PARA ALÉM DA FOTOGRAFIA – DIA 6 (Sendero Alerces Milionarios, Carretera Austral, Chile)

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Por detrás desta fotografia está uma quase tragédia, que felizmente a final não o chegou a ser. Não que esta se trate de uma tragédia digna dos gregos antigos, que ainda assim estou certo a cantariam e declamariam com a maior das intensidades e devoção. Não, não é uma tragédia desse tipo, nem nada que se pareça. Trata-se, isso sim, de uma quase tragédia pessoal que, a verificar-se, poderia ter posto em causa muito daquilo que seriam os dias que se avizinhavam nesta viagem.

Torci um pé. Sim, é disto que se tratam as linhas que se seguem. Da malfadada realidade que é, a meio de uma caminhada em pleno Sendero de los Alerces Millionarios, ter sofrido uma pequena entorse. Não uma daquelas situações em que instantaneamente se sente o sabor a ferro do sangue subir à boca e se percebe que caminhar irá ser impossível, como experienciei várias vezes ao longo da minha curta carreira de andebolista de camadas jovens. Não, foi uma entorse leve, mas que ainda assim deu para assustar. A idade e a autoconsciência têm destas coisas.

Aquando do terrível acontecimento, em que, num excesso de confiança nas minhas capacidades de caminhante, não cuidei onde raio punha os pés, naquela hora, fiquei apreensivo. Não pela dor que senti instantaneamente – a essa não é possível fugir, dê por onde der -, mas pela apreensão relativa às mazelas que daí poderiam advir. Pela frente restavam quarenta e cinco minutos de uma descida técnica, por entre lama, raízes, troncos e rochas de todos os tamanhos e feitios, cobertos por uma leve e escorregadia camada de água da chuva combinada com a constante humidade que se fazia sentir a todo o instante. O desafio era, portanto, evidente.

O susto ainda mais se agigantou quando parei para pensar no que ainda havia pela frente durante toda a viagem. No dia seguinte partiríamos para Torres del Paine, onde nos aguardavam três dias de árduas caminhadas. Depois disso, El Chaltén, onde seis dias no meio da natureza seriam passados a andar a pé de um lado para o outro, apenas e tão só (como se isso fosse pouco) para poder ver com os meus próprios olhos algumas das paisagens que há mais tempo estavam plantadas no meu imaginário. Ou seja, tudo poderia estar seriamente comprometido por causa de uma entorse ridícula.

O que seria se a minha primeira vinda à Patagónia (sim, mais existirão no futuro certamente) ficasse marcada por ficar imóvel num hotel, num café ou num bar, apenas a fazer tempo e aguardar que os meus companheiros de viagem regressassem das suas caminhadas para me dizer que os trilhos que há anos desejo fazer são, efetivamente, de outro mundo? Ainda que feliz pelos sortudos comparsas, um tal sentimento assoberbou-me, o que levou à cara de sofrimento interior, assim como de poucos amigos, que estava por detrás da lente quando esta fotografia foi tirada.

No final, por adágio de quem quer que exista e tome conta de tudo isto, nada se passou. Tudo correu bem e a dor que no momento foi sentida rapidamente passou a miragem. Fica, no entanto, a lembrança da apreensão e receio que senti e que me levou a que, em cada um dos passos seguintes da viagem, visse bem onde colocava cada um dos meus delicados pés.

 

Por João Barros

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