Afonso Reis Cabral

3817 views

“Hoje nasceu um escritor”. A frase, que tem anos, é do pai e não podia ser mais premonitória. Afonso Reis Cabral, 29 anos, licenciado e mestre em Estudos Portugueses pela Universidade Nova de Lisboa, pós-graduado em Escrita de Ficção, revisor e editor, publicou o primeiro livro, “Condensação”, aos 15 anos, uma compilação de poemas que começara a escrever aos 9, inspirado pela morte de Amália Rodrigues. Aos 21, aventurou-se no primeiro romance, “O Meu Irmão”, tarde, como nos confidencia, afinal de contas já escrevia há 13 anos, com que arrebatou o mais importante prémio literário português – o Prémio LeYa. O livro, de uma surpreendente maturidade literária, descreve a relação de dois irmãos, um deles, Miguel, com Síndrome de Down, na “viúva que é o interior de Portugal”. O tema, que, por razões familiares lhe é próximo, apesar de sensível, é tratado sem sentimentalismos e, algumas vezes, de forma brutal, “obrigando a um investimento numa leitura que nos confronta com a dificuldade de um mundo impiedoso”, como pode ler-se na nota do júri que o escolheu por unanimidade.

Em 2016, inspirado no Caso Gisberta, decide interromper a escrita de um segundo livro que não estava a correr muito bem, para se embrenhar nos meandros de um caso que chocara o país. Nascia “Pão de Açúcar”, o seu segundo romance.

Afonso Reis Cabral, que por acaso, ou talvez não, é trineto de Eça de Queiroz, conversou com a Bica no Jardim da Parada, em Campo de Ourique, sobre a escrita, a edição e a sua paixão pelos livros, que como escreveu, “cheiram, sobretudo, a sussurro. Sussurro de onde sai uma réstia de vento que é um verdadeiro vendaval”.

 

Como é que surgiu a ideia transformares o Caso Gisberta numa obra de ficção?

Depois de “O Meu Irmão”, comecei outro livro que não estava realmente a correr bem. Estava com avanços e recuos e, de facto, percebi que o livro não ia nascer brevemente. Por acaso, li online uma reportagem da Catarina Marques Rodrigues, que na altura estava no Observador e agora está na RTP, muito completa sobre Caso Gisberta. Foi em Fevereiro de 2016, fazia 2 anos sobre o caso e, aliás, era a relembrar o ocorrido.

Ao ler essa reportagem soube, imediatamente, que aquela história, ou aquele caso, seria a base para o meu segundo romance. Eu estava predisposto a encontrar um mote, uma linha condutora para o segundo livro, mas foi um acaso, até porque não eram realidades a que eu prestasse muita atenção. Lembrava-me vagamente do Caso Gisberta. Tinha 16 anos, na altura, a idade de um dos rapazes mais velhos e vivia no Porto e lembro-me do caso me chocar como a muitos portugueses, mas depois ficou mais ou menos esquecido, só com essa reportagem é que decidi escrever sobre ele.

 

E foste para o Porto investigar…

Eu trabalho em Lisboa e vivo cá há 10 anos e, justamente porque aquela realidade me era muito estranha, no sentido de distante, era preciso conhecê-la. Não só o caso em si, como os intervenientes, amigos da Gisberta, os locais que a Gisberta frequentava, bares, ruas e o próprio “Pão de Açúcar”. No espaço de um ano comecei a investigar, não propriamente para fazer um relato do caso, mas para “beber” aquela realidade e conseguir transformá-la em ficção, de outra maneira seria muito mais complicado. Por isso, durante um ano, sempre que ia ao Porto, fazia investigação. Isto aconteceu entre 2016 e 2017, e nesse ano, depois de várias tentativas de abordar o caso, descobri a história ficcional na história real. Descobri a minha história. A partir daí tinha tudo definido, a estrutura, as personagens, os capítulos…

E a opção pelo Rafa como narrador?

Não, não. Essa opção de o Rafa ser o narrador, não. Mas toda a estrutura, todos os momentos importantes, uma descrição de capítulo a capítulo, estavam prontas. Mas, no começo, também não estava a correr bem e só no início do ano passado, já dedicado só à escrita, porque saí do trabalho onde estava na Editora Presença, só aí é que, já com a voz do Rafa, o livro fluiu a sério. O resto é a escrita diária, 8 a 9 horas por dia até o livro estar feito.

Essa opção dificultou a tua escrita, por retratar uma realidade que não te era próxima?

