Um passeio pela Casa-Museu Amália Rodrigues

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Estamos no número 193 da Rua de S. Bento, a morada de Amália Rodrigues desde 1955 até à sua morte, a 6 de outubro de 1999. Em dezembro do mesmo ano, a vontade de “manter o legado da artista” levaria ao surgimento da Fundação Amália Rodrigues. Com sede na mesma morada, o lar da “Voz de Portugal” tornava-se na sua Casa-Museu. Mas como será percorrer, o mesmo espaço onde a fadista vivera?

Essa pergunta vale já uma advertência de Mariana, que nos orienta nesta visita guiada: “Amália foi mais do que fadista. Foi actriz e poetisa”. Esta é apenas uma das muitas surpresas para aqueles que visitam o espaço outrora habitado pela artista. Talvez a próxima esteja na apresentação do famoso quadro pintado por Luís Pinto Coelho. Após um concerto dado no Coliseu dos Recreios, o falecido artista plástico resolveu retratar a Diva do Fado vestida de negro, a cor à qual todos a associam. Mariana explica-nos o motivo para Amália usar essa cor: “ela era muito tímida e achava que ninguém repararia nela se usasse o negro”. O efeito acabava por ser o exacto oposto. O preto não só chamava muito mais a atenção para a Diva do Fado, como acabou por “levar as outras fadistas” a vestirem-se da mesma forma.

“O fado como nós o conhecemos deve-se a Amália”

Seguindo pelo hall, vemos também um quadro de Pedro Leitão, que retrata a artista enquanto jovem, representando a estética do “fado antes da Amália: camisa colorida e xaile”. Mariana faz questão de apontar que essa aparência “não é a única inovação que a Amália gerou no fado”. Enquanto todas as letras da época falavam sobre desgostos amorosos, a Diva do Fado surgiu cantando também “sobre morte, sobre saudade”, além de interpretar “folclore português, música inglesa, francesa, espanhola e até brasileira”. Afinal de contas, Amália dava concertos de duas horas e meia, o que criava a necessidade de “um repertório muito vasto”. Além disso, a artista não se limitou a “trazer os grandes poetas para o fado”, cantando também poesia “escrita pela própria”.

O salão das tertúlias e de “Amália/ Vinicius”

Nenhuma visita guiada poderia dispensar uma passagem pelo salão, que se mantém “quase igual” a quando a artista ainda estava viva. Falta apenas a televisão. Porém, não faltam as flores, “uma das paixões de Amália”. Preferindo “os malmequeres e as sardinheiras”, a Diva do Fado tinha sempre o seu lar repleto de flores. Como a sua secretária, Estrela Carvas, revelou numa entrevista à RTP em 2009, Amália costumava sair à rua para as “roubar” nos jardins pelos quais passava.

O salão era um lugar “onde Amália dava muitas entrevistas”. Devido à sua timidez, a artista preferia ser entrevistada na sua casa. Contudo, a Diva do Fado “não gostava de estar sozinha”, mantendo sempre o seu salão “cheio de gente”. Além de local de entrevistas, esta divisão era o espaço onde aconteciam as famosas tertúlias, que começavam “às 11 da noite, com os convidados a saírem, por vezes, só às 9 da manhã”. Uma dessas tertúlias, em 1968, resultou na gravação de “Amália/Vinícius”, o álbum conjunto de Amália Rodrigues e do poeta brasileiro Vinícius de Moraes.

Uma das visitas habituais era um dos guitarristas que a acompanhava, José Nunes. Antes de morrer, o músico mostrou o desejo que a sua guitarra fosse entregue a Amália, estando hoje presente e em exibição naquele salão. A acompanhá-la encontram-se mais duas guitarras portuguesas, um piano e um bandolim. Mariana resolve perguntar: “Acha que a Amália tocava algum destes instrumentos?”. A resposta é negativa, para surpresa de qualquer visitante habituado a ver fotos da artista ao piano ou com uma guitarra portuguesa nos braços. Na realidade, Amália não sabia tocar nenhum daqueles instrumentos.

No tempo das cerejas

Com a mesa posta de forma bastante festiva, a postos para o Natal, Mariana avisa que “Amália não teria a mesa com um estilo tão formal no dia-a-dia”, embo- ra “tivesse sempre convidados”. A artista sentar-se-ia à cabeceira do lado esquer- do, com César Seabra, o seu marido, à sua direita.

Olhando para cima, é possível ver pinturas de cerejas nas paredes da sala de jantar, numa referência ao seu nascimento. Em 1920, a maioria dos bebés nascia em casa. Para evitar as multas por registos tardios, muitos pais registavam os filhos como nascidos no próprio dia em que eram registados, ou no dia anterior. Amália Rodrigues não foi exceção.

