Sérgio Amaral – O regresso à arte do negro primitivo

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Ao longo da estrada de terra batida que nos leva ao atelier, escondido no meio de um pinhal, a poucos quilómetros de Mangualde, em Santa Luzia, onde nasceu em meados do século passado, estão espalhados diversos matarrachos, as peças em barro negro de formas peculiares que se tornaram o pilar do seu trabalho.  Sérgio Amaral recebe-nos à porta, roupa de trabalho e tenaz na mão. “Chegaram mesmo na hora. Vou tirar do forno eléctrico 4 esculturas.” – dispara em tom de cumprimento, enquanto avança apressadamente para o interior.

Desengane-se quem espere encontrar um espaço arrumado, com as obras expostas. O atelier de Sérgio Amaral é o seu local de trabalho e uma espécie de antiquário desorganizado, onde se misturam móveis de diferentes épocas, obras do autor, ferramentas de trabalho, peças inacabadas, fornos elécticos, fornos a gás, área de pintura, brinquedos tradicionais e um pequeno anfiteatro virado para a zona onde procede à cozedura primitiva do barro, a soenga.   

 

“Vou fazer uma sessão de negro no forno eléctrico. Não sei se sabem, mas há várias formas de fazer o negro. O negro primitivo que é na soenga, depois, há uma série de processos que se podem realizar com outros meios que não sejam os mais primitivos”.

Sérgio não pára, enquanto conversa connosco e vai dando opiniões a outros dois artistas que utilizam o espaço para criar as suas obras. 

Como começou o teu gosto pelo trabalho com barro?

Este meu gosto começou há mais de 40 anos. Vem do princípio dos anos 80. Na altura, a minha mulher não tinha carta de condução e era professora numa escola que ficava do lado de lá do Caramulo. Eu ia, todas as segundas feiras, levá-la à escola e ia buscá-la à sexta feira. Nestas viagens, passava em Molelos e via trabalhar aqueles oleiros tradicionais, pessoas muitos idosas, já com algumas dificuldades em continuar com a actividade. Nessa altura, acabei por me entusiasmar pelo trabalho em barro, pois já estava ligado às artes, nomeadamente à pintura. Verifiquei que, ali, existia uma enorme lacuna na continuidade da actividade, e esse entusiasmo levou-me a começar a trabalhar na roda e, posteriormente, a fazer as minhas cozeduras pelo processo tradicional da soenga, em que se cava um buraco na terra onde se colocam as peças. É um processo lindo e bastante primitivo.

Depois foi toda uma evolução, que passou pelo Rákú e pelas queimas alternativas de cerâmica.

O que é que te inspira para a concepção das tuas peças?

Depende. Sou muito influenciado pelo meio, pelas minhas vivências interiores, dúvidas, preocupações e anseios. A minha fonte inspiradora tem muito a ver com as minhas inquietudes interiores e com tudo aquilo que me rodeia e me preocupa. Por isso, ao longo dos anos, tenho feito algumas exposições que levam as pessoas à reflexão. Exposições que são muito interactivas com a sociedade.

Com trabalhos de pintura, olaria e cerâmica, já estiveste presente em mais de 50 exposições, individuais e colectivas. Como foi esse caminho que te granjeou esse reconhecimento nacional e internacional?

Bom, isso é um processo natural. Tu trabalhas e estás a trabalhar para ti, não estás a trabalhar para ninguém, depois começas a ser solicitado para expôr em feiras, em galerias, surgem particulares que começam a querer e a desejar ter o teu trabalho.

Depois, naturalmente, aparecem os meios de comunicação a quererem saber um pouco mais, o porquê das coisas…

Já passaste por várias fases de criação artística. Fala-nos um pouco dessa evolução.

Essa evolução tem sido tão natural que eu próprio não me tenho dado conta. Mas sim, é uma evolução e nota-se na parte estética das formas, mas também na parte técnica dos materiais, que talvez se deva à minha permanente procura de novas soluções, sempre relacionadas com a base primitiva do negro, das reduções, das carbonações. Sempre nesse sentido. Não existe aqui incoerência da minha parte, o meu trabalho tem sido sempre fundamentado no primitivo, levado até ao limite, ao longo destes anos.

Eu penso que domino todas as técnicas de redução e carbonação, sem querer ser pretensioso.

Explica um pouco essa técnica primitiva que usas para criar as tuas peças?

Vou recolher o meu próprio barro num barreiro que tenho em Oliveira do Hospital. Trago o barro para o atelier onde estamos, deixo-o secar, amasso-o, retiro-lhe as impurezas, etc., até ao momento em que o possa trabalhar. Depois, dou-lhe uma primeira cozedura, mas antes disso, ainda tenho de esponjar as peças, lixar as peças, soprar as peças e, depois, é que dou a primeira cozedura, que é a chacotagem a 940 graus, eventualmente, logo após essa cozedura, pode-se dar um primeiro acabamento, mas depende sempre do barro.

