Idas ao mercado – Tomohon

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Nove da manhã num sábado primaveril. Uns ainda se estendem derrotados na cama fruto de uma batalha de copos excessivos na noite anterior, enquanto outros já acordaram deliberadamente há algum tempo. O café da manhã foi saboreado em tragos demorados junto à janela mais próxima virada a nascente, com os primeiros raios de sol do dia a brindarem-nos com a sua companhia. É aqui, e assim, que nos encontramos, no norte do Sulawesi em Tomohon.

Temos perfeita noção do que nos espera. Foi esta a razão que nos levou a levantarmo-nos tão cedo num dia de descanso. Ainda que tão bem se esteja aqui, decidimo-nos interromper a procrastinação e lançamo-nos alegremente ao caminho. O nosso destino? O mercado local. O sítio em que foi criada e desenvolvida a arte de bem regatear, onde inúmeras batalhas são amigavelmente travadas. E este não é um mercado qualquer, mas antes um verdadeiro mercado asiático, em que a variedade de coisas com que nos podemos deparar e que podemos vir a sentir não têm limites.

Ali chegamos, a primeira batalha salta-nos logo à vista. Batalham entre si os vendedores. Estejam eles lado a lado, uns em frente aos outros e às vezes até ao longe, sabemos que eles batalharão entre si. Cada um dos vendedores, com o seu timbre particular e sempre num tom bem audível, tenta de forma jovial evidenciar as – muito melhores – qualidades dos produtos que dispõe na sua banca em comparação com as demais. As dos outros são sempre piores, não é? No mercado não há cá espaço para a lógica defendida pelo Miguel Araújo, de que o marido das outras é que é…

Como se isso não bastasse, uma luta paralela domina a nossa visão. O sol, que timidamente espreita por entre as frinchas dos toldos que no verão nos presenteiam com uma bem-vinda dose de sombra, faz com que as cores dos legumes, da fruta e das flores ganhem uma nova luminosidade. Como é possível as maçãs serem tão vermelhas assim, os pimentos tão verdes e as flores tão roxas? Será que, sem que ninguém nos tenha avisado, o arco-íris sofreu um acidente e caiu neste preciso local, espalhando pelas bancas todas as suas cores? Tem de haver alguma explicação… Uma cenoura laranja assim só mesmo em anúncios de televisão, e um amarelo como o daquele limão nunca antes foi visto.

Mas não nos ficamos por aqui. Como se de gladiadores se tratassem, também todos os odores que irremediavelmente invadem o nosso nariz tentam esperançosamente ocupar uma posição de destaque na hierarquia do mercado. Claro está que não há quem dê sequer luta à secção de produtos do mar. Entre a fragrância a maresia que se liberta dos incontáveis peixes, polvos e marisco que em aparente e eterna tranquilidade repousam sob o gelo picado, parece não haver espaço para que qualquer outro aroma apresente o seu caso. Mas assim que nos aproximamos dos produtos da horta e do pomar, aí tudo se altera. Entre o doce perfume da fruta que se cruza no nosso subconsciente com o cheiro à cozinha dos nossos avós no imediato momento antes de a sopa começar a ser preparada, o nariz delicia-se com uma combinação que, ainda que não aguardada, é afinal tremendamente bem-vinda. O cheiro a campo proveniente das flores que, lá ao fundo, se apresentam coloridas e de forma indiscreta, serve de enquadramento a toda esta pintura aromatizada.

Entre cliente e vendedor? Não há qualquer batalha, ainda que tal pudesse parecer. Não, aqui não há discussão alguma. Apenas uma sequência de regateios, de lado a lado, que desportivamente termina com um sorriso concordante quanto aos termos da transação. Não há por que lutar quando um quer vender e o outro quer comprar, não é verdade? O regateio nada tem que ver com uma batalha. Ele existe, apenas e tão só, porque tem de existir. Nada mais. É assim que as coisas se fazem aqui. Já imaginaram uma ida ao mercado sem regatear a compra de dois quilos de alho francês? Estaria a faltar alguma coisa.

Mas em simultâneo, surpreendentemente, a verdade é que damos também o nosso corpo a batalhar. Não, não me refiro ao peso das coisas que não queríamos comprar mas que, inevitavelmente, acabaram dentro do nosso saco. Aquele saco que, de tão pesado, já se faz sentir no nosso ombro. Não é a esta batalha a que me refiro, a que faz com que seja normal ter de trocar o tal saco do ombro direito para o esquerdo com alguma frequência. Esta é uma batalha diferente.

Esta é uma batalha do vai e não vai. Por um lado temos vontade de avançar, ainda que as nossas pernas parecem não se querer mover mais. Lá ao fundo, de forma não tão tímida, vemos a parte do mercado com a qual mais receávamos ter de lidar. Todo o tipo de animais à venda, em bancas sangrentas, fazem-nos duvidar. Será que queremos ver coisas que sabemos nos vão perturbar, mas que fazem parte da cultura local? Ou negamo-nos a tal desprazer e optamos por desistir da ideia? Arriscamos pesadelos e imagens desagradáveis que teimam em não sair da nossa cabeça? Ou encerramos o passeio por aqui?

As nossas pernas, movidas a curiosidade, lançam-nos perante um tal cenário que jamais pensamos vir a encontrar. De olhos semicerrados avançamos por entre gritos de vendedores e sons de animais que, pacientemente, aguardam seja brandida a espada tal como determinou a sentença que os condenou. Que azar terem nascido por cá.

O tempo voa. Depois de tudo o que sentimos talvez seja hora de regressar. Temos um bom caminho pela frente e ainda há muita coisa para visitar. Ponderamos se será que valeu a pena vir até aqui. Uma ida ao mercado é muito mais que uma ida às compras e, sem que o soubéssemos, a verdade é que esperamos toda a semana por este momento. Decididamente sim, valeu a pena. E a verdade é que se aqui ficarmos mais uns dias, certamente procuraremos outra razão para cá voltar.

 

Por João Barros

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