Estar sentado, só porque sim (mas acima de tudo para viajar) Osaka / Takayama / Kanazawa

Estar sentado, só porque sim (mas acima de tudo para viajar) Osaka / Takayama / Kanazawa

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Há mais que se lhe diga sobre estar sentado que apenas estar sentado. O ato de apenas estar sentado parece fazer transparecer menos que aquilo que na verdade representa. Numa era de combate ao sedentarismo não devemos, no entanto, esquecer as virtudes da tão reconfortante habilidade de estar sentados, só porque sim. Apenas porque nos apetece. Porquê? Porque sentados podemos conhecer mais sobre uma cidade, uma cultura ou um país que visitando todos os templos, monumentos e principais atrações locais. Apenas sentados podemos saber mais sobre uma pessoa do que se visitássemos a sua casa ou até mesmo os lugares onde nasceu e passou a sua infância. Sentados. Apenas sentados, sim. Como? De que forma? Onde?

No metro

Entre a multidão que aguarda a chegada do próximo metro detetam-se alguns olhares em direção da placa que assinala o tempo que falta até que a próxima carruagem dê entrada na estação. Por entre uma aparente postura despreocupada generalizada nota-se no ar uma certa dose de impaciência e urgência. Uns dirigem-se para o trabalho, onde os atrasos são a mais imperdoável falha. Outros dele regressam, pelo que a vontade de chegar a casa dita uma dose de premência igualmente assinalável.

Em plena carruagem, já sentados, olhando à nossa volta, contamos a nós próprios a história da vida das pessoas que connosco partilham o espaço. Sem que seja necessária a troca de qualquer palavra. O que fizeram no fim-de-semana passado, quem vão visitar esta noite, onde estão a pensar ir de férias no próximo verão. Em pleno covil subterrâneo sentimo-nos mais perto que nunca da verdadeira natureza e essência de cada uma das pessoas que, diariamente, substituem o fazer-se à estrada pelo deixar-se levar pelos carris previamente traçados para os guiar. O poder de partilhar das suas vidas, ainda que só com o mero cruzar de um olhar, sem qualquer palavra ou expressão, é um privilégio que fica reservado a quem a estas linhas de metro se entrega.

Na era moderna, em que o digital a tudo se parece sobrepor, a grande maioria dos companheiros de carruagem perde-se em scrolls infinitos pelas redes sociais, pura e simplesmente aguardando a sua hora – ou a sua saída, melhor dizendo. Outros, decididos a não tão pacificamente se entregarem à simples passagem do tempo, erguem diante de si livros. Estes últimos optam por não se deixar levar pelo inevitável destino do quotidiano, aproveitando as palavras escritas por outrem para viajar para longe de todo o cenário que os rodeia debaixo da terra. Somos todos personagens de uma história maior. Tal como as estações que se aproximam, os capítulos seguem-se sem que possamos alterar a sua ordem, sem que nos seja dada a possibilidade de alterar o panorama geral. Em todo o caso, o que fazemos com o tempo que nos é dado, sentados naquela carruagem do metro, dita o desenrolar da narrativa que podemos escolher para nós próprios, da história que queremos contar.

Numa praça

Por entre uma caminhada ao sol escaldante e que não dá tréguas àqueles que decidiram estar na rua durante o seu pique, eis que o vemos: um lugar à sombra. Decidimos sentar-nos naquele apetecível muro da praça e desistimos da correria por entre marcos turísticos que haveria ainda para visitar, hoje, numa frenética cidade como é Osaka. Olhando à nossa volta damos por nós na fila da frente daquele que é o principal ponto de encontro da cidade. De qualquer cidade. Afinal de contas, para que mais serve uma praça senão para propiciar um local de reunião para todas as almas que, desencontradas, desejam deixar de o ser?

Neste, que é o ponto central da vida de bairro que tantas vezes nos queixamos não conseguir ter, tudo e todos estão ao alcance da nossa vista. Um casal saudoso que há demasiado tempo não se via volta a reencontrar-se por entre um longo, ternurento e apertado abraço. Em frente a nós um grupo de amigos não dá tréguas aos tokoyakis provenientes da loja da esquina da praça que deliciosamente se enfileiram prontos a ser devorados. De passagem, mães, pais e filhos perdem-se, de mãos dadas, por entre sorrisos estridentes e simultaneamente descontraídos – daqueles que só podemos dar com as nossas mães e com os nossos pais. Uns aguardam sozinhos por uma companhia que finalmente, vinte minutos depois da hora combinado, se digna a chegar, enquanto outros parecem entregar-se a doses de solidão intemporais que no dia de hoje não parecem que serão contrariadas. Para estes últimos, um livro diante si, headphones nos ouvidos e uma vista atenta em seu redor são a melhor companhia.

Anoiteceu. Já há horas que o sol se escondeu. Faz já muito tempo que poderíamos ter retomado a visita à cidade. Mas, pensando bem, haverá melhor forma de conhecer uma cidade que simplesmente, sentado, observar tudo aquilo que ela, num constante movimento, tem para nos oferecer?

