais alto que tudo o resto e damos por nós a fechar os olhos, depois de almoço, ainda que não seja hora de ir para a cama – como fomos habituados a ouvir desde pequenos. Já a barriga é a barriga, não dá para confiar nela. A minha está sempre em carência gastronómica. Por isso, não dá para confiar. Em todo o caso, não é à toa que uma das expressões usadas para demonstrar o descontentamento gerado pela fome seja ‘tenho a barriga a dar horas’.
Mas não só desta forma as horas são medidas por cá. No campo, na selva, na praia ou na montanha, o som dos pássaros a cantar ou dos macacos a saltar em cima do telhado do quarto, avisam-nos que está na hora de acordar. Na cidade, tais despertadores naturais – há lá melhor coisa que isso? – são substituídos pelos menos agradáveis ruídos de motorizadas que aceleram freneticamente estrada fora rumo ao mercado local. A maré, que atrevidamente se vai aproximando dos nossos pés e pertences, ameaçando levá-los para não mais os vermos, diz-nos por outras palavras que a pausa do meio da manhã solarenga junto ao oceano está a chegar. Quando a areia da praia começa a queimar por debaixo dos nossos pés de cada vez que decidimos atravessar o areal para um mergulho refrescante, sabemos que já não falta muito para a hora de almoço. A sonolência provocada pelo calor de meio da tarde lança o mote para um café que hoje servirá de lanche. As cores alaranjadas que pintam o céu quando chega o momento de o sol se pôr não deixam margem para dúvidas – o fim da tarde está aí e uma cerveja vem mesmo a calhar. O cheiro a nasi goreng ou a tempeh satay que inunda as ruas recorda-nos que está na hora de jantar. É esta a ideia, estou certo que todos percebemos. E se assim é, para que raio precisaríamos de um relógio?
Mas não só. Por cá também não há grande utilidade a dar a calendários. Aqui nunca se sabe que dia da semana é e, na verdade, está tudo bem assim. Parece que todos os dias são sábados. Não domingos, sábados. Os domingos são recorrentemente carregados de um saudosismo de um fim-de-semana que ainda vai a meio mas está sempre quase a terminar, conjugado com uma angústia típica da segunda-feira de trabalho que se aproxima a passos largos. Não, decididamente os dias aqui não são domingos. São todos sábados. Os dias passam sem que disso seja sequer possível dar conta, sem quaisquer preocupações latentes. O sol deita-se, a lua apresenta-se ao serviço e quando damos por nós não sabemos o que é feito do dia que, num abrir e piscar de olhos, está tão perto de terminar. Bom sinal, creio eu. Já diz o velho ditado que é quando estamos felizes que o tempo passa mais depressa.
Aqui também nunca se sabe o dia do mês em que estamos, e às vezes até este parece que se nos escapa da ponta da língua. Os dias do mês medem-se tendo por base a distância temporal que medeia entre o agora e o momento em que iremos para a estação de comboio, de camionagem ou para o aeroporto, rumo a mais uma das viagens marcadas com antecedência sob o pretexto de assegurar preços mais vantajosos. Não uma, nem duas vezes, tais preços – não tão surpreendentemente – acabaram por ficar mais baratos depois disso. Enfim, dores por que todos temos que passar. Mas não só. Os dias do mês medem-se ainda pela quantidade de tempo que nos resta no visto que, mais cedo ou mais tarde, das duas uma, ou é renovado ou nos obrigará a abandonar de vez o país em que tão confortavelmente nos habituamos ver o tempo passar nas últimas semanas.
Aqui nunca sabemos o que vamos fazer amanhã. A que horas vamos acordar, onde vamos comer, que sítios e quando os vamos visitar, que pessoas vamos conhecer ou encontrar. De qualquer das formas, não interessa. Há sempre tempo para tudo. Todo o tempo do mundo. Por cá, o tempo não é cronometrado nem nunca está a correr contra nós, como recorrentemente ouvimos em casa. Não. A vida afinal não é uma corrida contra o tempo. Perguntem a qualquer indonésio. Ele confirmar-vos-á tal afirmação sem qualquer tipo de hesitação. Eu gostava de o ter feito há mais tempo.
Num mundo em que tudo é medido ao segundo, em que tempo é dinheiro, no qual escritórios de advogados se fazem cobrar ao minuto, de forma excessiva, pelo trabalho que desenvolvem para os seus clientes – raios partam já ter feito parte de um tal mundo -, em que entidades patronais e gerências dão por si à rasca para organizar turnos e horários de trabalho, o passo desacelerado e despreocupado do Sudeste Asiático ensina-nos algo diferente. Recorda-nos diariamente que ainda que o mais importante que tenhamos na vida seja o tempo necessário para a desfrutar, não há por que tentar controlar de forma desenfreada uma realidade que nem se quer se vê, quanto mais pode ser medida ou domada.
Acabo de me recordar de um trocadilho, ou quebra-línguas, como lhe quiserem chamar, que aprendi quando ainda era um garoto e que nunca me pareceu fazer tanto sentido quanto hoje: o tempo pergunta-se a si mesmo, tempo, quanto tempo o tempo tem. E o tempo responde ao tempo que o tempo tem tanto tempo quanto tempo o tempo tem. É confuso, sim. E difícil de dizer. Mas finalmente encontrei alguma utilidade para esta frase que, até hoje, apenas estava gravada na minha mente. Está na hora de parar de escrever. Nem dei por ela mas a verdade é que está na hora de ir jantar. Tenho a barriga a dar horas.
Por João Barros