Bem, nessa fase, já tinha uma vivência dos locais, pela investigação, por isso, já me sentia capaz de retratar uma realidade que não era a minha. Comecei o romance na terceira pessoa e não correu bem, achava que a escrita não fluía e quando fluía não era como eu queria, portanto, tinha que escrever na primeira pessoa e pareceu-me que a melhor opção era fazê-lo através da voz de uma personagem inspirada nos acontecimentos. Achei que, aí sim, podia haver literatura a sério. O facto de ter optado pela voz do Rafa foi determinante e ajudou à minha escrita e, claro, fez com que a narrativa fosse mais visceral.

Mas ao mesmo tempo muito poética.

Eu não gosto muito da escrita propriamente poética, isso não me interessa, o que gosto é de conseguir momentos ou imagens que tenham, talvez, uma força poética. Mas não me agrada muito a ideia de uma escrita poética, que acho que não é minha.

A verdade é que essas imagens poéticas são uma constante ao longo do livro. O próprio Rafa, uma personagem associada a um evento brutal, tem uma aura quase poética, que acaba por atenuar a perversidade da sua participação no assassinato da Gisberta. Esta “humanização” do Rafa foi intencional?

Acho que foi, mais ou menos, natural, embora também tenha sido intencional, no sentido de eu querer descobrir a humanidade das personagens, ou seja, queria que elas fossem completas, no mau e no bom. Convém não esquecer que estamos sempre a falar de ficção. Não me interessa falar do caso real e nem poderia fazer conjecturas. O que está lá é literatura e a literatura abarca tudo que é humano.

Foi-te difícil mergulhar nesse Porto desconhecido e escrever sobre ele? Porque em “O Meu Irmão” relatas uma vivência que te é muito próxima, muito familiar.

Ainda assim, de certa maneira, o “O Meu Irmão” teve uma dificuldade acrescida, que foi a de conseguir um narrador que fosse muito distante de mim. Por aquela realidade me ser próxima, justamente, porque a conheço, era importante distanciar-me dela e passar a ser literatura. Neste caso, do “Pão de Açúcar”, a partir do momento em que a investigação estava feita e toda a estrutura montada, não foi difícil. Foi difícil conseguir a voz do Rafa, mas a partir do momento em que a voz do Rafa estava encontrada, a bitola era sempre a dele e aí tornou-se fácil. A partir daí passei a tentar fazer literatura.

E o que é fazer literatura?

Isso agora (risos)… É escrever. Simplesmente escrever. (Silêncio prolongado). Para mim é descobrir o outro. (Silêncio). É muito difícil responder.

Como é que te surgiu a vontade de escrever?

Escrevo desde os nove anos e lembro-me bem de começar a escrever e das circunstâncias em que isso aconteceu. Foi por ocasião da morte da Amália. A morte da Amália fez com que a fadista fosse muito falada e, pelo menos na minha memória, pareceram semanas e semanas de Amália e de Amália a cantar os poetas, e isso despertou em mim a vontade de escrever. Comecei pela poesia. A partir daí, deixou de ser uma escolha para passar a ser uma característica, uma faceta essencial da minha vida.

Portanto, a partir dos 9 anos, as tuas opções foram sempre tomadas em função dessa decisão.

Sim, sim em função da certeza de que aquilo me fazia feliz e infeliz, ao mesmo tempo, mas tinha de ser cumprido, era a minha vocação, é o que gosto de fazer.

É preciso uma certa dose de infelicidade para se escrever bem?

Acho que sim. Sim, sem dúvida.

A ideia de que o sofrimento é bom para a escrita, é verdadeira?

Sofrimento na escrita, que espero não contagie a vida, é preciso.

Se olharmos para os grandes escritores eu diria que contagia um bocadinho…

(Risos). Contagia sem dúvida, mas o estado mental da escrita e do momento da escrita é muito particular e eu consigo, de certa maneira, localizá-lo. No entanto, nos pontos altos da escrita, em que o romance está a avançar muito bem, isso contagia a vida e de que maneira (risos).

Em 2014 ganhaste o Prémio Leya com “O Meu Irmão”. Na altura o júri ficou muito surpreendido pelo facto de um livro tão intenso ter sido escrito por alguém tão jovem…

…eu próprio, na altura, fiquei surpreendido com as reacções. Talvez hoje em dia olhe para trás, já passaram quatro anos, e reconheça nessa surpresa um certo traço de imaturidade, sobretudo, no contexto do prémio. Mas, de facto, eu já escrevia há 13 anos, e, de certa maneira, achava que começar a escrever um romance aos 21 anos, para mim, já era tarde (risos) e não estou a dizer isto com nenhum traço de soberba, simplesmente estou a constactar um facto.

