LEVA-ME CONTIGO – PORTUGAL A PÉ PELA ESTRADA NACIONAL 2 

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Antes das coisas úteis vêm as inúteis. Essas, as que nascem na cabeça, são as mais pequenas e as maiores. No meu escritório trabalha também um pintor. Ocupou a cozinha por causa da luz, que entra por uma janela diminuta, qual câmara escura, e trouxe com ele telas brancas e madeiras virgens e barros por moldar. Estes partem-se muitas vezes por acidente – eu até gosto das estatuetas anatomicamente perfeitas com cabeças e braços amputados –, mas as telas nunca ficam por preencher. Não sei como nasce aquilo. Ele põe-lhe as cores e as cores arranjam-se entre si em figuras femininas, florestas, bailarinos e caras de espanto. Mas sei que, antes de haver tinta na ponta do pincel, houve coisas inúteis na cabeça. Essas coisas inúteis, tratadas com o cuidado que merecem, acabam como coisas úteis na tela. Tudo o que é belo é útil.  

Depois de ter decidido partir, a estrada enrolou-se à volta dos meus pensamentos como uma jibóia de muitos quilómetros. Em vez de alcatrão, havia o medo de não conseguir, a fanfarronice de certas horas em que me achei capaz de tudo, inclusive caminhar do Shire até Mordor, o desânimo por me ter comprometido com uma ideia fútil que vinha do nada e ao nada levava. E a vontade de ver – de ir – de ser atravessado pela vida. Agora, a estrada era a minha tela e eu fazia como o pintor, preenchia-a de coisas inúteis esperando que as tintas se transformassem em quadro.  

Um dia, em Março, dei por mim a caminhar depois do pequeno-almoço. Passei pela mota e segui. Passei pelo carro e segui. Não tinha dito às minhas pernas para irem, mas elas devem ter achado que o cérebro já levava vários dias de coisas inúteis. Chegara a hora das coisas úteis, como amestrar o corpo. Duas horas depois, avistava o escritório, que fica a oito quilómetros de casa. Abrira duas bolhas na planta do pé esquerdo – as mesmas que mais tarde, regressado a casa, me pediram para comprar urgentemente sapatilhas adequadas –, mas o passeio pela Nacional 2 tinha começado. 

Nunca estive na casa de partida de uma corrida. Imagino os adversários em posição, o corpo quente e tenso, as bancadas em silêncio à espera do sinal. Esta antevisão, que associo a uma forma de paz, encontro-a na Decathlon. Tudo nessa loja está prestes a partir: os equipamentos das prateleiras, as tendas alinhadas, os barcos insufláveis, as compressas para as dores, as bicicletas, os sacos de boxe. Ali aguardam pequenos paraísos ou grandes torturas. Pensava nisto quando perguntei pela quinta vez à funcionária: «Mas tem mesmo a certeza de que estas sapatilhas aguentam bem a estrada?» Ela acanhou-se perante a ideia de 738 quilómetros numas sapatilhas Redmond Columbia de sessenta e nove euros, mas, como eram as únicas do meu tamanho, respondeu-me que aguentavam e eu dei-me por satisfeito. Semanas mais tarde, na manhã em que cheguei a Faro, beijei as sapatilhas por terem suportado o que a estrada e eu lhes fizemos.  

Depois comprei a parafernália que serve de tábua de salvação no caminho: mochila de quarenta litros com arejamento nas costas, bolsos vários e capa contra a chuva; bexiga de plástico para dois litros de água, equipada com um tubo e biberão; kit de primeiros socorros; colete amarelo, espécie de segunda pele; quinze pares de meias anti-bolha; pomadas várias que mantêm os pés lubrificados; boné com protecção na zona do pescoço; power bank para ir dando de comer ao telemóvel.  

Nos treinos que se seguiram, descobri que em duas patas se vê mais do que em quatro rodas. Pelo menos, vê-se mais lentamente.  

