Um loop – Ha Giang

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Uma semiautomática de 110cc. Basta isso. As mochilas ficam na parte de trás, presas com elásticos, para não terem de ser carregadas às costas. Para além disso, desta forma servem também de encosto a quem vai atrás. Apertamos os capacetes à frente, sorrimos um para o outro pelo espelho do lado esquerdo. Um aceno não combinado significa que podemos partir. Chave na ignição, primeira engatada e estamos prontos para a estrada.

Neste caso não é o destino que interessa, disseram-nos. O que realmente serve o propósito desta viagem é a viagem em si. Onde vamos passar, o que vamos ver e sentir. Hoje em dia já pouco se usa isto de usufruir dos meios, mas não do fim. Em todo o caso é esse o plano para os próximos dias, aqui em Ha Giang. Uma estrada que ziguezagueia pelo meio das montanhas. Tanto pode ter sido desenhada por um Zorro cicioso que, enraivecido, viu na cordilheira o alvo da sua espado, como por uma serpente de proporções inimagináveis que aí marcou o trilho por onde passou. Não se sabe, mas não importa. No meio das montanhas, para além da natureza, só se vê uma coisa. Uma estrada, aquela estrada que aos ‘s’, por entre elas corre o seu rumo. Uma estrada que tanto sobe como desce, qual montanha russa de um parque de diversões abandonado e dominado pela vegetação. Uma estrada que ora obriga a curvas apertadas à esquerda ora à direita, num labirinto aparentemente sem fim.

Só há uma forma de percorrer corretamente esta estrada, que é de mota. O caminho podia ser percorrido de carro, camião, autocarro, a pé ou até numa carroça. Sim, é verdade. Mas aquela estrada, como as que vemos nos filmes com uma câmara que desde cima voa, tem de ser apreciada numa mota. Só assim faz sentido. Por isso de mota é a única forma de corretamente a percorrer. Uma mota que, como a que escolhemos, seja o suficiente para nos transportar entre os sítios por onde queremos passar. Não precisamos de uma mota tão potente que o barulho que saia do seu tubo de escape afete a tranquilidade das montanhas. Aliás, certamente isso estragaria a experiência. Basta uma mota pequena, como a nossa.

O prazer de andar de mota numa estrada aos ‘s’ não está na velocidade, nem tão pouco em ultrapassagens dignas de um grande prémio. Não queremos dar vida ao Valentino Rossi que há dentro de nós, nem tão pouco nos propomos desafiar o deserto num Rally Dakar. Não. Só queremos retirar prazer de viajar de mota. Um banco confortável aliado ao gosto de reduzir a mudança quando subimos uma encosta mais inclinada depois da ponta do ‘s’ que nos obrigou a uma curva apertada à esquerda. Queremos sentir o vento bater-nos de frente na cara apenas protegida pelos óculos de sol que nos abrigam a vista. Não precisamos de luvas nem de camisolas, nem sequer de proteções para os joelhos e cotovelos. Aliás, queremos que o nosso corpo esteja exposto, ao máximo, à brisa da montanha, ao ar fresco dos cumes mais altos, ao vento quente que se faz sentir nos profundos e mais estreitos vales.

Mal nos lançamos à estrada invade-nos uma sensação de liberdade. Estamos a sós, no meio das montanhas, apenas as crianças nas bermas a abanarem as mãos quando passamos nos acompanham nesta jornada. A cada curva que dobramos, por detrás de cada obstáculo, corta-se-nos a respiração. Montanhas de todas as formas e feitios erguem-se, por entre a neblina, até ao horizonte se perder de vista. Tal como gigantes que tentam, em bicos de pés, tocar o inalcançável céu. Continuamos ou paramos por aqui? Esquecemo-nos da realidade e deixamo-nos ser absorvidos pelo verde das montanhas? Ou avançamos, esperando que a próxima curva nos traga algo de mais inesperado ainda?

Continuamos lentamente a percorrer a estrada sem saber para onde vamos ou quando paramos. A beleza está no caminho, disseram-nos os mais experimentados. Estamos dentro de um sonho, num transe melodioso. As paisagens seguem-se como películas projetadas numa sala de cinema do antigamente. Só que aqui não está tudo escuro. Não, por cá somos banhados pela luz quente do fim do dia, aquela que só nos visita quando o sol decide que é hora de nos abandonar. A banda sonora é o som do motor a acusar o cansaço da subida das encostas que já estão para trás, combinado com o chiar dos travões que, em esforço continuado, nos recordam do longo caminho já percorrido. Uma fantasia que não agrada a todos, é certo, mas que para alguns representa a liberdade no seu sentido mais puro e intocado. Acordamos? Ou deixamo-nos permanecer ininterruptamente nesta fantasia de adolescência?

Sentimos os seus braços abraçarem-nos desde trás. Olhamos pelo retrovisor e ali está a resposta. Não estamos adormecidos. Esta é a nossa realidade. Este é o sonho que por estes dias vivemos acordados.

Por João Barros

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