Sinto que não é a primeira vez que o digo, mas há dois tipos de pessoas no mundo: as que acordam cedo, por um lado, e as que gostam de gastar a luz do dia enquanto ficam na cama, por outro. Está bom de ver que tipo de pessoa sou.
Quando se pensa na sua quietude, na luz vespertina que entra pelas janelas entreabertas e que suavemente nos deseja um bom dia, não há como não gostar das manhãs. De pijama ainda vestido basta-nos um café acabado de fazer, o som dos pássaros, o ar fresco da montanha e a perspetiva de um novo dia para que a boa disposição seja a primeira visita que recebemos. Depois do pequeno-almoço podemos voltar para a cama, ler um livro ou ouvir música. Ou podemos adormecer novamente para de seguida acordar rejuvenescidos com a luz do sol a aquecer-nos o rosto. Pode ser uma opinião controversa, posso bem vir a arrepender-me do que estou prestes a afirmar, mas aqui vai: não há nada como uma manhã bem passada. Tenho dito.
Ainda assim, por muito que se goste das manhãs, ninguém é louco o suficiente para pôr o despertador para as 3h30 da manhã, certo? Desconsiderando idas para o aeroporto, o que é que pode levar alguém, por sua livre e espontânea vontade, antes de adormecer, a decidir que a última coisa que quer fazer no dia é perspetivar que irá acordar às 3h30? A essa hora em que ainda não há outra fonte de luz senão a do luar e das estrelas que se espalham pelo céu escuro numa noite desnublada? Verão ou inverno, não interessa, é certo e sabido que para além dos limites do cobertor ou do lençol que nos abrigaram durante a noite nos esperam doses de desconforto elevadas. Os olhos vão teimar em não abrir. O cérebro ver-se-á a mãos com novas informações por processar. Sabemos que, por mais cedo que tenhamos adormecido, irá sempre custar pôr um pé fora da cama. Por que raio, então, haverá gente que programa o despertador para tão cedo? O que é que passa pela cabeça das pessoas?
Estas eram dúvidas que me assolavam até há uns dias atrás e desde há muito tempo. Dúvidas que sempre ali estiveram, no meu (sub)consciente. Inquietações que me assolavam até à altura em que, por minha livre e espontânea vontade, também eu dei por mim a programar o despertador para as 3h30. As voltas que a vida dá, imagine-se. Sim, é verdade, um dia destes a última coisa que fiz antes de fechar os olhos foi, precisamente, pôr o despertador para as 3h30 do dia seguinte. Por minha vontade até seria mais cedo, mas o olhar de súplica de quem me acompanhou numa tal loucura fez-me repensar a opção. ‘Acordar às 3h30 está bom, temos muito tempo!’, convenci-me já com o cobertor a tapar-me desde os pés até ao cimo do pescoço, bem sabendo que uns dias antes jamais esperaria que tais palavras saíssem da minha boca.
O que leva alguém a fazer isto? A resposta é simples. Na verdade, não sei como nem sequer pensei nisto antes. Acordar às 3h30, neste dia, era imprescindível. De outra forma, como seria possível ver o nascer do sol iluminar progressivamente o Monte Bromo, em Cemoro Lawang, longe das multidões que invadem diariamente as colinas viradas diretamente para a cratera do vulcão? Como poderíamos deixar-nos embeber pelo sentimento que apenas o nascer do sol pode proporcionar, de que está prestes a chegar um novo dia, de que o futuro reserva experiências e coisas novas por descobrir, se não estivéssemos a pé a essa hora?
Pensando bem, só acordando às 3h30 foi possível vestir a roupa mais quente que, durante um ano, carregamos precisamente para este tipo de ocasiões. Só acordando tão cedo foi possível encher as garrafas de água, posicionar as lanternas presas por um elástico à volta das testas e ganhar coragem para colocar pés ao caminho rumo à colina mais próxima. Afinal de contas, pernoitamos aqui precisamente para podermos fazer tudo isto a pé e por nossa conta. Com cerca de uma hora de caminhada íngreme pela frente, se queremos assistir ao nascer do sol todos os minutos são preciosos. Na mochila carregamos o pequeno-almoço com que nos deliciaremos no intervalo de tempo que medeia entre a chegada ao local onde nos vamos instalar e o aparecimento do primeiro raio de sol. Foi também por isso que o despertador tocou às 3h30. Para que possamos assistir a todo o espetáculo que o local tem para oferecer sem ruídos incómodos provenientes de uma barriga a dar horas, numa audível e justificada manifestação.
Só acordando às 3h30 foi possível encontrar um caminho de cabras perdido numa colina através do qual à luz das estrelas, entregues ao silêncio da noite, depois de subidas abruptas e uma dúzia de passos em falso, chegamos ao nosso destino. Um sítio em que, apenas e tão só na nossa própria companhia, rodeados por densa vegetação, contemplamos o espetáculo presenteado pelas primeiras partículas de luz do dia. Uma reminiscência de claridade que timidamente deu vida a um oceano de neblina que diariamente surge apenas com o propósito de, tal qual a cortina vermelha num espetáculo da Broadway, lentamente dar a descobrir ao público um deserto de cinza arrepiante que, descansado, dormiu sob a bruma da noite. Apenas acordando tão cedo foi possível ver, com os nossos próprios olhos, o céu pintado em tons de rosa, como quem cora timidamente quando se apercebe da quantidade de olhos que tem sobre si. Se o despertador não tivesse tocado às 3h30 não teríamos tido a respiração cortada quando nos apercebemos que aquilo que observávamos não era, na verdade, uma tela pintada, mas antes a mais pura realidade estendendo-nos a mão rumo a um mundo em que constatamos ser possível sonhar acordados.
Valeu a pena acordar tão cedo? Àquela hora em que não se devia estar já a pé, em que apenas é admitido o ainda acordado? Será que o desconcerto do sono nos dias que se avizinham, à semelhança dos efeitos de um jetlag sentido por quem acaba de atravessar meio mundo, justifica tudo isto?
Não me cabe a mim privar ninguém do processo que começa pelo duvidar, que passa depois para o avançar, e que termina pela descoberta, ou não, da merecida recompensa… Ainda assim, se de mim dependesse, voltaria a acordar às 3h30. Sim, acordaria a essa hora as vezes que fossem necessárias. A única condição? Viver novamente aquilo que naquela manhã de nevoeiro vivi.
Por João Barros