Esta é uma das grandes (in)decisões dos tempos recentes. Quanto mais não o seja para uma geração que, à imagem da minha, começa agora – ou já começou há uns tempos, vá – a sua vida adulta. Aqui vai: onde viver? O que escolher? A agitação da cidade ou a acalmia do campo? Ambas as opções têm os seus méritos e deméritos, vantagens e desvantagens, convenientes e inconvenientes, benesses e obstáculos. O difícil, claro está, é escolher uma delas. Aí é que está a chatice.
É certo que as cidades são barulhentas e podem ser poluídas. Nelas encontramos pessoas esquisitas, algumas carrancudas, e por todo o lado há odores estranhos que preferíamos evitar. Nas cidades é raro conhecermos os nossos vizinhos. Quando precisamos de sal, de um ovo ou de um saca-rolhas, o que quer que seja, depois das oito da noite, bem que estamos tramados e não temos muito para onde nos virar. Nas cidades é sempre tudo longe, precisamos de carro ou mota para tudo e mais alguma coisa, temos de pagar estacionamento em todo o lado – ou isso ou arriscamos multas que nem sempre acabam por chegar (talvez valha mesmo a pena arriscar). A alternativa apresenta-se-nos sob a forma de esperas intermináveis em transportes públicos atolados de pessoas e em que faz sempre demasiado calor. Não, muito obrigado. Nas cidades há sempre obras, os espaços verdes são reduzidos e há comércio por todo o lado, daquele que nada nos interessa. Tanto o meu querido Porto, por um lado, como Catmandu, onde hoje estas linhas hoje se escrevem, por outro, cabem perfeitamente numa tal descrição.
Mas nem sempre tudo é mau. Nas cidades, embora longe, tudo parece acessível e há muita coisa que está à mão de semear. A qualquer instante podemos ver e conhecer pessoas diferentes, desenferrujar o inglês ou o francês que há muito teimamos não praticar. Se nos apetece uma francesinha, o Bufete Fase está logo ali ao lado e não é preciso fazer todo um evento de uma simples refeição. Queremos ir ao cinema? O Trindade está sempre aberto e disponível para nos acolher. Os bares das Galerias de Paris, sempre prontos a contrariar quaisquer autoimpostas leis secas, nunca estiveram mais perto. O Maus Hábitos, o Ferro e o Passos Manuel mal podem esperar por nos brindar com os seus mais recentes concertos. Exposições em Serralves, jogos de basquetebol com estranhos em muitos dos campos espalhados pelas praças da cidade, copos de fim do dia de trabalho no Asa de Mosca, tardes a viajar por entre discos na Louie Louie, antiquários na Mártires da Liberdade, prateleiras repletas de livros, do chão ao teto, em pequenas livrarias à chegada a Carlos Alberto, venha o diabo e escolha. Há de tudo, para todos os gostos e feitios. Está tudo aqui, sempre, ao virar da esquina. Apenas resta escolher o que queremos fazer, o que com tanta opção, verdade seja dita, nem sempre é assim tão fácil.
No campo as coisas não são assim. Lá, onde estamos mais longe de tudo – e sobretudo de todos -, há que combater um tendencial isolamento que, dependendo daquilo de que nos queiramos a isolar, pode ser bem-vindo ou maldito. No campo estamos mais longe, queiramos ou não. Estamos menos à mão de tudo e todos, e tudo e todos menos à mão estão de nós também. Nem sempre há infraestruturas adequadas, é mais complicado estarmos diariamente com amigos e mais difícil ainda pode ser fazer alguns novos desses, se assim precisarmos. Os concertos, as exposições, as lojas, os restaurantes, as livrarias, os antiquários, os cafés, tudo isso, deixa de ser assim de tão fácil acesso. De repente, ir jantar algo especial ou deleitarmo-nos com pequenas doses de cultura, por mais pequenas que sejam, pode passar a ser um desafio. Pode ter de se fazer disso um plano, diga-se assim. Um lado menos bom de não viver onde tudo acontece.
Mas a verdade é que no campo nem tudo é tão mau assim. Nada que se pareça. Bem pelo contrário. No campo podemos aprender a andar de bicicleta na rua sem quaisquer preocupações – se já sabemos andar, podemos sempre ensinar quem disso precise e fica logo feita a boa ação do dia. Podemos deixar a porta e as janelas de casa abertas, todas escancaradas ou só destrancadas, sem que acordemos sobressaltados a meio da noite com receio que a nossa vida esteja prestes a chegar ao fim. No campo cumprimentamos toda a gente com um sorriso de orelha a orelha e de braço bem estendido acima da cabeça, num estado de forte e intenso abanico. Sabemos os nomes de todas as pessoas e todas as pessoas sabem o nosso. Desde a Dona Alberta ao Senhor José, sem esquecer a Teresinha do supermercado e o Vítor do café. Todos se conhecem e todos nos conhecem. Na porta da cozinha que dá para o jardim há uma porta mais pequenina, pintada de azul, por onde o nosso fiel companheiro de quatro patas pode entrar e sair à vontade quando se cansa de descansar na sua casota. Sim, aquela que está lá fora e que fomos nós que construímos e pintamos com as nossas próprias mãos.
No campo todas as casas têm lareiras antigas desenhadas na pedra e há sempre lenha acabada de cortar. Há uma horta, patrocinadora oficial de legumes na hora em cima da mesa – qual Uber Eats qual carapuça -, e um pomar colorido e perfumado no qual podemos colher e comer – também na hora! – a fruta que mais nos apetecer. Aquela fruta que sabemos de onde vem, ao contrário de quase toda a outra. O portão de casa fica sempre aberto para que o Senhor Joaquim, de quinze em quinze dias, possa passar com o seu trator para cortar a erva do campo de baixo e assim alimentar o seu gado. As chaves do carro ficam no próprio carro, organizam-se piqueniques em cima de toalhas aos quadrados vermelhos e brancos do início da primavera até final do outono. As manhãs são passadas no rio a nadar, as tardes à sombra de uma grande árvore a ler e depois a ressonar. Há o som dos pássaros, o cheiro a erva molhada e o trânsito automóvel é substituído pela ocasional manada ou rebanho que teimam em não sair do meio da estrada. Pelo menos até que uma ordem expressa vinda da boca do pastor, de cajado em riste, demova uma tal atitude de desafio. Era o que mais faltava.
Podia passar horas a elencar os prós e contras de cada uma destas opções. Listas de custos e benefícios, o que nelas há de bom e mau, hoje em dia não faltam técnicas que facilitam tomadas de decisão. Mas a verdade é que não preciso, já sei o que fazer. Bastaram quase dez meses a viajar, mas finalmente consegui perceber.
Por João Barros