Lisboa está bordada a hortas, antes do Parque das Nações dá para perguntar aos últimos agricultores como se monda a terra. Eles às vezes não respondem mas eu digo-lhes que gostava de ter uma horta como as deles. Talvez achem que há hortas a menos para pessoas a mais. Problemas do mercado imobiliário.  

Na faixa da Infante Dom Henrique, de Braço de Prata a Santa Apolónia, habita muita gente que ali fica em barracas, tendas e caixas de cartão. Quando lhes acenei, recuaram. Depois acenaram eles e recuei eu. Encontrei uns a comer, outros a cantar. Debaixo do viaduto que leva à estação, perto dos carris da zona portuária, julguei ter visto restos de fogueiras – portanto, de noite, não passam tanto frio.  

Ainda assim, viviam melhor do que o Nuno, um gajo que eu conhecera dias antes e que vende pássaros em Gondomar. A casa cheirava a animal morto. A cozinha a animal bem morto. No quintal havia um pitbull manso, incomodado com tanta miséria, que nem sequer me ladrou ou mostrou os caninos. O Nuno também não mostrava os dentes porque quase não os tinha. «Esta é a minha cruz», disse quando lhe perguntei pela tatuagem de Cristo que começava perto do pescoçoFalámos da cruz: muitas horas debaixo de água como soldador submarino, bastante azoto nas veias, onde também foi juntando álcool e uns chutos de heroína. Agora era aquilo que se via, alguém mais limpo mas ainda não completamente limpo, um vendedor de pássaros numa casa suja. Quando me deu a caixa com o dom-fafe, pensei libertar o pássaro como homenagem, houvesse ao menos alguém livre daquela miséria, mas levei-o para casa e prendi-o no aviário. Apesar de ter muitas fêmeas, recusa-se a galá-las.

Num dos treinos, cerquei Lisboa com um fio imaginário feito dos meus passos. Foram quarenta e um quilómetros nos quais reparei que a cidade já não pertence ao lisboeta ou ao turista: agora pertence às trotinetas. São bichos tão frágeis, quais garças-boeiras, que abrandei o passo sempre que me aproximei delas. Ao montá-las, o ser humano deixa-as exaustas.

Perto das Docas, observava um grupo de raparigas bonitas, distraídas umas com as outras, quando ouvi campainhas vindas de todas as direcções. E em segundos várias trotinetas cruzaram-se e rasaram as raparigas. Os rapazes em cima delas berravam como índios a exigir escalpes. Enxameando as raparigas, os apaches aceleraram para se exibirem enquanto perguntavam: «Estavam perdidas, as meninas?» Elas levantaram os braços para lhes res­ponderem: «Sem vocês, claro que estávamos.» Eu continuei o meu caminho e não sei o que aconteceu depois, mas vinha a calhar se cada uma tivesse seguido com cada um em cima das trotinetas. Em direcção ao pôr-do-sol ou assim.

Uns quilómetros depois, na frente ribeirinha da Expo, depa­rei-me com a prova de que as trotinetas são mesmo aves vulnerá­veis: de vinte em vinte metros, encontrei-as afundadas no lodo da baixa-mar. Eram catorze de enfiada – e eu tenho a certeza de que a décima quarta, ao ver os cadáveres das amigas, teve um curto‑circuito de desgosto e atirou-se ela mesma ao rio.

De Alcântara a Cascais, a água e o sol lavavam tudo, os passeantes assemelhavam-se, caminhavam da mesma maneira. Uns de tronco nu, outros com os bonés virados para trás, alguns a ouvir música e uns quantos a namorar – todos tão contentes e com ar de quem nunca ansiou que, por momentos, o mundo ficou contido na marginal e não tinha início nem fim. Enquanto via o rio tornar-se foz, aprendi que as minhas pernas são mesmo irmãs: partilham a dor à vez.

