Mercados de rua ao virar da esquina
Podem sempre ser encontrados onde menos se espera. Numa praça pouco movimentada no centro da cidade, por debaixo de uns claustros atrás do chafariz principal do centro histórico, numa estrada movimentada à beira rio. Este é um local onde ao fim de semana se encontram todos aqueles que pretendem viver a nostalgia do passado num presente que está aqui para ser sentido. Todos aqueles que pretendem planear o futuro com base nas experiências, vivências e conhecimento que outros têm para partilhar. (Des)ordenadamente espalhados pelo chão, ou – não tão – aleatoriamente pousados em cima de uma mesa improvisada, é neste local que jaz perplexamente um conjunto de objetos que, de forma desesperada mas simultaneamente tranquila, esperam ser tocados, experimentados, levantados e recolhidos. Cada um destes objetos, que julgava ter já alcançado o seu prazo de validade acreditando piamente nada mais ter para ver, fazer, mostrar ou oferecer, ganha aos olhos curiosos dos visitantes do mercado de rua uma nova vida. Caixotes repletos de discos de vinil, gira-discos e grafonolas, relógios, livros, roupa, espelhos, louça, mobília, brinquedos, joias, malas e baús que guardam em si as recordações de toda uma vida já (ultra)passada. Neste tipo de mercados de rua encontramos tudo aquilo que não procurávamos mas que percebemos, afinal, sempre precisámos. Um apelo ao consumismo descontrolado que por tais bandas sai atenuado em função do exercício de economia circular que aí foi implementado. Isto porque a única condição para aqui repousar e poder ser transacionado pelos vendedores ambulantes que, à sombra do guarda-sol e nos seus bancos característicos, conversam tranquilamente entre si, é ter uma história para contar. É ter já passado pelas mãos daqueles que, conscientemente ou não, decidiram que estava na altura de um tal objeto passar para as mãos de outrem, de acrescentar um novo capítulo à sua história. Na verdade, é dessa mesma história que queremos também fazer parte. É essa mesma possibilidade de dar continuidade a um conto que não queremos que chegue ao fim que nos motiva a procurar nestes mercados, à vista de todos plantados, os segredos que cada um dos seus objetos tem para nos transmitir. Histórias e mistérios que para qualquer um estão reservados.
Viagens desde uma loja de discos de vinil
Uma tarde de sábado sem quaisquer planos. Haverá melhor forma de ocupar o tempo livre que através de uma visita à loja de discos de vinil do nosso bairro? Enquanto escrevo estas linhas vem-me à cabeça a Louie Louie, em plena Rua do Almada, casa de – não suficientes – tardes aí tão bem passadas. O prazer de uma visita a uma loja de discos de vinil reside não naquilo que da mesma pode vir a resultar, mas da visita propriamente dita. Ali chegados, a música que sai das colunas da loja marca o ritmo e o timbre da tarde. Tanto podemos ser recebidos por um saxofone melancólico num dia de chuva, como por um riff de guitarra elétrica marcadamente dos anos noventa quando, no outono, começam a cair as folhas, ou ainda por um alegre disco italiano dos anos setenta que nos avisa, como se disso precisássemos, que o verão está aí para ficar. À medida que reviramos todos os discos (des)cuidadamente arrumados por ordem alfabética – benditas surpresas decorrentes da desarrumação típica deste tipo de loja -, quer queiramos quer não, embarcamos numa viagem que sempre nos esteve destinada e que apenas nos aguardava. Uma viagem pelo espaço e pelo tempo. Num minuto, enquanto os dedos reviram os discos das bandas começadas pela letra “F”, damos por nós na solarenga Califórnia, em plenos anos setenta, a acompanhar músicos como Lindsey Buckingham, Christine McVie e Stevie Nicks a escrever as letras que vieram a fazer do álbum Rumours um dos trabalhos de excelência dos Fleetwood Mac. Um pouco adiante, na letra “P”, mas quale idea terá sido esta que nos passou pela cabeça, somos transportados para Itália, para o início dos anos oitenta, e acompanhamos um jovem Pino D’Angio numa dança marcada por movimentos de anca que tentamos mentalmente, mas sem sucesso, replicar. Quase chegados ao final da nossa incursão discográfica passamos a pente fino a letra “R” e, como não poderia deixar de ser, olhamos discretamente para o teto para confirmar que esta noite, no Porto, não haverá estrelas no céu a dourar o nosso caminho. Entrar numa loja de discos de vinil tem destas coisas. Recorda-nos que uma música nos pode transportar para um momento que nem o mais rápido dos comboios, nem o mais potente dos aviões, consegue alcançar, onde nenhum deles nos consegue levar. Aí reside um dos seus segredos mais bem guardados, por vezes até esquecido por aqueles que tão bem o conhecem. Um segredo que, a partir de hoje, deixa de o ser.
