Escolhe a tua sensação – Rantepao (Tana Toraja)

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O mundo está cheio de lugares estranhos e há muitas razões pelas quais um lugar pode ser tão estranho assim. Desde particularidades geográficas a questões meteorológicas, à fauna e flora que ali se instalaram, há várias coisas que podem fazer com que um determinado lugar seja diferente de todos os outros. Para o bem ou para o mal. Não interessa.

Pense-se nos terraços com piscinas termais de Pamukkale, ou nos geysers da montanhosa Islândia que presenteiam quem os visita com repetidas doses de fedorento enxofre. Lagos cor-de-rosa formados na cratera de vulcões ou areia dessa mesma cor que domina uma praia paradisíaca, ambos em plena Indonésia. Ondas gigantes na Nazaré, montanhas coloridas, como se de arco-íris se tratassem, em cantos distantes do mundo, tanto em Zhangye Danxia na China como também em Vinicunca, no Peru. Ou até um lago salgado na Bolívia que reflete o céu na sua superfície de forma assustadoramente autêntica. Todos estes podem ser considerados lugares estranhos. Belos, únicos, não há dúvida disso. Mas também com a sua dose de estranheza, se assim se pode dizer.

Mas também há lugares que são estranhos não por influência da mãe Natureza, mas antes pelas tradições dos povos que os habitam. Quem melhor que o ser humano, com as suas peculiaridades – chamemos-lhes assim, para não dizer pior -, para contribuir para o quão estranho um lugar pode ser? Partamos deste pressuposto, de que um lugar pode ser estranho como resultado de quem o habita.

Agora imagine-se um lugar em que tudo o que acontece, tudo o que existe, está ligado à morte. Não um sítio perigoso, não é disso que estamos aqui a falar. Pelo contrário, um sítio pacífico mas que tem como particularidade que as pessoas que ali habitam organizam toda a sua vida em função da morte e daqueles que já não nos acompanham nesta vida. Um sítio em que se lida com a morte com um sorriso no rosto.

Um lugar em que todos os anos familiares mortos são retirados das suas campas para que quem por cá ficou possa com eles conversar, os limpar, vestir, para os mais novos membros da família os poderem conhecer e mesmo para uma ocasional selfie com eles tirar. Em que a chegada deste momento é mais aguardada por uma criança de sete anos que o Natal. Só que aqui não é dezembro, é agosto. E a prenda desejada não é um jogo nem um brinquedo, mas sim o poder olhar e conversar com o cadáver do nosso bisavô. Bizarro?

Um lugar em que o corpo de um defunto pode ficar numa das divisões da casa de um seu familiar durante anos enquanto a sua família reúne dinheiro para o seu funeral. Sim, porque num tal lugar, em que todo o dinheiro que as pessoas ganham durante a vida é poupado para ser investido no seu funeral, tal pode não chegar. É que este é um lugar em que um funeral, para além de durar três dias, tem como ponto alto presentear todos aqueles que ao mesmo comparecem com sacrifícios de búfalos vivos. Búfalos que, depois de golpeados na garganta, para regozijo dos presentes, passam a estar aptos a conduzir a alma do falecido ao paraíso. E não, não são uns búfalos quaisquer. Todos têm de ser diferentes, tanto na pigmentação da pele como no formato dos cornos, no seu tamanho, idade, por aí fora. Os mais valiosos? Os grandes búfalos albinos de olho claro que, vá-se lá entender a razão, para algumas pessoas custam o equivalente a uma vida inteira de trabalho. Estranho?

Um lugar em que caso pertençamos a uma família de classe superior, o que quer que isto queira dizer (como é que ainda hoje se fala em classes?), nos é permitido colocar uma estátua de madeira em tamanho real com as nossas feições em frente à nossa tomba. Uma estátua feita por encomenda por artesões locais como forma de representação de quem ali se encontra a repousar para a eternidade. Mas apenas e tão só se, no nosso funeral, tiverem sido sacrificados mais de vinte e quatro búfalos, um número mínimo de oferendas para uma família de respeito. Só nesse caso podemos ter uma estátua. Excêntrico?

Um lugar em que à entrada do funeral tanto é possível comprar balões para que as crianças os exponham alegremente até que um dos infinitos cigarros à solta pelo local os rebentem, como também tem de ser pago ao governo o imposto associado ao sacrifício de animais. Dos búfalos mas não só. Também dos porcos que, de pernas para o ar, chegam ao local amarrados a longas estacas de bambu seguradas pelos convidados do funeral, que com tal doação pretendem prestar as suas condolências à família de luto. Sim, como se uma tradição tribal se tratasse mas em pleno século XXI. Um lugar em que a primeira coisa que nos passa pela cabeça quando nos cruzamos com alguém é dizer ‘bom funeral’ não pode ser um lugar normal, certo?

Um lugar em que as crianças que morram antes de lhes terem crescido os dentes têm como sepultura um buraco escavado numa árvore, pela sua família, de forma a mais rapidamente alcançarem as portas do paraíso. Em que as lutas de galos equipados com lâminas nas suas patas são até á morte e assistidas por multidões que, freneticamente, apostam num vencedor. Em que tais lutas são toleradas pela polícia desde que subornada para o efeito, porque ‘só com o dinheiro que recebe do governo um polícia não consegue viver’. Singular?

Como se tudo isto não bastasse, um lugar em que, para além de haver um KFC para quem disso goste poder tirar a barriga de misérias, ainda se conduz do lado esquerdo, como nos países anglo-saxónicos. Extravagante…

Um lugar estranho assim, é possível imaginar-se? Não é sequer preciso. Esse lugar existe. Chama-se Tana Toraja e fica na ilha de Sulawesi, na Indonésia.

 

Por João Barros

 

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