Durante o dia, caminhava. À noite, lia. Palmilhei o País do Algarve ao Minho com Nuno Ferreira, no seu Portugal de Perto. Estudei sobre a estrada no maravilhoso guia Portugal de Norte a Sul pela Mítica Estrada Nacional 2. Subi ao Evereste com João Garcia e ao Annapurna com Herzog. Jon Krakauer apresentou-me Chris McCandless e este, por sua vez, disse-me para ler O Apelo da Floresta, de Jack London. O livro não tem grande interesse, excepto ter sido sugerido por um parceiro de caminhadas. Em Walking to Listen, Andrew Forsthoefel descreveu-me como caminhou de costa a costa nos EUA. Seguindo-lhe o exemplo, decidi pedir conselhos a quem encontrasse pelo caminho. E Paulo Moura, jornalista e autor de Longe do Mar, fez-me crer que encontraria muitas histórias na estrada.

Entusiasmando-se com as leituras, o meu Walter Mitty quis apoderar-se de mim e isso preocupou-me. Apesar de ter fomentado as coisas inúteis e tratado das úteis, apesar do equipamento e dos cento e trinta quilómetros de treino, a estrada bem podia nunca acontecer. Resultar nas frustrações de um sonhador. Para dar coça ao Walter Mitty, tornei o projecto oficial: publiquei um texto no Facebook acompanhado de uma foto com o boné do Forrest Gump. Agora, que gente invisível gritava «Walk, Afonso, walk!», não podia desistir.

Para além das leituras, pesquisei sobre a Nacional 2. Descobri as pessoas da estrada – aqueles que a percorrem publicando sobre ela online. Aqueles que a amam, porque aqui amor significa o tempo que lhe dedicam. E percebi que ainda ninguém a tinha palmilhado.

À descoberta da estrada e das pessoas da estrada juntou-se o objectivo empolgante de ser o primeiro, mesmo numa coisa tão insignificante como ir de um ponto ao outro. Nas semanas que faltavam até 22 de Abril, encolhi o caminho para que nele coubesse

a ambição recém-nascida: ser o primeiro. Embora ainda não lhe tivesse posto os pés em cima, a estrada já era mais minha do que de quem a fizera de carro, mota ou bicicleta.

O caminho quase tinha sumido, pequeno e mesquinho, quando descobri que um grupo de amigos, todos com mais de sessenta anos, começara a empreitada. Segui-os pelo Facebook, reagindo a princípio com desapontamento: que azar, a poucas semanas de meter eu os pés no alcatrão… Enquanto acompanhava os quilómetros e via as fotos, comecei a conhecê-los pelos bonés, pelos bigodes, pelas expressões cansadas. Na Nacional 2 há tempo para cansaço e para camaradagem. Imaginava-os amigos de sempre, por fim reformados e com calma para as conversas que interessam. Chegaram a Faro três semanas antes de eu partir e são uns gajos espectaculares. Por causa deles, o caminho ficou de novo grande como sempre foi.

Na última noite antes da caminhada, pensava em como eu e as minhas pernas havíamos andado mais de uma centena de quilómetros. Em como o meu cérebro e eu estávamos decididos, melhor dizendo, conformados. E em como, na manhã seguinte, os passos mais difíceis seriam para sair da cama.

Se conseguisse fazer a Nacional 2, talvez me tornasse andróide e pudesse dizer «I’ve seen things you people wouldn’t believe». Nesse momento, embora fosse caminhar sozinho, desejei que um qualquer cão me acompanhasse. Estaríamos bem um para o outro: eu tão cão como ele rafeiro, os dois vadios da estrada.

Só esperava não ficar pelo caminho, o que era bem possível, embora um bom falhanço também fosse uma boa coisa. É que o Walter Mitty podia ressurgir em qualquer etapa da jornada; para o conter, propus-me publicar um diário do caminho.

Ei-lo aqui, com as paisagens e as pessoas.

por Afonso Reis Cabral  

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