Mas essa questão da idade é exponenciada, hoje em dia, por uma espécie de maioridade intelectual atrasada, ou seja, hoje achamos que até aos 50 anos é tudo jovem, não temos sequer tempo para ser adultos, simplesmente, somos jovens até aos 50 anos. E depois passamos a quê? Não consigo perceber isso. Acho que há determinados momentos em que a idade deixa de ser um factor, se estamos perante um livro, interessa lá a idade do autor.

O facto de teres ganho o Prémio Leya com “O Meu Irmão” representou uma mudança na tua vida? Permitiu que te dedicasses exclusivamente à escrita?

No último ano tenho-me dedicado quase exclusivamente à escrita. Trabalho também como editor para a Imprensa Nacional, mas em regime freelancer, em casa, e, como é evidente, ajudou a que pudesse dedicar-me quase exclusivamente à escrita. Porém, o que sinto que tenha mudado mais, é a segurança que tenho, em saber que posso publicar. Isso é um conforto. De resto, talvez me dê mais responsabilidade. Sobretudo dá mais trabalho (risos).

Quando inicias um romance tens alguma metodologia de trabalho pré-definida?

Mais ou menos. No “Pão de Açúcar” defini uma estrutura à priori. Tinha toda a estrutura montada, os momentos chave do livro, a interacção das personagens, as datas, tudo, num esboço de onze páginas em que podia confiar para escrever, de tal forma que houve momentos em que determinados capítulos não estavam a correr bem, parei, e escrevi 20 capítulos à frente. No fundo, o livro já estava feito, faltava era escrevê-lo. Com “O Meu Irmão”, foi uma escrita muito diferente, em circunstâncias muito diferentes. Enquanto no caso de “Pão de Açúcar” pude dedicar várias horas por dia ao livro, em “O Meu Irmão” estava a acabar o mestrado, tinha uma bolsa de investigação, tinha um part-time e o tempo era pouco. Comecei a escrever em 2001 e, na fase final, estava envolvido com estas coisas todas e o livro, inevitavelmente, sofreu com isso. A ideia de concorrer ao Prémio Leya surge nesse contexto, para me obrigar a acabá-lo. No início da escrita não houve plano nenhum, tinha, simplesmente, as linhas orientadoras na minha cabeça e avancei. De meio para a frente, senti a necessidade de fazer um esquema bem montado. Dá muita segurança, dá a segurança de olhar de fora para o livro e de saber que existe um fio condutor. Mas não é garantidamente uma metodologia de trabalho.

Agora já estou a escrever outro romance e estou a tentar escrever sem ter um esquema montado e sinto que isso me está a prejudicar, mas vamos ver se consigo dar a volta. Para já, como não tenho esquema, não me parece que esteja a correr muito bem (risos). Não sei se é superstição. Há muitas superstições que se vão criando na escrita (risos). Mas, também não me preocupa, propriamente, definir uma metodologia. Sei que gosto de narradores na primeira pessoa, de narradores não fiáveis, sei que gosto de circunstâncias extremas, acho que é aí que as personagens se definem e que a escrita cresce mais. Mais do que isto não sei. Acho que cada livro é um livro e apercebi-me nestes dois, que embora eu seja o mesmo, os livros são tão diferentes que não faz sentido pensar numa lógica de conjunto. Talvez faça para o leitor.

Imagino que, para quem aos 9 anos decide ser escritor, o sucesso dos teus dois primeiros livros não tenha sido motivo de surpresa.

Para mim o que é importante pensar é no sucesso da escrita, no livro em si, no acto de escrever, tudo o resto é um bónus. Agora, outro género de resposta, eu quando acabei “O Meu Irmão” fiquei surpreendido por ter conseguido e no caso de “Pão de Açúcar” ainda mais, porque a escrita é uma espécie de equilíbrio entre a insegurança, que é muita, e a segurança de lidar com a insegurança, e conseguir manter esse equilíbrio até ao fim de um livro, é algo que me surpreende e que não depende só de mim, é algo de misterioso.

E exige esforço?

Sim, um esforço tremendo.

Que passa por?

Passa por trabalho diário e por uma insegurança que é transversal. Penso que essa insegurança ajuda à escrita. Assumir que está tudo errado ajuda a melhorar.

A angústia permanente da imperfeição.

A escrita é uma imperfeição adquirida, mas, a certa altura, temos que acabar, senão damos em malucos (risos).

A leitura é muito importante para a tua escrita?

