Amar é dar o que não temos

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Jordânia, Campo de Zaatari, 14 de Julho de 2019

O calor veste o manto opulento da ubiquidade. É caprichoso. Uma jaula invisível que nos encarcera e nos faz almejar a todos os minutos uma sombra que se traduz num raro oásis. Destila-se paciência de forma a arrefecer o desespero. A resiliência ganha uma nova forma térmica, a aceitação.

Campo de Zaatari, 80.000 pessoas, onde cerca de 60.000 são residentes, o maior campo de refugiados no Oriente Médio, o segundo maior do mundo, recebe os grandes fluxos de refugiados sírios. Mais de metade da população são crianças, representando desafios relacionados ao restabelecimento da educação interrompida abruptamente pela guerra. Uma em cada três crianças não frequenta a escola.

Conseguimos entrar no campo, estávamos lá. As pessoas, a azáfama, as bicicletas, as lojas, o comércio, os salões de beleza, as padarias, os olhares, o pó, o odor, eram reais, tinham forma e cheiro, Zaatari é uma autêntica cidade, e nós estávamos lá.

Fomos recebidos na casa de uma família síria que vive no campo desde 2013, um agregado familiar de 4 pessoas, duas crianças de 1 e 4 anos.

A simplicidade, a vontade de agradar e a hospitalidade era uma constante perene. A casa era pequena, as divisórias eram lençóis, as paredes de zinco e a comodidade substituída por uma simpatia refastelada e alegria muito confortável.

-“São 15h, ainda há electricidade!” – Diziam eles com ânimo na voz.

Viraram a ventoinha para nós, queriam que nos livrássemos do calor que tínhamos agarrado ao corpo. Serviram-nos um copo de água de uma garrafa aberta à nossa frente. Ainda hoje volateia a dúvida sobre o terraço das minhas inquietudes se era para ter a confirmação de que a água era engarrafada. Aquelas observações supérfluas mas persistentes que ficam a pairar na cabeça à procura do seu espaço.

De bicicleta foram buscar um sumo de laranja e umas bolachas, mostravam-me que estavam boas através de gestos. Sentei-me com a alma no chão, estava rasa com um balão por encher. Repentinamente mas de forma envergonhada primos, o cunhado e dois amigos começaram a espreitar de soslaio pela porta entrando rapidamente para a casa aperfeiçoando a roda de calor humano.

Olhavam com curiosidade e atenção, queriam agradar e antecipar qualquer necessidade, e eu que só queria ficar ali a ouvir e a contemplar as suas narrativas.

– “Cristiano Ronaldo “– Sussurraram eles enquanto esticavam os lábios. O futebol é indubitavelmente um elo agregador.

Passaram-me o bebé para o colo. Chamava-se Sultan. Tinha apenas 1 ano de idade, nasceu em Zaatari. A irmã olhava envergonhada para todo este cenário com um olhar inquieto como se estivesse a ver um quadro que lhe causava alguma confusão. Escondia-se atrás da costas da mãe enquanto esta lhe dizia para se portar bem porque tinham visitas. O seu olhar era banhado pela inocência da idade acompanhado por uma dúvida persistente.

-“Leva-o para Portugal, vai ter uma vida melhor!” – Disse a mãe enquanto esboçava um sorriso.

Respondi-lhe mecanicamente que não podia emanando nas minhas palavras hesitação.

Os pais riam-se da situação de constrangimento alheio, estavam contentes por nos receber. Quiserem logo tirar fotografias e trocar números de telemóvel, diziam-nos que quando saíssem do campo podíamo-nos encontrar.

– “O mundo é pequeno, a guerra está quase a acabar! Agora não podemos voltar, Bashar al-Assad montou uma armadilha, disse que podíamos voltar e que estaríamos perdoados e que não seríamos perseguidos, que teríamos paz. Tive familiares que passaram a fronteira e nunca mais apareceram… mas tudo isto vai mudar um dia, temos fé!”

Remeti-me a um silêncio mineral. A religião ajuda a morrer mas também a viver. Só me conseguia lembrar das palavras de Anna Arendt em a Banalidade do Mal, seriam as pessoas terrivelmente normais? Não por profunda convicção ideológica mas sim pela incapacidade de pensar através do ponto de vista de outra pessoa… não sei.

