Por detrás desta fotografia está uma viagem. Uma viagem custosa, muito custosa. Esta foi a primeira fotografia captada na América do Sul, e para que a mesma o pudesse ter sido muitos quilómetros tiveram de ser percorridos. Por ar, terra e mar. Se valeu a pena? Não parecem existir dúvidas que sim.
Tudo começou na cidade do Porto, onde às cinco da madrugada do dia oito de novembro do ano de dois mil e vinte e quatro dois entusiasmados e prospetivos viajantes acordaram para se deslocarem para o aeroporto Francisco Sá Carneiro. O destino? Puerto Montt, uma pequena cidade situada algures no centro do Chile, América do Sul. O objetivo? Percorrer de carro a idílica Carretera Austral nos dias que se seguiriam. A ideia parece ótima, não haja sombra de dúvida. Mas a verdade é que uma viagem não se faz apenas do seu destino, mas antes também de todas as etapas que há que queimar até o alcançar.
Chegar a Puerto Montt desde o Porto não é, de modo algum, tarefa fácil. Uma primeira escala no aeroporto de Madrid permitiu o encontro com uma das companheiras de viagem que, vinda de Zurique, decidiu que seria indicado ali se unir para prosseguir viagem. A escala de duas horas assim o permitiu. Mas o mais difícil ainda estava por vir. Seguiu-se, então, uma viagem não de cinco, não de dez, mas de catorze (catorze!) horas incómodas num avião em que as pernas deste vosso narrador não encaixavam no exíguo espaço que lhes estava dedicado no avião que o levaria da capital espanhola para Santiago do Chile. Os relógios, deixados em Portugal, porque em viagem não há cá que ter controlo sobre as horas, apontavam as onze da noite no fuso horário local quando aterrados na capital chilena. Depois de uma paragem na alfândega para justificar toda a comida que, numa mala de vinte e quatro quilos, nos havia acompanhado desde Portugal, e tendo sido forçados a abdicar de dois quilos de tangerinas e algumas bananas (“no Chile não entra fruta fresca, lamento”, vá-se lá perceber porquê), uma boa notícia: aquela que se julgava ter sido a etapa mais longa da viagem havia sido completada com sucesso. Reunimo-nos com o último dos companheiros de viagem que ali já nos esperava e brindámos ao reencontro com uma cerveja excessivamente dispendiosa num bar deprimente de aeroporto, no terminal de voos domésticos. Não poderia ficar melhor que isto!
Mas a viagem ainda não havia terminado. Pela frente havia ainda que suportar uma longa noite a dormir no chão frio e desconfortável do Aeroporto Internacional Arturo Merino Benítez. Naturalmente que de sono não se fez a noite, já que o desconforto, aliado ao entusiasmo do início de uma viagem, apenas permitiram que os olhos se mantivessem fechados por cerca de trinta minutos, para mais não voltarem a tal posição.
Batiam as sete da madrugada quando os quatro viajantes ensonados embarcaram no voo rumo a Puerto Montt que, cerca de duas horas e meia depois, aterrou no destino. Chegáramos, estávamos onde queríamos estar! De sorridos plasmados nos rostos cansados, dirigimo-nos às agências de aluguer de automóveis, fomos brindados com um upgrade (é impressão minha ou nestas agências há sempre direito a upgrades?) e colocámos as mochilas na mala do nosso meio de transporte para os próximos dias.
Com um novo dia pela frente, eis que então se impunha uma tomada de decisão: se vamos percorrer a Carretera Austral, porquê perder tempo e não nos fazermos já ao caminho? O cansaço como que magicamente desaparecera das nossas mentes e corpos e estávamos prontos para o que desse e viesse. Pois bem, decidimos lançar-nos à estrada rumo a Chaitén, primeira paragem depois de Puerto Montt no nosso roteiro dos primeiros dias de viagem.
