Les Vampires (1916)

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De Louis Feuillade: o arquétipo do thriller

“Um filme não é um sermão nem uma conferência,
mas um meio para entreter os olhos e o espírito.”
Louis Feuillade

 

Em Novembro de 1915, em plena 1ª Guerra, as pessoas de Paris encontraram cartazes afixados nas ruas desertas, nos quais se viam três figuras femininas com máscaras negras e três pontos de interrogação à volta do pescoço: “Quem? O quê? Quando? Onde?”. Tratava-se da nova jogada publicitária da Gaumont, o estúdio francês que fazia frente à gigante companhia dos irmãos Pathé, que anunciava assim o novo serial do seu maior realizador, Louis Feuillade.

Feuillade, nascido em 1873 no Sul de França, havia partido para Paris em 1898 em busca de uma carreira jornalística. Em 1905 é contratado por Léon Gaumont como escritor de guiões e assistente de Alice Guy, possivelmente a primeira mulher realizadora da história do cinema (ABEL, 2013). O seu trabalho terá certamente impressionado os seus superiores pois, em apenas dois anos, Feuillade substitui Alice Guy como chefe de produção do estúdio. Feuillade trabalhará com uma disciplina espantosa desde 1907 até abandonar a Gaumont em 1924, parando de filmar apenas para cumprir serviço militar durante a guerra, do qual é dispensado em 1915, deixando cerca de 800 filmes realizados em todos os géneros contemporâneos. Morrerá apenas um ano depois, com 52 anos.

Da sua enorme obra, destacam-se os seus serials de crime (os equivalentes da época às séries de hoje, mas naturalmente exibidos na sala de cinema), nomeadamente Fantômas (1913-1914), Les Vampires (1915-1916), Judex (1916), Tih Minh (1918) e Barrabas (1919). Estes não foram, no entanto, sucessos com os críticos da altura. Um crítico da revista Hebdo-Film, em Abril de 1916, escreve “Que um homem de talento, um artista, como o realizador de grandes filmes que têm sido o sucesso e glória da Gaumont, comece de novo a lidar com este pouco saudável género (o filme de crime), obsoleto e condenado por todas as pessoas de gosto, continua a ser para mim um verdadeiro problema.” (CALLAHAN, 2012).

Les Vampires é constituído por dez episódios de duração variável, originalmente exibidos em intervalos irregulares entre 13 de Novembro de 1915 e 30 de Junho de 1916, num total de quase sete horas. Os vários episódios seguem o jornalista Philippe Guérande (Édouard Mathé) nas suas tentativas de parar um gangue do submundo de Paris, os Vampiros, que aterrorizam a cidade com os seus crimes. Para isso, conta com a ajuda do desajeitado mas sortudo Oscar Mazamette (Marcel Lévesque) e com a constante oposição de Irma Vep (Musidora), ajudante do Grande Vampiro, o chefe da organização criminosa.

A produção de Les Vampires terá sido apressada quando Gaumont soube da planeada exibição em França do filme americano Les Mystères de New York e da importação dos serials americanos The Perils of Pauline e The Exploits of Elaine, protagonizados pela célebre heroína Pearl White. O crítico Roy Armes afirma que Feuillade terá sido “forçado a trabalhar rapidamente e sem uma máquina de estúdio bem oleada por trás de si (…). Feuillade não tinha tempo para polir os seus argumentos ou sequer estabelecer um guião convencional” (ARMES, s.d.); e o crítico de cinema Sean Axmaker escreveu que o serial era “frequentemente improvisado nas condições voláteis de França da 1ª Guerra Mundial” e que “Feuillade não estava necessariamente a inventar à medida que avançava, mas claramente reagia às condições e reescrevia à última hora se necessário” (AXMAKER, s.d.).

No entanto, esta pressão parece ter sido fundamental para o estilo absurdo (“alucinatório”, nas palavras de Jonatham Rosenbaum)) de Les Vampires: “É fácil de ver porque é que os surrealistas abraçaram o louco conto serializado de Feuillade. Les Vampires é uma estranha e maravilhosa obra prima de elegante beleza e surpresas cinemáticas. Apimentados com revelações repentinas e humor inesperado, os enredos pulp desta episódica aventura são menos um mistério do que um thriller caótico onde nada é o que parece e vale tudo”, declara Axmaker. Rosenbaum defende a influência do serial não só em Buñuel e outros Surrealistas (o próprio André Breton, autor dos Manifestos Surrealistas, ter-se-lhe-á referido como “a realidade deste século. Para lá de moda. Para lá de gosto.” (ARMES, s.d.), como também em Fritz Lang, defendendo que “indiscutivelmente, não foi até Fritz Lang na Alemanha dos anos 20 ter começado a fundir as descobertas formais de Feuillade e Griffith que o thriller paranoico como nós hoje o conhecemos começou a tomar forma” (Rosenbaum, 1999). O realizador Alain Resnais parece resumir bem a importância dos serials do realizador: “Tem sido dito que no cinema há as tradições de Méliès e de Lumière. Eu penso que há também a escola de Feuillade, que faz maravilhoso uso do fantástico de Mélies e do realismo dos Lumière.” (ARMES, s.d.).

Em vários momentos, ver Les Vampires é testemunhar uma manifestação de toda a tradição do filme de suspense no seu estado mais puro. Um dos meus exemplos favoritos acontece no episódio IV: “O Espectro”. A vilã Irma Vep trabalha disfarçada num banco, e é encarregue de levantar uma grande quantidade de dinheiro na manhã seguinte se um Mr. Metadier se atrasar para o fazer ele próprio. O gang dos Vampiros, para o qual Irma trabalha, tratam imediatamente de eliminar o Mr. Metadier. Na manhã seguinte, Metadier não aparece no banco à hora marcada, evidentemente. Irma levanta o dinheiro e prepara-se para sair. Entretanto, Metadier aparece e leva o dinheiro ele próprio. Tal como a personagem de Kim Novak n’A Muher Que Viveu Duas Vezes, os mortos de Les Vampires nem sempre ficam mortos; esta é só a primeira manifestação desta sua característica e, sem dúvida, a mais potente.

