A minha vizinha Tété

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Se conseguirem, imaginem uma Lisboa onde as casas do centro – hoje, “prime real-estate” – mais não eram do que as casas simples, frias, húmidas e divertidas onde moravam os miúdos “ lhos da madrugada” como eu, e os artistas que fundavam o país livre, como ela: a vizinha da Travessa da Condessa do Rio, do número 1A. Eu morava no 1B. Entrava e saía de casa da Tété como entrava e saía do meu próprio quarto – aquele palácio de afectos, gente livre e adereços espalhados pelos tectos, paredes e cantos era, realmente, uma extensão natural do “meu bairro”. Mais acima, a estátua do Adamastor, no miradouro ao fundo da Marechal de Saldanha, tava com a severidade dos mitos Lusitanos, a Lisboa do século XX.  A porta da Tété dava para a cota da rua; mas a minha não. Para chegar à minha porta, havia que entrar por um túnel e descer à semi- cave onde fui criado. Nesse túnel, mais ou menos a meio havia (há?) um vitral colorido, assim “como nas igrejas”, achava eu; esse vitral era uma janela da casa da Tété e, se eu pressentisse que por lá estaria gente, não chegava sequer à minha porta – voltava para trás e lá ia bater à porta daquele santuário inacreditável.

Máscaras, narizes, tapetes persas, linóleo, uma grafonola, sofás de canto antes de isso estar na moda, pássaros suspensos, truques de magia, sapatos de sapateado (e uma estrutura em tabopan para acelerar num “charleston”!); posters de cinema antes da precariedade dos dias de hoje os declarar “clássicos”, uma galinha (ou duas?) numa gaiola, pronta para entrar em cena; uma cozinha do tempo dos tachos pretos, tapeçarias, óleos sobre tela… – entrar ali era como entrar pelo espelho da Alice no País das Maravilhas encenado pelo Slava Polunin. Só que…

Só que a gente cresce. Depressa e, às vezes, mal. E quando cresce e volta para a memória, e se predispõe a reinterpretá-la como hoje faço em frente a um ecrã, o tempo realinha as coisas. Hoje, adulto, celebro aquela casa sabendo que ela escondia a solidão própria dos seres livres, libertados que estão pela consciência da sua própria insignificância no Grande Circo da vida. Por trás daquela porta estava um outro Chapitô, edicado pelo intangível por um lado, pelo cru, pelo outro. Um palhaço – ou uma mulher-palhaço – não tem outra casa que não o mundo. Não há tinta branca nem nariz vermelho que o esconda: pelo contrário, para a Tété, as máscaras não foram feitas para esconder nada, mas para servirem de porta para a revelação do silêncio interior onde brilha a imaginação.

Eis-nos aqui chegados à palavra-chave; imaginação. Somos livres se imaginamos, mas não somos necessariamente imaginativos só porque somos livres. É preciso mais; a Tété chamar-lhe-ia “loucura” ou coisa que o valha, naquele seu timbre muito próprio de quem se habituou a não ter de explicar nada, porque – ela sabe – isso estragaria tudo. Eu chamo- lhe “porta que é preciso passar”; a de casa dela estava, na maioria das vezes, apenas à espera de ser empurrada. Entrem, e cuidado com o degrau que está logo ali à esquerda. Atenção – senhoras e senhores, meninos e meninas, o espectáculo vai começar.

Por Nicolau Pais

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