Mas nem tudo é tão fácil assim, nem tão pouco as estrelas estão constantemente alinhadas para quem não faz o seu trabalho de casa. Após uma breve paragem para comprar um cartão com alguns dados móveis de internet, que muita falta viriam a fazer para nos guiar nos dias que se seguiriam, percebemos que um dos ferries que teríamos de apanhar para chegar a Chaitén, o único meio de transporte que nos poderia levar até lá, deveria ter sido agendado previamente. Era sábado, e depois de uma chamada telefónica realizada pela simpática vendedora do cartão de telemóvel, eis que fomos informados que apenas terça-feira no final do dia poderíamos embarcar – quando a ideia original seria dois dias depois disso já estarmos a apanhar esse mesmo ferry mas em sentido contrário, de volta, para devolver o carro e apanharmos um voo de Puerto Montt para o sul do Chile. Os espíritos dos viajantes ficaram (quase) irremediavelmente derrotados. O que fazer? A primeira parte da viagem estaria arruinada? Quais as opções? Não iriamos ter tempo nenhum para rumar Carretera Austral abaixo. Haveria algo a fazer nas proximidades em substituição de percorrer a tão famosa estrada, que aparentemente já não teríamos tempo de descobrir?
Não, decididamente não. Num grito de Ipiranga silencioso, mas não menos intenso que o original, eis que os viajantes se decidiram fazer à estrada rumo à zona de embarque do famoso ferry. O plano? Tentar a todo o custo entrar no barco ainda nesse mesmo dia. Que mais haveria a fazer senão, quanto mais não fosse, tentar cumprir com o plano original? Façamo-nos à estrada.
Depois de uma curta travessia de quarenta e cinco minutos num ferry inicial (um que não teria de ter sido agendado de antemão, mas que antes funciona num sistema de first come first served), em que foi possível, pela primeira vez, lidar com o impacto das montanhas e dos braços de mar tão característicos da Carretera Austral, e ao fim de duas horas e meia de viagem automóvel bem-humorada, mas sempre ansiosa, o carro estava parado em Orno Píren, na zona de embarque do grande e maldito ferry. Estávamos no início da tarde e o barco zarparia pelas dezoito e trinta, pelo que teríamos tempo de tentar algo – o que quer que fosse.
A informação transmitida foi de encontro aos nossos maiores receios: apenas na terça-feira ao final do dia havia uma vaga no ferry. Até lá, todos os metros quadrados do barco estavam mais do que lotados. Uma péssima notícia, portanto. Em todo o caso, uma réstia de esperança: “podem sempre comprar os bilhetes para terça-feira, colocar-se na fila para a viagem de hoje à tarde e, na eventualidade de alguém a falhar, poderão embarcar com esses bilhetes”. Nenhuma outra alternativa se plantando perante nós, assim o fizemos. Carro estacionado na zona de embarque, atrás de um outro que, tal como nós, tentava a sua sorte, nada mais restava a fazer senão aguardar. À chegada do ferry deveríamos informar a responsável pelo embarque que estávamos na fila, e depois de todos aqueles que tinham bilhete embarcarem, se restasse espaço, ser-nos-ia indicado que poderíamos subir a bordo.
Não mentirei dizendo que o tempo passou rápido, tal como costuma suceder no início de uma viagem. A ansiedade de ver a questão esclarecida e resolvida apoderou-se dos ocupantes do carro que, pacientemente, aguardaram a chegada daquele que esperavam ser o seu meio de transporte para a terra prometida. Depois de avistamentos de leões marinhos a brincar perto do cais e de algumas horas sem grande coisa para fazer, um enorme monstro de ferro aparece longe a dobrar a curva de uma montanha, rasgando lentamente a água. Chegara o momento!
Assim que ancorou, e logo que identificada a responsável pelo embarque que se seguiria, demos-lhe nota das nossas preocupações, angústias e expectativas acerca do que se seguiria. A resposta? A mesma que havíamos recebido anteriormente: “esperem sentados no carro e se houver espaço serão chamados”. Continue-se, então, a longa estadia no cais de Orno Píren.
