Esta não é uma mentira qualquer. É uma daquelas que nos contam desde pequenos, é certo, mas que ao contrário de todas as outras não tem perna curta. Bem pelo contrário. Reza o ditado que mais depressa se apanha um mentiroso que um coxo. Não tenho a certeza que assim seja. Em todo o caso, quanto a esta mentira em particular a careca foi-lhe descoberta. E a partir de agora não é mais possível escondê-la.
Desde que tenho memória que ouço por aí dizer que ser alto é um atributo, uma qualidade. É algo bom. ‘Que grande é!’, ouvem todos os pais quando começam a receber as primeiras visitas depois da vinda ao mundo dos seus rebentos. ‘Que grande estás, rapaz!’, começamos a ouvir à medida que adquirimos capacidade de compreensão linguística. Do alto do meu metro e oitenta e sete posso afirmar, com segurança, que onde nasci e cresci ser alto tem inúmeras vantagens.
Coloque-se de parte o facto de os mais altos passarem a infância e adolescência a fazer favores a quem não alcança aquela prateleira, ou àqueles que não chegam lá acima para limpar o pó. Desconsiderando esses míseros fatores, não há dúvida de que ser alto é bom. Desde cedo podemos ficar nas filas de trás nas salas de aula, longe do olhar atento dos professores, armando todas as malandrices de que nos conseguimos lembrar. Porquê? Porque se à frente nenhum dos colegas de turma poderia ver nada para o quadro escuro, nem tão pouco perceber o que nele o professor escreveu com aquele giz poeirento que hoje em dia caiu um desuso. Capazes de ter bons desempenhos em desportos usualmente reservados aos mais altos – andebol, basquetebol, voleibol, entre outros -, geralmente mantemos condições para sermos razoáveis em todos os demais. Nunca deixamos de ter vista direta para o palco nos concertos, independentemente das horas a que cheguemos, porque, verdade seja dita, não é fácil toldar-se-nos a visão. No cinema nunca deixamos de ver a parte de baixo do ecrã, independentemente do quão alto ou cabeçudo possa o vizinho da frente ser – ou do penteado extravagante que possa ter. O dia em que, em frente ao espelho, percebemos que ultrapassamos, em altura, cada um dos nossos pais, é motivo de festejo e alegria. Lembro-me de ambos como se fosse ontem, e já lá vão muitos anos.
A lista é interminável. Seria fácil continuar a enumerar vantagens de ser alto no país em que nasci e cresci. Mas não é disso que se tratam estas linhas. Bem pelo contrário. Estas procuram, isso sim, colocar a descoberto a mentira que nos é vendida desde pequenos, em Portugal, de que ser alto é sempre bom. Pois bem, não é. É uma mentira vil e facilmente desvendável quando se viaja pelo continente asiático. Porquê? De forma muito simples, aqui vai: porque no continente asiático ser alto é uma merda.
Pela primeira vez desde que tenho memória não estou feliz por ser alto. Poderia começar por falar do sem número de cabeçadas que, em vigas mais baixas que em todo o lado se cruzam no meu caminho, me recordam recorrentemente o que foi ser criança e esbarrar contra tudo quanto existia. Ou até do efeito negativo que esta viagem está a ter nas minhas costas, já que caso pretendesse entrar em todas as portas cuja altura máxima se situa bem abaixo do meu ombro e com as quais tive a oportunidade de me cruzar – e comparar – em Tóquio e Quioto, poderia ter que o vir a fazer curvado sem remédio. Por outras palavras, ficar corcunda. Não é que não tenha atravessado essas portas por causa disso. Mas gostaria de, se pudesse e assim o desejasse, poder fazê-lo sem ter que, toda a vez, participar num concurso de jogo do limbo invertido. Mas não ficamos por aqui.
Desde joelhos permanentemente doridos e negros em resultado das centenas de joelhadas dadas nas baixas mesas, ao espaço inexistente para cruzar as pernas em carrinhas, carros, carripanas e tudo quanto mais me possa lembrar, independentemente do quão dormentes um pé e uma perna possam ter vindo a ficar, a ter que viajar, durante oito horas, com dezanove outras pessoas, numa carrinha de doze lugares, sem ar condicionado nem espaço para esticar as pernas, no centro do Laos… Muito mais se poderia dizer. Poderia falar das inúmeras noites passadas em sleeper buses no Vietname em que as camas que substituem as cadeiras mais não passam, aos meus olhos e para o meu desajustado corpo, de berços em que constantemente tive de dormir – com as pernas dobradas ou os pés à pendura, claro está. Ou até de todas as viagens em aviões e autocarros em que, desde logo, raras são as vezes em que existe um apoio para descanso da cabeça de uma pessoa com um metro e oitenta e sete, pelo que esta fica a balouçar como se um daqueles bonecos com cabeças gigantes presas por uma mola a um corpo demasiado pequeno se tratasse. Nessas mesmas viagens, nas poucas vezes em que tive a sorte de ficar no lugar do corredor, o reverso da medalha não tardou em aparecer, já que desde cedo tive direito a ser brindado, da parte de todos aqueles que comigo se viriam a cruzar, com encontrões que constantemente me recordaram que aquela perna não devia estar ali.
A verdade é que poderia continuar a discorrer sobre as desvantagens de, em pleno continente asiático, ser uma pessoa alta. Mas não vale a pena. A ideia principal está á vista de todos, e isso basta-me. Aqui, na Ásia, ser alto não é aprazível – isto para não dizer outra vez, com as letras todas, que é uma merda. Estarei a pagar as favas de, até ao início desta viagem, apenas ter retirado vantagens de uma característica física que nada fiz para merecer? É possível que sim. Toda a moeda tem as suas duas faces.
Em todo o caso, não posso deixar de me questionar: a minha altura transmite um sentimento de que não me encaixo por cá? Tudo aponta para uma resposta afirmativa, que sim. Mas, se assim é, por que razão estou mais feliz e confortável que nunca? Porque é que, tudo visto e ponderado, sinto que pertenço aqui?
Por João Barros