O dia começa com uma estranha sensação de alguém a caminhar sobre nós. Acordamos e ouvimos passos algures acima da nossa cabeça, quase como se nos estivessem a pisar. Alguém no barco já acordou e anda pelo convés de um lado para o outro. Tenta andar de forma leve e silenciosa, mas não há volta a dar. Aqui, desde a cabine por debaixo do convés, nada passa despercebido.
A noite foi passada aí mesmo. Numa divisão pequena e abafada onde quatro pessoas, descansadas e derrotadas por um dia de mergulhos e passado ao sol, lutaram entre si num estado de sono profundo para ver quem esgotaria mais rapidamente o oxigénio que ainda restava. As janelas e a porta, essas ficaram abertas durante toda a noite e ajudaram a resolver o problema. Ninguém tentaria entrar por ali adentro e em alto mar não existem mosquitos, por isso não haveria nunca problemas de maior.
Acordamos com a mesma sensação de embalo com que adormecemos, patrocinada pela doce e leve ondulação do oceano, a qual perdurará cada vez que pisarmos terra novamente nos próximos dias. Sim, mesmo quando sairmos do barco sentir-nos-emos a balançar de um lado para o outro. Esquerda e direita, frente e trás, para cima e para baixo. Diz-se por aí que os músculos têm memória. Para quem disso duvida, fica o desafio de passar uns dias a bordo de um barco. No final tirarão as vossas próprias conclusões.
Colocamos a cabeça de fora da cabine. Ainda está tudo escuro. Vestimo-nos e preparamo-nos para ser levados num pequeno bote até à Ilha de Padar, onde seremos brindados com uma subida de quase trezentas escadas. Umas naturais, outras artificialmente criadas. No final de todo o esforço o nascer do dia criará uma tela pintada em tons de amarelo e laranja provenientes do sol que surge no inalcançável horizonte, combinada com o azul-turquesa da água do oceano que demarca essa mesma linha onde a vista se perde. É o Parque Nacional de Komodo a desejar-nos um bom dia, algo que aceitamos de bom grado.
Regressados ao barco inicia-se nova jornada até ao próximo ponto da viagem. O que esperar de um novo dia a bordo? Não sabemos. Mas o histórico do que foram os dias anteriores deixa-nos com água na boca. As expectativas são elevadas.
Refeições a seis numa mesa rebaixada, de pernas cruzadas, com porções generosas de arroz e vegetais para dividir entre todos. Golfinhos que nos vêm visitar quando menos esperamos e que harmoniosamente dançam em frente à proa enquanto avançamos destemidos contra o vento, rumo ao desconhecido. Mergulhos no mar desde o ponto mais elevado do barco, saltos sem fim para uma água de tons vivos inimagináveis. Sestas reparadoras na sombra do convés, o ritmado embalar das ondas a servir de tónico para os olhos se fecharem durante cerca de vinte minutos. Vinte a trinta, vá. Horas a fio de snorkeling na companhia de tartarugas, tubarões, raias, peixes e corais de todos os tamanhos, cores e feitios. As cores são tantas que chegam mesmo a fazer corar de vergonha o mais magnífico arco-íris alguma vez visto. Mas o melhor está para vir. Em pleno mar aberto, com a cabeça enfiada dentro de água, óculos em riste e com um tubo na boca que nos permite respirar o ar quente da superfície, um grupo de mantas aparece. Devem ser umas seis ou sete, cada uma com três a quatro metros de largura, que com a boca aberta nadam à superfície em fila indiana. Um carreiro ordenado que, quando nos salta à vista, faz esquecer as regras básicas do subaquático, fazendo-nos engolir água em quantidades elevadas de tão rebaixado que ficou o nosso queixo. Majestosas, quase assustadoras pelo seu tamanho, transmitem uma paz inexplicável àqueles que, como nós, se limitam a observá-las e adorá-las.
De volta ao barco deliciamo-nos com um pôr-do-sol em tons alaranjados e rosados que, pintado no horizonte, apenas é disturbado por milhares de morcegos que, diariamente, saem da sua gruta na Mangrove Island para procurar alimento e assim retirarem a sua barriga de misérias. Um cenário magnífico que faz da mãe natureza a vencedora incontestada do óscar de melhor cenário. E melhor atriz, melhor fotografia, melhor filme, melhor tudo. Já não há palavras que a possam descrever. Segue-se um alegre brinde com cervejas para todos os marujos, recompensa merecida depois de um tão agitado dia. Cantorias, batuques, assobios e risos às gargalhadas são a banda sonora de um tal momento. Depois do jantar, com uma única lâmpada acesa no convés, rodeados de uma escuridão e um silêncio ensurdecedores, jogamos às cartas até que alguém não consegue mais aguentar e deixa sair cá para fora os primeiros sinais de exaustão. Ei-lo, o primeiro bocejo.
O dia está a chegar ao fim. Para trás, mais que as memórias do que vivemos e sentimos, fica uma sensação de liberdade ilimitada pintada em tons azulados e esverdeados refletidos pelas águas solarengas que navegamos. Estamos todos cansados. A vida a bordo de um barco afinal cansa muito. Não sei porquê, nem o que é ao certo que tanto cansa, mas a verdade é que no final do dia todos estamos prontos para cair redondos, cada um na sua cama. O dia a bordo de um barco é mesmo assim. O que mais se pode desejar?
Por João Barros