‘Os seres humanos são criaturas de hábitos’. Todos ouvimos esta verdade inabalável e categórica desde pequeninos. Quem disser que não a ouviu está a faltar à verdade.
Quando se viaja durante vários meses atravessando sítios com culturas semelhantes entre si não há nada mais normal que adotar determinados hábitos locais. Numa viagem que está agora a entrar no seu nono mês de duração, não há como evitar adquirir hábitos característicos dos sítios por onde temos passado, das pessoas com quem nos temos cruzado. No meu caso, um desses hábitos, entre muitos outros, é o passar mais tempo descalço que calçado.
Todos concordamos que não há muitas sensações melhores que aquela de chegar a casa, depois de um dia inteiro fora, e tirar os sapatos. Não há volta a dar. Este é um dos pequenos grandes prazeres dos nossos tempos – à falta de mais e melhor, agarremo-nos ao pouco que temos -, ao qual nem sempre prestamos o devido reconhecimento. Mas se assim é, se este é um momento tão prazeroso assim, porque não levá-lo mais longe ainda? Porque não, tal como se faz por todo o Sudeste Asiático, importar elevadas doses de liberdade pedonal também para fora de casa?
Estar descalço não só na praia, não só no jardim. Em todo o lado. Andar descalço, com os pés diretamente em contacto com o chão. Chegar ao café, ao restaurante, à loja ou ao supermercado e deixar os sapatos à porta. Se é que chegamos mesmo a calçar-nos para lá ir. Porque haveríamos de o ter feito? Tanto quanto se saiba nenhum de nós saiu do ventre da sua mãe com um par de sapatilhas Reebok ou com umas Birkenstock penduradas nos pés – quiçá esteja aqui o golpe de marketing do século que a indústria do calçado anda a precisar. Visitar museus no Japão? Descalço. Andar de mota por entre a densa vegetação das ilhas tailandesas ou indonésias, parar e ir ao restaurante comer um caril ou um satay? Para que raio precisamos de sapatos? Se ao sair do barco à chegada a Nusa Lembongan há que atravessar o oceano com água até aos joelhos, já que na falta de porto a praia serve de local de desembarque com a convidativa água turquesa a servir de boas vindas ao pé descalço, por que é que haveríamos de precisar de estar calçados?
Não termos de nos calçar à saída de casa é menos uma coisa que paira sob as cabeças já demasiado ocupadas com as intensas cargas de informação com que todos os dias somos brindados. No Sudeste Asiático ninguém se detém à porta de casa estupefacto e exclama ‘esqueci-me dos sapatos’, ainda que o número de pés descalços que por aqui se veem pudesse sugerir o contrário. Se alguém se esqueceu dos sapatos é porque não precisava deles. Num mundo atarefado e agitado como aquele em que vivemos, quanto menos coisas tenhamos com que nos preocupar, melhor – ao contrário do que a expressão ‘quanto mais, melhor’ nos leva a fazer crer (esta expressão só é válida para um número reduzido de coisas e situações). Estar calçado implica doses de trabalho e preocupação que não se coadunam com o espírito de preguiça e letargia que se apodera de nós assim que pisamos, descalços, como não poderia deixar de ser, solo asiático. Desde a poupança que advém da desnecessidade de ter na prateleira de casa inúmeros pares de sapatos que mais não servem que funções meramente decorativas, ao alívio dos narizes daqueles que, no final do dia, têm de lidar com fortes odores que emanam das meias suadas dos seus entes mais queridos, andar descalço pode ser a solução para muitos dos problemas do mundo atual.
Mas tamanha liberdade não vem isenta de consequências e responsabilidades. Quando andamos descalços há cuidados a ter que não chegam sequer a entrar na equação de uma vida levada com sapatos à volta dos pés. Uma atenção redobrada ao sítio em que colocamos os pés é algo que não se exige quando a sola medeia a discussão que diariamente levamos a cabo com o chão. Mas não só. Unhas devidamente cortadas com maior regularidade e lavagens de pés diárias, antes de nos deitarmos, são tarefas recorrentes na rotina daqueles que andam com o famoso pé ao léu’ Um pequeno e justo preço a pagar por tamanha liberdade, na minha opinião.
Claro está que todo este ideal e a adoção de um tal hábito de nudez parcial depende obrigatoriamente do sítio em que nos encontramos. Sair de casa no Porto para ir até ao jardim do Marquês descalço, num dia de Inverno, seria um verdadeiro atropelo ao bom senso. Entre o desconforto e a possibilidade de contrair uma doença rara da qual será complicado vermo-nos livres, pura e simplesmente não faz sentido. O piso não é convidativo, o frio dissuade quem a isso se atreva e o olhar julgador que a sociedade nos dirigirá desempenha também um papel de relevo que não tão timidamente nos grita a plenos pulmões que não parece nada bem andar descalço ali.
No Sudeste Asiático isso não acontece. Andar descalço pauta a normalidade e se insistimos em andar sempre calçados é porque algo de errado se passa connosco. Ou com os nossos pés. Porque não aproveitar o calor, os pisos amigáveis e uma sociedade que leva o prazer do pé arejado ao seu expoente máximo e deixar as extremidades dos nossos membros inferiores viver uma desafogada vida em contacto com os quatro elementos? Seja na praia, na relva, na estrada ou na montanha, tudo se faz descalço e tudo é mais simples assim. Tratando com informalidade e com um natural à vontade o solo que a todo o momento a gravidade nos leva a calcar.
Quando preparei a mochila para esta viagem equipei-me com quatro pares de meias e dois de calçado, e a verdade é que cada vez menos lhes dou uso. Bem sei que não poderá ser sempre assim. Quando voltar a casa verei uma tamanha liberdade circuncisada sem qualquer dó nem piedade. Entretanto, tal como acontece enquanto estas linhas se escrevem, aproveitarei ao máximo esta liberdade que sinto em não ter que enclausurar os meus pés numa prisão de materiais sintéticos. É o mínimo que posso fazer. Afinal de contas, são eles que carregam todo o peso de um corpo que, com uma mochila às costas, insiste em não parar de andar de um lado para o outro, não lhes dando qualquer descanso
Por João Barros