O encanto de uma livraria
Todas as livrarias têm o seu próprio encanto. Cada uma à sua maneira. Como não ficar deleitado com as milhares de lombadas de inúmeras cores, tamanhos, texturas e feitios, todas desalinhadas e à espera de ser puxadas da prateleira por uma mão curiosa? Basta passar por uma livraria para nos decidirmos a entrar. Como poderíamos não o fazer? Sem que consigamos controlar os movimentos do nosso corpo, quando damos por nós estamos a passar as mãos em tantos livros quanto podemos. Não interessa o género, o autor nem sequer a língua em que estão escritos. A cada livro que abrimos, indistintamente, somos inundados por um cheiro característico que só aqueles que sentem os livros podem apreender. Um odor a aventura que nos remete para histórias do passado, para contos imaginários num mundo paralelo ou para distopias futurísticas que esperamos, pela nossa própria saúde e a da sociedade, não se venham a verificar – enquanto escrevo isto, temo que o famoso Big Brother esteja de olho em mim. Será que as poupanças que pusemos de lado este mês podem ser reduzidas? Ainda que dele não precisemos, a verdade é que quando entramos numa livraria há sempre pelo menos um livro – mas nunca é só um livro – que desperta em nós uma necessidade inexplicável de o ler. Limitamo-nos a um, desta vez. As outras mil e uma possíveis aventuras guardadas nas prateleiras forradas a sonhos à espera de ser vividos terão de esperar. Até é melhor assim, sempre reservamos uma outra desculpa para cá voltar. Saímos porta fora com o livro dentro de um envelope castanho debaixo do braço, livro esse que mal pode esperar ser lido. Olhamos para trás, por cima do ombro. Todas as livrarias têm o seu encanto. Cada uma à sua maneira. Só precisamos de ser recordados disso mais vezes.
Um parque no meio da cidade é tudo o que nós quisermos (e tudo o que qualquer pessoa pode querer)
Um pedaço de verde que vale mais do que mil palavras. Um pulmão para a cidade que, além da sua função orgânica, desempenha um papel multifacetado. Numa tarde de julho, trinta e seis graus ao sol, funciona como refúgio para aqueles que não puderam, ou não quiseram, afastar-se das vicissitudes do cimento e do alcatrão com os quais foi construída a selva(jaria) de cidade em que nos resignamos a viver. Numa manhã primaveril é o local ideal para uma sessão de leitura do livro acabado de comprar na livraria mais próxima que nem sequer contávamos visitar. Basta estender a toalha na relva, deixarmo-nos cair e o mais complicado será mesmo o termos que nos levantar. No Outono, crianças com os braços abertos, amparados por ambos os pais, um de cada lado, correm desalmadamente pela relva fora, com a ponta do nariz vermelha, procurando pontapear o máximo de folhas caídas que conseguem encontrar. Já num dia de Inverno este funciona como parque de diversões para todos aqueles que, no final da jornada, decidiram fazer a vontade ao melhor amigo do ser humano e trocaram uma hora no sofá por uma caminhada com direito a um jogo do busca – por que raio haveríamos de ter ficado em casa? Um parque no meio da cidade pode desempenhar o papel que cada um de nós quiser, quando cada um de nós quiser. Um restaurante a céu aberto para picnics improvisados, um campo de jogos para aqueles que, sem espaço à porta de casa, pretendem dar uso à pena e às raquetes numa sessão matinal de badminton a dois. Uma sala de ensaios ao ar livre em que sabemos não haver vizinhos a queixar-se de alguma dose excessiva de entusiasmo do dedilhar da guitarra acústica recebida no aniversário anterior. Ou até um local de convívio para aqueles que, entregues à solidão, encontram num banco de jardim a sua melhor companhia e a parte do dia por que mais ansiavam. Um parque no meio da cidade pode ser aquilo que cada um de nós quiser, quando o quiser e mais o precisar. E por isso a ninguém deveria ser negado tal prazer.
Comer ao balcão: porque não?