Para mim e para qualquer escritor. Quem não lê muito, não escreve nada. Não tenho dúvidas nenhumas em relação a isso. Existe uma correlação. É absolutamente impossível escrever sem ler obsessivamente, uma coisa vai com a outra e desde que comecei a escrever que leio na mesma razão em que escrevo.

Que escritor ou escritores mais te influenciaram?

Essa é uma de resposta complexa, porque assume que eu tenha uma estrutura de leituras à qual, obrigatoriamente, vou beber. É muito complicado responder, porque, muitas vezes, leituras insuspeitas ajudam muito mais do que leituras que se diriam determinantes. Dito isto, um autor muito marcante, e que tem sido recorridamente marcante para mim, é o John Steinbeck, não só na ficção, nas suas duas grandes obras, “As Vinhas da Ira” e “A Leste do Paraíso”, como também na correspondência e num diário, que acho extraordinário, que ele manteve enquanto escrevia as “As Vinhas da Ira”. O Steinbeck escreveu este livro em 6 meses e durante esse período escreveu um diário sobre a escrita das “Vinhas da Ira” e é um diário a que volto muitas vezes, porque me ajuda a escrever e a saber interpretar os estados de humor em relação à escrita, portanto é um autor determinante para mim.

Já estás a trabalhar noutro romance?

Estou. Ainda nos inícios e os inícios ainda não estão como quero (risos). Estará quando estiver. Eu defino alguns prazos e defino algumas metas, mas não quero com isso prejudicar a escrita.

Como editor, como olhas para o actual momento do meio editorial?

Tenho reparado que se lê cada vez menos literatura, em Portugal; que se está a herdar uma certa distinção entre ficção e literatura, que vem dos Estados Unidos e que, embora diga isto por instinto, a não ficção tem crescido. Por outro lado temos assistido ao aparecimento de produtos que nascem nas redes sociais e depois resultam em livro, “youtubers”, para além de outros autores, e no fundo são produtos feitos nas redes sociais que já têm uma base de aderência e depois saltam para livro o que não deixa de ser curioso do ponto de vista editorial.

Cada vez há menos cuidado com a escrita?

Não sei. Cada vez se escreve mais e quanto mais se escreve…

Não notas uma maior falta de cuidado com a revisão, sobretudo na imprensa?

Sim, isso sem dúvida. Nos jornais cada vez se escreve pior e, sobretudo, nas peças que são feitas online, muitas das quais são traduzidas do inglês, a qualidade do português é extraordinariamente má. No papel há um bocado mais de cuidado, mas a revisão é muitas vezes posta de parte o que é assombroso.

A verdade é que cada vez se lê menos em papel. Como é que isso se pode inverter?

Sei lá (risos), não faço ideia. É uma luta inglória. Acho que se tem muito a ilusão de que se lê e esta ilusão vem do facto de se lerem os cabeçalhos dos jornais, o feed do facebook, de se ler transversalmente. Na verdade, lê-se muito pouco. Mas não é só cá, por exemplo, em França perderam-se 10 milhões de leitores ou de leituras, na Alemanha a mesma coisa, é impressionante.

Achas que a escola devia desempenhar um papel mais activo no incentivo do gosto pela leitura e pela escrita?

A escola ajuda e complementa, mas se não há em casa esse incentivo, a escola não consegue fazer muito mais do que o que faz. Os alunos, em particular, não fazem ideia do que estão a perder por não lerem e isso poderia ser uma pedra de toque para a própria escola os tentar aliciar a ler. É difícil abrir os olhos a terceiros, obrigar a, mas se percebessem que a leitura é uma descoberta de experiências de vida, de alegria, de entusiasmo, de viagem, de entretenimento, se os alunos fossem incentivados a perceber isso, mais do que serem obrigados a ler, talvez funcionasse. Mas a concorrência à leitura é terrível: séries, plataformas, redes sociais…

O que é que te dá mais gozo na escrita?

Aqueles momentos, relativamente raros, em que parece que tudo corre bem. Podem ser 15, 20 minutos, 1, 2 horas, em que parece que escrever não exige esforço. É uma ilusão, mas é uma bela ilusão. No dia seguinte, ao reescrever ou a reler é que essa ilusão se quebra, mas ainda assim, são momentos quase de felicidade na escrita. São poucos, mas valem bem a pena.

Com 29 anos, qual é a tua ambição enquanto escritor?

A única ambição possível é o próximo livro e isso, pode parecer pouco, mas é uma grande jornada.

 

Este site utiliza cookies para permitir uma melhor experiência por parte do utilizador. Ao navegar no site estará a consentir a sua utilização. Mais informação

Se não pretender usar cookies, por favor altere as definições do seu browser.

Fechar