pousio

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Residência Artística da Pousio em exposição na Casa-Museu Medeiros e Almeida

 No dia 7 de Janeiro inaugurou na Casa-Museu Medeiros e Almeida a exposição da primeira edição das residências artísticas da Pousio, a que chamámos Barbeito, com curadoria de Ana Bacelar Begonha.

Esta residência aconteceu na aldeia de Cachopo, Serra do Caldeirão. Organizada pela Pousio, a residência contou com sete participantes: João Massano, José Sottomayor, Mafalda d’Oliveira Martins, Maria Luísa Capela, Martim de Mesquita Guimarães, Xavier Solano, e eu próprio.

A nossa vontade foi trazer a Lisboa aquilo que em Cachopo tinha surgido. Falar de Cachopo à capital. Escrito na Serra do Caldeirão, o texto que se segue acompanha a exposição Barbeito na Casa-Museu Medeiros e Almeida.

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nos campos em pousio surgem as ervas que os lavradores não convidaram a crescer. os rebentos começam a aparecer aqui e ali assim num jeito de timidez. pousio é um tempo em que a terra se guarda para si e se repara. os rebentos logo se tornam confiantes e com as chuvas dão o tom do novo verde ao solo que antes se corava de um matiz cansado. o nosso pousio foi barbeito.

os campos onde acontece o barbeito eram antes campos baldios, terra de ninguém. o barbeito é a primeira lavoura de um terreno. é o primeiro olhar entre a terra e a mão humana. o primeiro grande amor de outono.

o josé sottomayor está sentado e de pés descalços como lhe é costume. tem pela frente uma bacia onde com as mãos mistura fungos que crescem nas sobredas de cachopo. está debruçado perante a bacia e sente a reacção dos líquenes à pasta de papel enquanto os tenta juntar. veste tons de rio, verdes e azuis de água. o josé é escultor e as suas mãos trabalham perto do solo. esconde a madeira que lhe oferece estrutura e forma sob uma camada de pasta colorida, mas de uma só cor. os objectos que surgem deste trabalho junto da terra ganham um movimento ascendente, como as árvores que parecem tentar fugir da raiz para chegar ao sol.

o linho da maria luísa capela foi esticado sobre as estruturas de madeira. juntos o linho e a estrutura são as suas telas. em cachopo o linho era destrinçado das plantas vivas ao tear e era a base dos tecidos da terra e de quem a trabalhava. cada camada de tinta branca que se passa sobre o linho é um acto de vida que é necessário deixar respirar. cada pincelada é como o arado que prepara o solo para a primeira e mais cuidada sementeira. é moroso o tempo a que o pousio da terra obriga, é amoroso o seu barbeito. de súbito, porém, o campo húmido resplandece de verdes e nas telas da maria luísa surge a cor com a mesma vaidade de uma flor campestre.

a parede do atelier e a mesa são os lugares de ofício do joão massano. na sua pintura descobrem-se as gentes que abandonam a terra e as terras que as gentes deixam à mercê ruidosa dos moinhos eólicos. a produção de energia perde-se nos últimos sopros das figuras que o óleo enegrece e ilumina. o gesto – o gesto é o que fica. o baldio é a primeira realidade de quem prepara o barbeito. o campo cansado o campo exausto o campo expirante. a expectativa de nascimento está escondida sob a secura do solo e o lavrador procura curar a oliveira que vem morrendo de sede. barbeito é o acto de tomar conta do terreno que jaz adormecido.

a dinâmica do pousio é energizante e é de energia que são feitos os actos do martim de mesquita guimarães. a lavoura toma para si o saber dos ciclos e das coisas caducas. as cores sucedem-se as artes misturam-se e à presença sucede a ausência. antes da foice há um campo pleno e toda a esperança do ano anterior. o gesto dramático implica uma vida comum onde o joio não vinga sozinho e o espectador não vive sem palco. sem campo não há lavrador e sem lavrador não há lavoura – esta simbiose torna-se viva no gesto de nutrição a que o acto performativo nos chama. por fim a ceifa acontece e a seara vai-se e o solo desnuda-se – o que fica é a esperança do novo ano.

a presença do xavier solano trouxe ao campo a vontade de registo da cidade e as ânsias inerentes à cristalização do trabalho da terra. como o viajante ao passar pelos pomares que crescem num só lugar a fotografia capta o momento de um processo que se desenvolve pelo tempo e pelas ladeiras. o xisto lasca-se perante a objectiva urbana e o registo vídeo reúne em si o olhar dos lavradores e as mãos que ao solo deitam o adubo e a promessa.

a mafalda d’oliveira martins tomou para si o trabalho de recolher e gravar as sementes dos cultivos perdidos. a semente antiga volta à terra e cada ruga cada osso é um sulco da enxada ou a alegria de uma seara nova. retrato a retrato os rostos dos que habitam cachopo e os montes da serra do caldeirão tomam vida e tomam cor. o óleo vai-se tornando imagem. o fogo do cigarro de uma mão e o óleo do pincel que molda os seus dedos firmam em tela os jeitos da terra. os seus desenhos fazem as delícias das belas rosas e margaridas da aldeia. pelo traço recordam-se os cantos do trigo a voz que soa nas sobredas e o corpo que se queda na superfície da imagem.

em pousio somos todos como que chamados pela terra. escondida encontrámos a anta o espaço sem memória sem presença. a anta repleta de vozes que o luto torna silenciosas. pela noite dentro os tempos de ceifa pedem muitas mãos e muitos dedos. somos chamados pelo lar o café a feiteira a mealha as casas onde nos receberam braços abertos. acompanhavam-nos os rostos de muitos anos e de muitas jornas. de vez em quando um pequeno rebanho de ovelhas assustadas. de uma só vez um ferreiro de dedos soldados. os campos repletos de esteva a fonte onde corre um fiozinho apenas. cachopo fonte férrea medronheira redondo pulo do cão vale joão farto vale d’odre currais estevais. em pousio e em barbeito.

duarte bénard da costa

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