Os momentos iniciais acalentaram o espírito dos expectantes viajantes, que apenas contaram meia dúzia de carros a embarcar num gigante ferry. Será que, afinal de contas, o destino lhes iria sorrir? Tudo indicava que sim… mas sem que sequer com isso se contasse, eis que começaram a embarcar os camiões. Enormes, compridos, com atrelados e muitos. Muitos camiões. Rapidamente a esperança começou a abandonar o espírito daqueles que até então se haviam deixado empolgar pela expectativa de também eles poderem vir a cruzar o mar ainda naquele dia até Chaitén. A coisa estava negra.
Quase derrotados, eis que, com cara fechada e de poucos amigos, a responsável pelo embarque se dirigiu à fila de carros que aguardavam as boas graças do destino para prosseguir viagem. O primeiro carro teve luz verde para assim o fazer, chegando então a nossa vez. Segundos que pareceram uma eternidade. De caderno de papel em riste, caneta a trabalhar vagarosamente, eis que a bendita responsável toma nota da matrícula do carro onde aguardavam impacientemente quatro almas preocupadas e, pedindo-nos que baixássemos a janela, nos presenteia com a melhor notícia do dia: “estão com sorte, podem embarcar!”.
O que se passou de seguida é difícil de descrever. Berros e gritos de felicidade, punhos no ar, dentes à mostra de tão grandes sorrisos que se plantaram nas caras dos viajantes. Conseguíramos! Afinal de contas íamos avançar e poder começar a nossa viagem! Quanta alegria coubesse naquele carro, a mesma existia e estava lá para ficar.
É verdade que o dia ainda não estava perto de terminar, mas o primeiro obstáculo fora ultrapassado com sucesso, e de repente uma descarga de adrenalina recordou-nos o quão cansados estávamos. Uma rápida subida à zona mais alta do ferry brindou-nos com avistamentos de águias, pelicanos, do verde das montanhas e do branco da neve nos seus cumes, das mil e uma cascatas que ao longe alimentavam o mar. Aí fomos brindados com chuva que se misturou com um pôr-do-sol pintado a tons de amarelo, tendo o frio cortante que nos magoava a cara ao nela bater sussurrado constantemente, bem baixinho ao ouvido de cada um de nós, “bem-vindos à Patagónia”. De coração cheio, eis que retornámos à viatura para, por fim, nos permitirmos fechar os olhos e descansar um pouco.
O resto, é história. Depois de cinco horas nesse mesmo ferry, de uma travessia por um ilhéu em plena escuridão que nos permitiu embarcar no terceiro barco do dia, e de mais duas horas a bordo desse mesmo ferry, desembarcámos a cinquenta quilómetros de Chaitén. Havíamos chegado à Carretera Austral (que, em rigor, começa em Puerto Montt, mas não é dessa parte da mesma que se trata este relato). Lançados à estrada, cansados, a combater para manter os olhos abertos, percorridos quase quarenta quilómetros por uma estrada não alcatroada em que nem uma luz permitia identificar os mil e um buracos e pedras que se atravessavam no nosso caminho, eis que, no meio da escuridão, cerca de uma hora depois, uma luz amarela é abanada na nossa direção. Era, nem mais nem menos, que o Pablo, dono da pequena cabana de madeira em que, por fim, pernoitaríamos. Uma rápida conversa, no dia seguinte trataríamos de tudo, damos de cara com a lareira acesa que irradiava calor para toda a cabana. Confesse-se que, ainda que o conforto fosse por demais evidente, bem-vindo e agradecido, caso não houvesse lareira não haveria grande diferença para os viajantes esgotados. As quatro almas portuguesas que haviam cruzado o mundo estavam tão fatigadas que qualquer coisa serviria.
Já debaixo dos cobertores, um desejo de boa noite não obtém qualquer reação. Todos dormem, constatei. Chegara assim ao fim a custosa parte da viagem que nos permitira chegar onde desejávamos. Estávamos na Carretera Austral.
Até amanhã.
Por João Barros