Pedalando numa bicicleta

Não, não é do Tour de France que se tratam as próximas linhas. Nem tão pouco se trata aqui de ciclismo propriamente dito. Não me refiro a fatos de licra coloridos nem a altas doses de velocidade em cima de duas rodas. Longe disso. Do que aqui se trata é do ponto perfeito de velocidade que encontramos quando, despreocupadamente, com a roupa do dia-a-dia e sem qualquer pretensão de conquista de tempos ou montanhas, damos por nós sentados numa bicicleta. Lentamente, sem qualquer urgência incutida em cada pedalada, a verdade é que é possível encontrar um ritmo ideal que se adequa a todas as ocasiões. Em pleno e contínuo exercício de equilíbrio, é esta arte de movimento sentado que nos permite continuar a avançar, a conhecer, a ver, a visitar.

A uma velocidade inferior(mente perfeita) à que podemos atingir comparativamente com a de um carro ou de uma mota, numa bicicleta é-nos permitido desacelerar os momentos que queremos, quando e onde o desejarmos. Só pelo simples facto de termos optado por pedalar é-nos dada a opção de impor a um ritmo de vida frenético uma cadência desacelerada que todos necessitamos, independente do que digamos a nós próprios. Em câmara lenta temos na mão o comando que nos permite reduzir a velocidade e aproveitar, como até então não o fizemos, o que uma paisagem, uma ocasião, uma pessoa ou um lugar têm para nos oferecer.

Mas não só. Sentados numa bicicleta temos ainda o poder de acelerar, até ao ponto em que as nossas pernas o permitam, qualquer situação que desejemos evitar. Quem nunca desejou evitar um momento constrangedor e desconfortável entre quem observa e quem é observado? Entre quem passa e quem é ultrapassado? Entre quem não queria estar num determinado local e quem não tem outra vontade senão o de ali aguardar a passagem de transeuntes? Pois bem, numa bicicleta tudo está à distância de uma pedalada. Chamamos a nós o comando do nosso destino e, com maior ou menor esforço, pedalamos para longe daquilo que pretendemos evitar. É tão fácil assim.

Quem diria que, apenas sentados, seria possível movimentarmo-nos tanto e ao ritmo que sabemos ser o mais adequado para nós a cada momento? Por que razão não queremos, todos e cada um de nós, ter na nossa mão um destes comandos que nos permita regular, ao ritmo de cada um, a sua própria vida?

Num banco de madeira no parque

Sozinhos ou acompanhados, não faz diferença. Há um prazer incontestável em, pura e simplesmente, estar sentado num banco de madeira no meio de um parque.

Sozinhos, de olhos postos nas vidas que nos rodeiam, ultrapassamos as barreiras do tempo e espaço e contrariamos os limites que nos impõem apenas poder viver o presente e nada mais. Por entre o verde da relva e das árvores que se estendem diante de nós recuamos aos tempos da nossa juventude quando notamos um aceso jogo de futebol. O jogador mais velho não pode ter mais que onze anos. Que habilidade têm todos eles para a sua idade! Que energia! Como é possível correrem tanto assim, sem descanso, sem uma pausa para beber água, quando o sol vai tão alto – pensamos nós desde a sombra do nosso banco? Num banco ao lado do nosso vemos, sentado, aquele que é um futuro que desejamos para nós. Por entre uma harmoniosa e doce calmaria, um casal já com os seus oitenta anos está, tal como nós, pura e simplesmente sentado. Num merecido relaxamento conquistado pelos anos que levam em cada uma das suas pernas, ambos se limitam a observar o que o momento tem para oferecer. Quanta ternura e amor podem ser postos num par de mãos entrelaçadas, num silêncio apenas substituído por olhares de compromisso que valem mais que mil palavras? Que futuro maravilhoso nos aguarda. No entanto, a verdade é que vivemos no presente. E eis que, a um ritmo apressado, nos deparamos com a sua típica urgência. Um corredor, cuja idade não sabemos precisar – mas sabemos situar-se na nossa faixa etária -, recorda-nos o que é ter uma vida física ativa. Invejando a sua força de vontade e motivação, rapidamente nos convencemos a nós próprios – e não a mais ninguém – que também nós nos entregaremos, já amanhã, a este tipo de rotina. Queremos ter o presente na nossa mão, chamar a nós o controlo de viver a vida como aquele corredor o faz. Destemido, motivado, acelerando frontalmente em direção aos obstáculos com que terá de lidar. Num mesmo local, e neste preciso momento, estar sentado naquele banco de madeira no parque permitiu viver as felicidades do passado, sentir a premência e inveja do presente, desejar a chegada de um tão aguardado futuro.