O protagonista, o investigador/aventureiro Phillipe, recebe uma dica acerca do que se passa no banco e decide investigar, acabando por descobrir a morada de Irma. Com o auxílio do seu parceiro Mazamette, infiltra-se na casa e aguarda que Irma saia para a vasculhar. Mas Feuillade não perde uma oportunidade para brincar com a sua audiência: assim que sai de casa, Irma depara-se com o Grande Vampiro, com quem volta de imediato para casa. Com tais coincidências, Feuillade afasta-se claramente de uma intenção realista, aderindo antes à tradição do puro entretenimento.

Feuillade afasta-se ainda mais do realismo com outro toque subtil que se segue: vemos os Vampiros entrarem em casa e a aproximarem-se do quarto onde está Phillipe. Corta para Phillipe a procurar um esconderijo e a meter-se debaixo de uma cama. Os Vampiros entram no quarto.

Entre o corte para Phillipe e a entrada dos Vampiros no quarto passam-se 9 segundos, durante os quais vemos Phillipe exposto e sem lugar onde se esconder. Evidentemente, os Vampiros não demoraram todo este tempo a dar dois passos e a abrir uma porta – Feuillade dilatou o tempo para aumentar o suspense.

Do episódio seguinte – “A Fuga do Homem Morto” – também há vários momentos interessantes a apontar. O primeiro ocorre a meio do episódio, e demonstra claramente a consciência que Feuillade tinha de como manipular a audiência. Trata-se, simplesmente, da maneira como Phillipe é enquadrado sentado à sua secretária.

É criado suspense usando apenas um enquadramento. Depois de horas de episódios em que uma câmara estática é colocada no centro dos cenários, e depois de cinco episódios em que é explorado o gosto dos vilões por janelas, o enquadramento incomum sugere imediatamente que vai acontecer alguma coisa, e cria a antecipação. É isto o tal “cinema puro” que Hitchcock falava a Truffaut.

Outro momento que merece destaque ocorre quando o Grande Vampiro, disfarçado de nobre francês, organiza uma festa para a alta sociedade na sua mansão. A certo ponto, informa os seus convidados de que “à meia-noite, haverá uma surpresa”. Quando Hitchcock definiu o suspense como a bomba debaixo da mesa que explodirá a uma hora determinada, era a esta fórmula que se referia – a audiência sabe de algo que as personagens não sabem, e a isso acrescenta-se uma hora-limite.

Outra cena que representa bem as prioridades de Feuillade acontece no oitavo episódio, “O Mestre do Trovão”. O filho de Mazamette faz-se passar por um coletor de trapos (ocupação entretanto desaparecida) e bate à porta de Satanas, o chefe-maior dos Vampiros, pedindo trapos velhos ao empregado. O empregado ausenta-se para ir buscá-los e, entretanto, Mazamette entra na casa e esconde-se num baú. Entretanto, Satanas observa tudo por detrás de uma máscara pendurada na parede.

Outra cena relevante ocorre após a suposta morte de Irma numa explosão, deixando os Vampiros de luto, e passa-se num café controlado pelo gang.
É claro que a simplicidade e clareza da encenação de Feuillade desta cena é interessante, mas não é por isso que a destaco. De seguida, Satanas abre a porta e diz ao rapaz que sabe que está um ladrão dentro da arca, começando então a trancá-la. Eustache dispara sobre ele, mas falha e atinge a arca, onde o seu pai está escondido. Satanas ataca o rapaz e é surpreendido pela polícia. Ora, porque é que Mazamette arriscou a sua vida e a do seu filho se sabia que Phillipe tinha chamado a polícia para prender Satanas? A resposta é simples: para criar uma boa cena. São claras as prioridades de Feuillade: o suspense vem antes do realismo e até da lógica.

As imagens dizem tudo. Uma figura misteriosa aparece no café, sobe ao palco e começa a cantar. As pessoas sentadas estranham a sua presença. Ela tira o capuz e revela ser Irma Vep. Os Vampiros celebram em euforia. Não pode haver dúvidas dos improvisos de Feuillade: Irma só aparece no terceiro episódio, e na altura é uma personagem secundária. Entretanto, o realizador ter-se-á apercebido do sucesso da personagem com a audiência, e esta vai ganhando importância. Chegado o oitavo episódio, a vilã secundária merece uma cena de ressurreição em glória, igual à que um herói protagonista teria. Feuillade não estava a seguir um plano pré-definido: ia-se ajustando à sua audiência. O formato do serial é nesse aspeto muito vantajoso, e o realizador soube aproveitar-se dele.

Rob Johnson, no seu blog thedevilsmanor. blogspot.com, tem a palavra final: “É difícil assinalar a influência de Les Vampires. Como muitos filmes mudos, o seu sucesso aquando do lançamento não alongou a sua vida até à era do som (…). Desde Fantômas em diante, as imagens de Feuillade tornaram-se parte da linguagem do cinema. É provavelmente mais apropriado, portanto, imaginar o serial a funcionar da mesma maneira que os próprios Vampiros; invisível e no entanto omnipresente, escondido por detrás de uma miríade de disfarces de  celulóide, fazendo sentir a sua presença antes de se retirar furtivamente de volta para as sombras”.

 

Por: José Pedro Pinto

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