Há palavras e expressões execráveis, capazes de nos causar doses elevadas de desconforto físico e emocional. Estou certo de que todos temos um conjunto delas que desejamos nunca ouvir. Dogma inquestionável (porra lá para as redundâncias escusadas), com a devida vénia (comum para quem faz a sua vida por entre tribunais e gabinetes de juízes), destarte, especulação imobiliária, informação privilegiada, zé-ninguém (quem é alguém para chamar zé-ninguém a outra pessoa?), justiça foi feita, se soubesse o que sei hoje, sempre se fez assim, dor de cotovelo, não sei o que te diga, tirar o cavalinho da chuva, ter o rei na barriga, abanar o capacete, dar uma queca (tantas formas poéticas existem para descrever o ato sexual, porquê reduzir tudo a uma queca?), farinha do mesmo saco, lavar a roupa suja, isso é que é vida, dar-se ao luxo. Estas são algumas das expressões que me deixam irrequieto, que me provocam um arrepio na espinha. Umas delas sou capaz de explicar porquê, as outras não. De qualquer das formas, não é esse o ponto.
Por outro lado, há expressões e palavras que onde quer que as ouça me fazem sorrir, me aquecem o coração ou refrescam o espírito, consoante o que esteja a precisar no momento. Plenitude, pensar para com os meus próprios botões, viagens pelo Sul, ondulação do mar, saudade, oh meu filho da puta (ode à minha tripa nortenha), grafonola, tudo a postos, logo se vê, laurear a pevide, não se pode ter sol na eira e chuva no nabal, abraço apertado, sorriso de orelha a orelha, por aí fora. Estas são palavras e expressões que são boas para mim e que me levam para um sítio feliz. Deixemo-las de parte. Lamentavelmente não é sobre elas que me vou debruçar.
De entre todas as infelizes expressões capazes de fazer eriçar cada um dos pêlos dos meus braços, uma das que melhor desempenha um tão (in)glório papel é denominador comum. Dê por onde der não gosto de ouvir nem usar a expressão denominador comum. Numa lamentável cavalgada rumo à redução à insignificância da individualidade das pessoas e das coisas, a qual tanta falta parece fazer a uma sociedade em que desde cedo somos convencidos a ser iguais a todos os outros, haver um ou mais denominadores comuns, refiram-se ao que quer que seja, não me enche as medidas. Cada vez que penso num denominador comum sou transportado para aulas de matemática na Escola EB 2 3 André Soares, em Braga, das quais apenas não podia fugir porta fora já que pendia constantemente sob os alunos a ameaça de uma falta disciplinar que podia dar aso a chatices, ou porque os rufias lá fora aguardavam pacientemente o surgimento de uma alma perdida a quem arrancar os trocos do bolso. Quando ouço tão malfadada expressão dou por mim ou na sala de aula da escola ou fechado numa sala de reuniões qualquer, num escritório do Porto, rodeado de advogados, economistas, contabilistas, estrategistas, consultores ou sabe-se lá mais quem – venha o diabo e escolha -, imerso numa vida profissional que faz já algum tempo decidi conscientemente abandonar. Por estas e por outras fartei-me de ouvir falar sobre denominadores comuns ao longo da minha juventude e vida adulta, e quiçá por essa razão não suporto a expressão. Imaginam o tormento?
Em todo o caso, a verdade é que depois de mais de duas semanas em pleno Rajastão, no noroeste da Índia, descobri finalmente um bom uso para dar à expressão. Não é que com isso pretenda retirar a individualidade ao que quer que seja, algo especialmente difícil num país tão singular e diversificado como a Índia. Não é disso que se trata. O que me parece fazer sentido sublinhar é que apesar das diferenças existentes entre todos os locais e pessoas que aí encontrei, e servindo-me das palavras cantadas com sotaque tripeiro pelo Rui Veloso, muito mais é o que as une do que aquilo que as separa.