Quando não uso o processo primitivo uso este forno a gás – de onde retira uma escultura acabada de cozer – onde faço a primeira cozedura. Depois retiro as peças e envolvo-as em serradura e a absorção do fumo dá-lhes o aspecto negro que todos conhecemos. É o carbono, as peças ficam prenhas de carbono. Nos processos mais elaborados, dou-lhe a primeira cozedura, e depois construo umas formas químicas para vidrar os trabalhos. Mas nestes casos, do Rákú, os trabalhos têm uma forte composição de óxidos e, na carboração, os óxidos ficam bastante salientes. O processo é interrompido através de um choque térmico, mergulhando as peças em água.

O barro tem de ser próprio para esse choque térmico, é um barro que tem muita areia, muito chamote, é um barro pobre na medida em que não tem muita plasticidade, mas tem a capacidade de aguentar diferenças de temperatura muito elevadas.

É exactamente a técnica que está a utilizar. As peças saem do forno em brasa e Sérgio enterra-as em serradura que por momentos incendeia. Depois de bem cobertas, ficam por alguns minutos para que a absorção do fumo lhes dê o negro pretendido. Depois, retira-as e mergulha-as em água. O processo tem algo de místico e encantatório que a penumbra em que está mergulhado o atelier acentua.

Tens alguma peça que te tenha marcado particularmente?

Todas elas marcam. Quando te desfazes de qualquer peça, parece que estás a entregar um pouco da tua alma. Isso é sempre difícil. Um trabalho que me marcou muito e nem tem muito a ver com os matarrachos, tem mais a ver com estruturas metálicas com cabeças, foi aquele que fiz no Brasil ao longo de 3 meses de muitas sinergias com artistas brasileiros.

Em Paraty, certo? Como foi essa experiência?

Sim. Em Paraty, no Brasil. Essa experiência surgiu através de um convite para participar num congresso, feira, exposição anual de cerâmica, que já se realiza há uma série de anos. Eu participei em 2013. Fui convidado para esse certame e eu próprio lancei o repto a todos os artistas de Paraty, a todos os ceramistas, de construirmos uma escultura para a cidade. Todos contribuíram para a execução do projecto e foi espectacular.

Essa experiência de partilha, de trabalho em colectivo, de troca de ideias, estimula-te?

Sim, sim, sempre! Ainda hoje continuo a ser o mesmo, ou seja, o meu atelier que me custou baba e ranho a construir, está hoje disponível para todos os artistas que não tenham espaço e equipamentos para desenvolver projectos. Está disponível o espaço, bem como o meu conhecimento e experiência. Gratuitamente!

Idalécio é um exemplo dessa generosidade.

“Eu sou um curioso nestas andanças, sou mais criativo do que artesão. Aproveitei a cedência do Sérgio Amaral, aqui do atelier, para fazer umas peças. Já criava coisas novas, nos quados, na pintura, nas peças em madeira, mas, depois, aventurei-me a criar peças em barro, porque têm outra plasticidade. Achei muito interessante e adotei uma técnica diferente da do Sérgio, que, aliás, ele já usou. Agora utiliza outras. Eu, com um pedaço de barro, faço uma transformação total. Como estas peças, que parecem um pouco complexas e fogem do tradicional.” – Com orgulho mostra uma série de peças que diz animadamente não lembrarem ao diabo.  – Vim apoiar o Sérgio após o incêndio que por aqui lavrou e senti isso como um desafio para fazer coisas novas e diferentes. Um desafio para espevitar novamente. Todas as peças são feitas por mim, esboçadas por mim. Crio as minhas próprias peças e o interessante é que sai tudo diferente do esboço. (Risos). Isso é que é interessante!”

Sérgio afastou-se deliberadamente para que Idalécio pudesse falar da sua arte e, como que reforçando as palavras do amigo, mostra as peças acabadas de terminar, ainda envoltas numa nuvem de fumo e, em particular, uma delas de autoria de Idalécio.

Apesar dessa repercussão nacional continuas a não querer sair daqui…

…sem me preocupar absolutamente nada. Eu vivo e trabalho para me realizar e me sentir bem comigo próprio. É um meio de comunicação.  O meu irmão, o Carlos Amaral, é escritor e exprime-se através da escrita. O meu meio de expressão é através do que faço – e, de forma coerente através de exposições, projectos de intervenção, etc. – é assim que tento levar às pessoas a minha forma de pensar e aquilo que sou.

Primo pela verdade em tudo e em todos os momentos. Se me sinto mal em determinado sítio não disfarço e as pessoas devem entender isso. Espero que me respeitem.

Sentes que, o facto de viveres no interior do país, prejudicou a tua carreira? Há um custo de ser artista no interior?

Há um custo enorme, claro! Sei que com o meu conhecimento desta arte, se estivesse mais perto das grandes cidades, teria outra projecção, mas, por outro lado, retirava-me aquilo que eu não dispenso, a minha tranquilidade interior, a minha paz, o meu silêncio, que são absolutamente necessários para as minhas criações. Eu tenho de viver num ambiente Zen, de paz.

És um eremita?

No fundo é isso. Muitas vezes, quando tenho momentos mais difíceis, em que me apetece desistir, a palavra que me vem à cabeça é, precisamente, eremita. É uma palavra que nos remete a um recolhimento interior, a uma reflexão, a um trabalhar da alma… há momentos desses! Porque, quando trabalhas sozinho, tens momentos em que, por mais força que tenhas, acabas sempre por ir abaixo e, nesses momentos, o que apetece é desistir e refugiar-me no meu cantinho.

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