Tudo começa com uma simples pergunta: ‘só temos lugar ao balcão, pode ser’? Acenamos e dirigimo-nos vagarosamente ao lugar que nos está reservado. Convencidos pela decisão de ser parte de um ritual secular em que o balcão era local de busca de um ombro amigo para lamentar as tristezas, ou de um abraço para celebrar as conquistas, sorrimos para quem está do lado de lá. Este é o refúgio ideal para escapar à azáfama social que nos é imposta pela sociedade atual, de que mais é melhor. Mais, mais e mais. Mais pessoas, mais conhecidos, mais amigos, mais gente à volta da mesa. Não. O ato de comer ao balcão recorda-nos que há um tempo para estarmos sós, para refletir, para sabermos aproveitar a nossa própria companhia antes de a partilhar com os demais. Mesmo que decidamos comer ao balcão acompanhados, será sempre por uma só pessoa – mais do que isso, sejamos realistas, não funciona. Uma refeição a dois, uma dose perfeita de convívio que nos obriga a dirigir todo o nosso foco e atenção àqueles que connosco decidiram partilhar um momento tão íntimo como é o da sua refeição. Já dizia Gabriel o Pensador que ‘a hora da refeição é uma hora sagrada’, e não é que tinha mesmo razão?. Ao contrário do que por aí se diz, três não é a conta que Deus fez. Pelo contrário, dois é que é o número para não deixar para depois – quando se trata do número máximo de pessoas com quem comer ao balcão, claro está. As doses de prazer que se retiram de comer ao balcão são tantas quanto as porções extra de molho que pedimos para regar uma francesinha que teima em não terminar na baixa do Porto, ou até do caldo necessário para terminar os noodles do tsukemen que decidimos experimentar num restaurante perdido pelas ruas de Takadanobaba, em Tóquio. A cereja no topo do bolo? Não existe a necessidade de passar por aquele momento constrangedor de, depois de vários minutos a tentar captar a atenção do garçon, finalmente o conseguir, levantar o braço e, com um sorriso tímido e impaciente, pedir ‘um café e a conta, por favor’. Porque é que não comemos mais vezes ao balcão?
A (desconhecida) efervescência de um jogo de basebol
O jogo começa muito antes do seu início, longe da arena do Tokyo Dome. Lá fora, nas suas imediações, duas horas antes do primeiro arremesso, deteta-se já uma onda de entusiasmo sonoro que surge por entre sorrisos, gritos e a simples agitação típica de uma multidão que se prepara para o jogo do dia. Um momento nada típico do Japão que conhecemos, mas muito bem-vindo. Por entre toda a ordem, respeito, educação e silêncio, urge a espontaneidade descuidada de um povo que também precisa de vibrar com alguma coisa. Essa coisa é, invariavelmente, um jogo de basebol. Um mar de famílias e grupos de amigos que saíram mais cedo do trabalho para o evento mais importante da semana, por entre o laranja e branco dos equipamentos da equipa da casa, entoa alto e a bom som. Não entras na animação? Primeiro strike! Não acontecerá. Já dentro da arena, num momento de convívio despreocupado entre todos aqueles que reservaram as próximas três horas para ver alguém tentar acertar com um taco de madeira numa bola e outros tantos a tentar apanhá-la, somam-se às cervejas tiradas à pressa no meio das bancadas os cachorros quentes que, verdade seja dita, parecem já ter visto melhores dias. Não entramos na folia irrequieta de petiscos e aperitivos que a equipa da casa tem para nos oferecer? Segundo strike! Recusamo-nos a aceitar uma possível eliminação. Já o jogo começou e percebemos que a cada rebatida dos Tokyo Giants, equipa da casa que, sem o querermos, somos forçados a apoiar, gera-se uma efusão de alegria que contagia todos aqueles que, na bancada, vão dirigindo um olhar atento ao recinto de jogo. E eis que, sem qualquer aviso prévio, logo no primeiro inning, em total desrespeito pela multidão atrasada que ainda se apinha à porta do recinto para entrar e ver o que o jogo terá hoje para oferecer, se dá o primeiro home run para a equipa da casa. Sem qualquer sentido de urgência o batedor percorre lentamente o campo, de braços no ar, pisando todas as bases, sob a apoteose daqueles que se deliciam com o momento. As luzes apagam-se e no placard luminoso surgem mensagens eufóricas de vitória que assinalam a conquista obtida. Todos à nossa volta parecem nunca ter assistido a tão brilhante momento na história do desporto. Não nos levantamos para aplaudir? Terceiro strike: we’re out!
Por João Barros