Tentando mudar de assunto perguntei se queriam ir para a Europa, a resposta foi rápida:

– “Fazer o quê? Não temos lá ninguém, aqui estamos bem e seguros!“ – Retorquiu com prontidão enquanto a esposa aquiescia com as sobrancelhas arqueadas.

– “Tranquei a minha casa e tenho aqui as chaves comigo, vê? Todos os dias ligo para lá, ninguém atende, a nossa casa está à nossa espera, vamos atravessar aquelas montanhas outra vez e vou abrir a porta de minha casa com a minha família, eu sou sírio!” – Respondeu-me com esperança em cada sílaba, mesmo que não tivesse tradutor conseguia perceber a sua intenção pela veemência e revolta das suas palavras. A língua é apenas a fórmula pela qual nos expressamos, os sentimentos são perceptíveis à nossa intuição.

-“Fugimos da guerra e da morte, há momentos na vida em que a única escolha que temos é a vida, é a única coisa que nos resta, tudo o resto fica para trás!” – Dizia-me ele de forma plácida sem eu ter perguntado nada. Eu limitava-me apenas a acenar com a cabeça.

-“Termos conseguido chegar até aqui foi recuperar a liberdade e a segurança.” – Acrescentou.

Segurança e esperança foi a palavra que mais se repetiu no decorrer da nossa conversa, como se fosse um sino de uma igreja sempre a dar horas a todos os minutos. Mostrou-me uma nova definição de raça, não na sua concepção biológica. A que eu tinha era muito insípida e morna, esta era estonteante! Mostrou-me de uma forma calma e singela, conformista mas não resignada o significado de perder casa mas nunca a sua identidade, de perder terra mas nunca o sentimento de pertença, de perder o seu país mas nunca a sua nacionalidade. Tinha raça! Todos os que superam a adversidade, a dor, a frustração, o preconceito, o caos andam fora do padrão, são controlados por uma motivação inexplicável. A vida é um intervalo entre duas datas, mas a deles não, têm dois intervalos onde a resiliência venceu a contrariedade devido à grande capacidade de adaptabilidade.

Pairava uma esperança empoleirada na brisa tíbia que corria da ventoinha, um silêncio tácito e construtivo.

As crianças frequentavam escola, parte da família estava reunida, pois fugiram todos na mesma altura. Alguns familiares desapareceram. Sentiam-se seguros ali, têm electividade das 5h às 17h, têm água, recebem um rendimento mensal que lhes é atribuído conforme o número de filhos, estavam todos juntos, conseguiram fugir e isso era o mais importante. Dormiam à noite sem medo, juntos.

Nestes momentos recebemos sempre mais do que damos. Perguntaram-me se iria voltar um dia, eu disse que sim, mesmo sabendo que a imprevisibilidade do futuro nos amarra a sentimentos que nos curvam perante as situações, o que poderia eu dizer? Somos a média das cinco pessoas mais próximas de nós e aquelas pessoas eram uma equação de humildade e de força indescritíveis.

As viagens aproximam-nos de nós e das necessidades dos outros. Percebemos que esperar também é uma viagem, tal como ouvir, tiramos o pulso aos nossos sentimentos, começamos a decifra-los com mais clareza, a vida é vista com outra percepção, ficamos com um tato emocional mais apurado. Percebemos que todas as dores que nos invadem são didácticas, são dores que escorrem para a solidão, uma solidão criativa e libertadora com efeito lenitivo. Deixamos de ser meros repetidores de dados, começamos a mudar o algoritmo e percebemos que a verdadeira felicidade nasce no solo da generosidade. Fica sempre um pouco de perfume nas mãos de quem deu uma rosa.

O mundo não está a mudar, ele sempre girou, a rotação da Terra nunca parou. O que não pode perder movimento é a solidariedade e a responsabilidade. Parafraseando Papa Francisco, a resposta ao desafio colocado pelas migrações contemporâneas pode-se resumir em quatro verbos: acolher, proteger, promover e integrar. É urgente demorarmo-nos na solidariedade, não sermos séquitos da globalização da indiferença, do estigma, do preconceito. É urgente olharmos para o lado, lermos os sinais do tempo, é o futuro de todos. “Vemos, ouvimos e lemos, não podemos ignorar”.

Amar é dar o que não temos!

Por Regina de Azevedo Pinto

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