A Diva do Fado não sabia a data certa do seu nascimento, cingindo-se àquilo que Rosário, a sua avó materna, lhe tinha dito: “nasceste no tempo das cerejas”. De maio a julho, seria impossível saber qual era a data certa, ficando-se pela data oficial: 23 de julho. Contudo, Amália aproveitara a incerteza para escolher outra data: 1 de julho. Com dois dias de celebração, a ar- tista passava a ter “quase um mês inteiro de festa”.

O “bom dia” do último Chico

Antes de subirem ao piso superior, os visitantes chegam à cozinha, onde são recebidos pelo “bom dia” de Chico, o papagaio de estimação da artista. Com os seus tenros 28 ou 29 anos de idade, Chico foi a última ave que a Diva do Fado possuiu. Como Mariana nos revela, “a Amália teve vários papagaios, dando o nome de «Chico» a todos eles”. Para não destoar, o último Chico continua a chamar pela sua dona, por Eugénia, a cozinheira, e também por Caruso, o último de muitos cães que a artista teve ao longo da sua vida.

Em cima dos móveis brancos ainda conservados, vê-se uma travessa de barro, oferecida pelo restaurante Adega Ma- chado, como agradecimento a Amália pelas atuações que lá fizera. Mas quais seriam os pratos que a artista preferiria? Aparentemente, seria sopa de feijão, ou qualquer prato que incluísse sardinhas ou carapaus. Para além disso, a Diva do Fado quereria sempre outra das suas paixões: o chá, que acompanhava qualquer refeição – sardinhas, carapaus, queijo, etc., sendo que ainda é possível ver caixas de alguns dos chás importados que consu- mia, como Lyons ou Twinnings.

A Sala dos Poetas e o olhar prático de César

Como Mariana fez questão de lembrar no início da visita, a carreira de Amália Rodrigues não se cingiu à música. Além de fadista e poetisa, a Diva do Fado foi também actriz. Para que ninguém se esqueça disso, ao subir as escadas para os quartos e passar pela icónica foto tirada por Joaquim Silva Nogueira, os visitantes deparam-se com o cartaz do primeiro filme que protagonizou, “Capas Negras”, de 1947.

Antes de mostrar o quarto da artista, o passeio sofre um desvio até à chamada “Sala dos Poetas”, onde se encontra a maior parte da biblioteca de Amália e do seu marido. O contraste não passa despercebido. Afinal, César era um engenheiro mecânico de profissão, tendo um olhar “mais prático” que o da sua esposa. Talvez isso explique o facto de numa das estantes se ver um livro de Ary dos Santos, um dos muitos poetas que a Diva do Fado cantou, enquanto noutra estante há um livro de Aníbal Cavaco Silva.

Antes de entrar em palco, não esquecer de rezar à Nossa Senhora do Carmo

No caminho até ao quarto, os visitantes têm ainda direito a uma passagem pelo atelier, onde se encontra a colecção de balandraus da artista. Como nos é revelado, a estética de Amália era “influenciada pela cultura cigana”, chegando a artista a dizer “que se vestia como uma cigana no dia-a-dia”. Seguindo esses preceitos, a modista Ilda Aleixo tratava de preparar os balandraus e vestidos de palco para a Diva do Fado. Para isso, utilizava a máquina de costurar da Singer que aqui se encontra.

Como nenhuma figura com o nível de Amália poderia andar sem jóias, estas também têm direito à sua divisão. Era lá que a Diva do Fado guardava as suas “bugigangas”, como a própria lhes chamava.

Finalmente chegamos ao quarto da artista. Um elemento salta à vista de qualquer visitante, perante o contraste entre as paredes brancas e as cortinas beges do quarto de Amália: a vasta quantidade de arte sacra, espalhada por todos os móveis mesmo enquanto a artista estava viva, com destaque para a estátua de Nossa Senhora do Carmo. Como Mariana nos relembra, “Amália era muito religiosa”. Mas devido à sua timidez, “deixara de frequentar missas”, com medo de ser reconhecida. Porém, nunca abdicava da oração à referida santa antes de entrar em palco.

A despedida dos aposentos da Diva do Fado não poderia abdicar de uma passagem pela antecâmara e por uma das suas fotos de família. Nessa imagem, além dos seus pais também se encontra António, o seu avô materno. Criada desde criança por ele e pela sua avó, Amália tinha uma ligação particular com António, que conseguia pô-la a cantar para si e para os vizinhos quando ainda era pequena.

A despedida…

A visita acaba com uma passagem pelo antigo quarto das empregadas, onde a cozinheira Eugénia costumava dormir. Agora, é espaço de exposição de parte do património da artista.

No início perguntava como seria percorrer o mesmo espaço onde a Diva do Fado viveu. A sensação com a qual se fica é só uma: o corpo Amália já não vive lá, mas a sua aura continua bem viva, em cada canto da sua casa.

Por Pedro Maia Martins

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