OS DESAFIOS DA URBANIDADE FACE ÀS ALTERAÇÕES CLIMÁTICAS

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É já sobejamente conhecido que as alterações climáticas têm como consequência expectável um aumento da frequência e intensidade dos designados fenómenos climáticos extremos, como os tufões, as inundações e as secas, ao nível de todo o Planeta Terra. A Península Ibérica, e portanto Portugal, é uma das zonas que poderá ser muito afectada, com alteração dos regimes de precipitação, o “desaparecimento das quatro estações”, com um aumento de situações de cheias e inundações no Outono/Inverno, por um lado, e de secas extremas na Primavera/Verão, por outro. Aliás, estes últimos dois anos de 2015 e 2016 foram particularmente atípicos, com temperaturas moderadas no Outono/ Inverno, pouca precipitação (com registo inclusive de uma seca meteorológica severa, que no entanto não chegou a ser, felizmente, hidrológica), e temperaturas muito acima do normal durante períodos prolongados neste último Verão.

Também devemos ter em conta que actualmente metade da população mundial vive em zonas urbanas, estimando-se que esse número aumente para mais de 60% já em 2030, e que as grandes metrópoles se situam, regra geral, junto ao oceano ou em zonas de confluências de grandes rios. Portugal não é excepção, com cerca de 80% da sua população a residir na faixa litoral entre Porto e Setúbal, e cerca de metade a residir nas áreas metropolitanas de Lisboa e Porto.

Os espaços urbanos apresentam assim enormes desafios para uma adaptação e uma maior resiliência às alterações climáticas, pois apresentam um conjunto de vulnerabilidades face a fenómenos de cheias e inundações (potenciadas pela subida do nível do mar em zonas costeiras – quem não se lembra da tempestade Hércules em 2014?), devido essencialmente a questões de planeamento, seja pela sua ausência, seja pela sua permissividade, com elevada impermeabilização do solo, artificialização de cursos de água e /ou construção em leitos de cheia.

A ZERO considera que as cidades necessitam urgentemente de medidas de retenção natural da água, isto é, soluções baseadas na natureza — as denominadas Natural Wa- ter Retention Measures (NWRM), preconizadas pela Comissão Europeia, e baseadas no conceito das infraestruturas verdes, de que o regime da Reserva Ecológica Nacional (REN), instaurado em 1983 pelo então Ministério da Qualidade de Vida liderado pelo Arq.o Gonçalo Ribeiro Telles, foi pioneiro a nível mundial. Estas medidas têm como principal função aumentar e/ou restaurar a capacidade dos aquíferos, dos solos e dos ecossistemas aquáticos para reterem água, permitindo assim minimizar cheias e inundações e, em simultâneo, favorecer a manutenção dos designados benefícios dos ecossistemas, como a melhoria da qualidade do ar, o reforço da disponibilidade de água para abastecimento e uma maior resiliência a fenómenos de seca.

Exemplificando, numa área urbana em que 75 a 100% do solo se encontra impermeabilizado, o balanço hidrológico pode ser resumido da seguinte forma: o solo retém apenas 15% da precipitação, 30% são devolvidos à atmosfera através da evapotranspiração das plantas, sendo os restantes 55% deixados a escoar livremente à superfície dos espaços urbanos. Quando existem picos de precipitação, com enormes quantidades em espaços de tempo muito curtos, esta escorrência tende a ser maximizada ocorrendo as denominadas flash floods, com consequências que podem ser muito graves para a segurança de pessoas e bens, bem como para os próprios sistemas de abastecimento.

Assim, a primeira medida terá de ser necessariamente a diminuição da impermeabilização do solo, de forma a aumentar a sua capacidade de infiltração, através da criação de áreas verdes, onde se podem incluir a renaturalização de linhas de água encanadas com restauração da galeria ribeirinha, charcos temporários, pavimentos permeáveis, jardins e telhados verdes. Nas áreas onde as inundações sejam mais frequentes, deverá ser ponderada a criação de zonas húmidas contíguas ou a montante dos espaços urbanos — espaços que favorecerão a biodiversidade e servirão para reter grandes quantidades de água e retardar o seu escoamento após picos de precipitação intensa. Ainda, a gestão correcta de áreas agrícolas e florestais junto a bacias de drenagem, de forma a reduzir a erosão e perda de solo, é também uma medida que deverá ser urgentemente tomada pelos decisores e actores destes processos.

Se vamos viver cada vez mais em espaços urbanos, é urgente aumentar a sua resiliência, sendo fundamental que o processo e os exercícios de planeamento sejam efectiva- mente transpostos para as várias realidades locais e tenham em consideração os riscos que são já conhecidos e assumidos consensualmente pela comunidade científica da não aplicação de uma estratégia de adaptação às alterações climáticas.

Não deixa pois de ser irónico que, de acordo com informação recentemente vinda a público, e divulgada também pela ZERO, no Litoral Alentejano a opção esteja a ser precisamente a oposta, com a diminuição da REN em cerca de 100 mil hectares em cinco anos, sendo que a maioria da área de REN desafectada corresponde precisamente a leitos de cheia e áreas de recarga de aquíferos.

Falta ainda saber o que nos trará uma análise à REN no restante território nacional. Os casos já conhecidos não auguram nada de bom. A prática de planeamento em Portugal continua, e infelizmente muitas vezes, a ignorar o que a ciência e mesmo o mais liminar bom senso nos aconselham. É urgente uma mudança ao nível dos processos de decisão, que garanta a salvaguarda do interesse co- mum.

ZERO – Associação Sistema Terrestre Sustentável

Texto e Fotografia por: Carla Graça

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