Uns dominam-na mais que outros. Os italianos criaram inclusivamente um termo para ela – não é possível ouvir dolce far niente sem imediatamente imaginar uma mão naquela posição muito italiana a acompanhar, não é verdade? Esta é uma arte que não se treina, é inata. Todos sabemos um pouco sobre ela, sim, mas nem todos temos o atrevimento necessário para com ela nos familiarizarmos na dose certa. Muitos dão-lhe uma oportunidade num domingo ao final da tarde. Em qualquer caso, há sempre margem de escolha. Não interessa o ‘quando’ nem o ‘onde’. Apenas interessa o que não fazer com o tempo que nos é dado num determinado momento.
Claro que o dia poderia ser aproveitado para aquilo que sempre nos queixamos nunca ter tempo para fazer. Planear as férias que se aproximam a passos largos, desenferrujar as cordas da guitarra que há tempo a mais está encostada a um canto da sala, escrever aquele conto há muito preso na ponta da caneta pousada por aí. Aqui em Kuala Lumpur poderia ser utilizado para visitar um, ou mais, dos muitos pontos turísticos – ou não, já que tento sempre fugir destes – que a cidade tempo para oferecer. Mas não é disso que se trata este dia. Ele existe, precisamente, para não ser aproveitado. O tempo passará sem que disso dêmos conta e mais cedo que tarde escurecerá. Nenhuma tarefa ficará concluída e ainda assim o final do dia virá acompanhado por níveis de cansaço nunca até então registados. Porque será que, quanto menos fazemos, menos queremos fazer?
Sair de casa esteve sempre fora de questão. O sítio que nos acolherá há muito estava definido. Dedicar-nos-emos com afinco àquele canto do sofá que conhece, de cor, a forma da nossa preguiça. A liberdade de movimento que concedemos a nós próprios bastar-se-á pela viagem patrocinada por aquele livro que vai a meio e que nos levará a visitar sítios a muitos quilómetros de distância, há muitos anos atrás. Ou por um daqueles filmes que, pelo menos uma vez por ano, nos levam até à Terra Média, ou quiçá a visitar um planeta situado numa Galáxia muito, muito distante. Há lá melhor forma de viajar que esta, sem sair do conforto forrado a almofadas que nos pertence a nós e só a nós?
Sem dó nem piedade, e sem que nada o faça antever, o final do dia aproximar-se-á. Juntamente com ele chegará a altura de preparar um banho. Não um banho qualquer. Um daqueles com espuma e bolhas suficientes para toldar a visão ao ponto de conseguirmos evitar lidar de frente com a ideia de um dia que, sem ter passado, se aproxima já do seu final. A água sai de rompante da torneira, o espelho embaciado deixa rapidamente de retribuir um rosto aborrecido. Livramo-nos do conforto da roupa que não chegou sequer a ser trocada e, já nus, dentro da banheira a transbordar, percebemos que tudo não passou de um erro. A ideia deste tipo de banho funciona sempre melhor que o banho propriamente dito. Afinal de contas, quem é que gosta de boiar na sua própria imundice, por entre um calor que dificulta a respiração, com os dedos enrugados não pela idade mas pela frustração de um dia desperdiçado sem nada para fazer?
Desistidos de sentir na nossa pele despida a água a arrefecer, vestimos o roupão. Numa rápida passagem pela cozinha, respeitando a nossa vez de lá entrar, servimo-nos de um jantar improvisado. Uma sande com os restos da carne assada do almoço e um copo de vinho da garrafa de Trinca Bolotas que, incredulamente, já quase chegou ao fim. Voltamos ao sofá. Na televisão longínqua passam os créditos do filme que, há umas horas, julgámos ser boa ideia rever. Com o cabelo ainda molhado – afinal o banho trouxe-nos pelo menos uma coisa boa -, e desde o conforto do sofá, olhamos pela janela e, com um sorriso silencioso nos lábios, suspiramos.
O dia está prestes a terminar. Este dia que ainda não acabou, é certo, mas que ao mesmo tempo parece nem sequer ter começado. Com os olhos já fechados, abstraídos de qualquer preocupação, dizemos a nós próprios aquilo que há muito sabíamos. Que se pudéssemos escolher faríamos tudo exatamente da mesma forma.
É esta a dose certa de familiaridade que todos desejamos alcançar com a sublime arte de um dia sem nada para fazer.
Por João Barros