Mas também não há melhor local para combater a solidão que um banco de madeira no parque. Em ambiente descontraído, longe da efervescência das multidões que se cruzam por entre as movimentadas ruas da cidade, aqui encontramos o conforto que a amizade e a cumplicidade têm para oferecer. Uma perna cruzada por cima da outra, um cotovelo apoiado no encosto oferecido pelo banco a todos aqueles que aqui se decidem sentar, oferecemos um ouvido pronto a escutar aquilo que outra pessoa tenha para nos contar. É tudo o que, muitas vezes, os outros – e também nós – necessitam. É neste banco de madeira no parque que, nas próximas horas, passaremos a ser parte da vida de uma pessoa apenas e tão só através do dom da sua palavra. Nos próximos minutos passaremos de figurantes a atores principais de uma vida que apenas conhecíamos por fora mas que, por sermos agora um recipiente perfeito para desabafos, tristezas, irrequietações, preocupações, partilha de emoções, alegria e felicidade, fomos convidados a integrar de forma ativa. Aceitamos o convite que nos é dirigido. Sem deixarmos de estar sentados passamos a desempenhar um papel preponderante na vida de alguém que, de forma intencional e propositada, reservou parte do seu tempo para nos incluir no seu dia-a-dia, na sua vida, na sua própria história. Como negar uma tal honra?

No comboio

Esta gloriosa máquina do passado ganhou merecidamente, nos dias de hoje, um lugar de destaque entre os amantes da locomoção. Utilizada por todos aqueles que pretendem viajar aliviados do stress que impõe decisões a cada momento, como o que fazer, onde virar, a que velocidade seguir, por aí fora, é sentados à janela do comboio que sentimos o verdadeiro prazer que nos é proporcionado pelos caminhos-de-ferro. É aí que nos é proporcionado um lugar na primeira fila para um espetáculo e uma experiência indescritíveis. Como se fizéssemos parte de uma pelicula, daquelas bem antigas em que os cenários se seguem uns aos outros de forma óbvia mas com um encanto incontestável, olhamos para a esquerda. Surpreendentemente, vemos cores. O verde, que de forma acentuada trepa pela encosta das montanhas, encontra-se, numa união perfeita, com o azul da água do rio que calmamente corre em direção ao mar. Não interessa a velocidade a que o comboio segue. As imagens seguir-se-ão umas às outras de forma desacelerada, em câmara lenta, apelando a uma harmonia melancólica que nos remete, em simultâneo, para o êxtase de início de uma longa viagem e para o momento de regressar a casa e receber o abraço que há demasiado tempo nos foge. Os olhos começam a pesar-nos. O embalo do caminho-de-ferro permite que o sono leve a sua avante, que comece a tomar conta de nós. Abstraímo-nos de tudo o que nos rodeia. A última imagem que fica é a da paisagem que entrou pela janela dentro e nos transportou para um cenário digno dos filmes da Gibli – como se viajássemos com Chihiro, ou com a Princesa Momonoke num Castelo Andante que teima em não se fixar. Não queremos deixar escapar o momento mas acabamos por cair no sono. Ainda meio adormecidos, quando acordamos, apercebemo-nos que apesar da satisfação de ter chegado ao destino, o que fica das últimas horas é a felicidade em ter percorrido o caminho sentados à janela do comboio, como acabamos de fazer.

À mesa

Até ao dia de hoje não tive a infelicidade de conhecer uma pessoa que não gostasse de comer. Sorte ou não, não sei. Digo a mim mesmo que não é por esses meios que me movo. Não acredito que haja pessoas que dizem ‘só me alimento para sobreviver’. Recuso-me a acreditar, sequer, que hajam pessoas assim. Se o dizem é porque algo não bate certo.

Estar à mesa. Sentados. Para uns, este é o único momento de descanso ao longo de um dia agitado. Para outros, uma oportunidade de ouro para conviver com aqueles com quem decidem intencionalmente partilhar o tempo de que dispõem. Estar sentado à mesa tem uma importância fulcral no quotidiano de grande parte das pessoas. Por isso, é um ato que não deve – não pode! – ser tratado com leviandade.

Mas estar sentado à mesa é muito mais que isso. É também uma forma de viajar, de nos transportar para lugares que nunca visitamos. Sentados à mesa damos por nós imersos no oceano com o sabor do mar a invadir-nos os sentidos quando provamos o primeiro nigiri de atum num restaurante no mercado de Kanazawa. Como se não bastasse, sem sair do sítio, só por nos sentarmos à mesa, podemos igualmente sentir o fresco de uma montanha, a norte de Takayama, enquanto colhemos os cogumelos que vamos usar na nossa próxima refeição. Tanto podemos imaginar-nos num pequeno restaurante em pleno centro de Ozaka quando nos deparamos com uma porção generosa de ramen, como somos instantaneamente transportados para um restaurante em madeira com não mais do que três mesas, em Shimokitazawa, quando temos diante de nós um katso curry a fumegar e à espera de ser devorado.

Se um dia ouvirem dizer que alguém não gosta de comer, de estar sentado á mesa, não acreditem. É mentira. Afinal de contas, haverá alguém que não goste de viajar?

Por João Barros

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