Comecemos pelo óbvio. No Rajastão há uma quantidade considerável de locais cujos nomes terminam em –pur. Desde Jaipur, a Jodhpur, a Udaipur, não desconsiderando as menos conhecidas Bharatpur, Madhopur e Ranakpur, é inequívoco que a terminação –pur contribui para a existência de um denominador comum entre todos estes locais. Mas não só pelos nomes oficiais dos locais se ficam as semelhanças, já que as alcunhas Cidade Rosa, Cidade Azul, Cidade Branca e Cidade Dourada nos remetem para uma colorida aproximação entre muitas delas. Ainda assim, caso nos ficássemos por aqui estaríamos a cair numa falácia de denominadores comuns, já que cidades como Pushkar e Jaisalmer (a tal Cidade Dourada) poderiam injustificadamente ser excluídas de uma tal base comparatística que permite a sua aproximação às demais. Não, não nos fiquemos por aí. As semelhanças entre os vários locais do Rajastão não se ficam apenas pelos nomes que lhes são atribuídos. Há mais, muito mais, que permite afirmar que há um denominador comum entre todas elas e que vale a pena identificar.
Mais do que os seus nomes, e numa arrebatadora tendência para a uniformidade e harmonia, uma visita ao Rajastão brinda quem a leve a cabo com uma mão cheia de semelhanças indesmentíveis que unem cada um dos seus sítios sob uma improvável, mas existente, capa de denominadores comuns.
As cores que invadem o nosso campo de visão provenientes tanto das roupas das mulheres como das especiarias que em cada mercado de rua cheiramos, os portentosos bigodes que atravessam as caras dos homens que por entre as ruas estreitas passeiam descansadamente, os tuktuks velhos e sobrelotados que avançam destemidamente em contramão, as vacas a passear descansada e airosamente no meio da estrada, a beleza da arquitetura dos edifícios que nos remetem para as mil e uma noites que conhecemos da nossa infância, os sorrisos não solicitados – mas bem-vindos – das pessoas com quem nos cruzamos, a música local cantada por todos, dos oito aos oitenta, que sem pedir licença entra pelos nossos ouvidos dentro, os namaste e os namaskar acompanhados das palmas das mãos juntas em frente ao peito quando alguém nos vê pela primeira vez no dia, as doses infinitas de simpatia e disponibilidade dos transeuntes que se oferecem para indicar o caminho que queremos percorrer, os braços por cima do ombro em cada selfie que nos é solicitada, o calor que nos faz suar e pingar da testa de forma descontrolada, os sabores provenientes dos paneer butter masala, dos palak paneer, dos vegetais, dos caju curry, dos kofta vegetarianos, dos naan, dos chapatis, dos parantha e de todos os outros pães feitos na hora, todos eles capazes de fazer salivar o mais cético turista de um ponto de vista gastronómico, por aí fora. Tudo isto é possível ver, viver e sentir em qualquer sítio que por onde se passe no Rajastão.
Mas não só. Como o mundo e a vida não são apenas compostos por coisas boas, também o lixo deixado à deriva por toda a parte, o cheiro a fezes de animal e a urina humana, os ruídos ensurdecedores provenientes das milhares de buzinas que se atravessam à nossa frente em ruas aparentemente – mas só mesmo aparentemente – pedonais, a pobreza que espreita a cada canto e ainda o evidente desrespeito pelas mulheres e pelo seu papel na vida em sociedade, da qual são afastadas, apresentam-se como marca de água comum a lugares como Jaipur, Pushkar, Jodhpur e Jaisalmer. À semelhança das demais, também estas particularidades comuns a todos estes locais nos remetem para um todo que é aquilo que caracteriza o Rajastão, os seus locais e as suas pessoas.
Claro está que todos estes locais têm as suas diferenças e especificidades, as quais contribuem para que a sua individualidade não possa, de modo algum, ser posta em causa. Em qualquer caso, tais diferenças não substanciais antes parecem representar meros salpicos que acrescentam doses de singularidade àquelas que são as principais características que compõem o denominador comum dos vários locais que visitei no Rajastão.
Tudo visto e ponderado, e voltando ao início, não há dúvida que há expressões e palavras das quais não gostamos, que nos tiram do sério, mas com as quais temos necessariamente de conviver. Assim o impõe o respeito pelo inabalável princípio da liberdade de expressão, que faz com que tenhamos que nos aguentar à bronca em tais situações. Não há volta a dar.
Ainda assim, quando podermos retirar de algumas dessas expressões aquilo que de melhor achamos que nelas existe, dando-lhes um bom uso, a coisa parece não ser tão trágica assim. É o caso do denominador comum capaz de ser encontrado pelas terras do Rajastão e que doravante me fará sorrir quando tão hedionda expressão se voltar a cruzar no meu caminho.
Por João Barros